(Do livro em preparação «Curiosidades da Região de Vouga»)
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quadro real, de movimento e cor, que o autor publica no Arquivo para
melhor conhecimento da região
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Dedicado aos Ex.mos Senhores:
Dr. ALFREDO COELHO DE MAGALHÃES
Monsenhor JOSÉ BERNARDINO DOS SANTOS E SILVA
Dr. ANTÓNIO GOMES DA ROCHA MADAHIL
Dr. FERNANDO BAPTISTA
O
LUGAR da Fontinha é um povoado com reduzido número de habitações que
pertence à freguesia de
Segadães, concelho de Águeda e distrito de Aveiro.
Tem uma escola, uma capela e uns tascos com vinho
e artigos de mercearia.
Das habitações destacam-se duas com aspecto de relativa
grandeza, mandadas construir há bem mais de meio século pelos falecidos
irmãos Pereira Martins, que fizeram fortuna
em São Luís do Maranhão, no Brasil. E o nome da Fontinha teve origem em uma pequena fonte que antigamente ali existia e a
cuja água as gentes de então atribuíam qualidades medicinais. Por esse motivo havia no local, ao tempo
dos romanos, um balneário de que ainda hoje se podem colher
impressões (segundo me informa o bom amigo Sr. José Martins Taveira) através de alguns elucidativos quadros que ornamentam as paredes da capela da Fontinha. E Segadães foi,
no passado distante, vila de nomeada nesta formosa e aliciante região de Vouga e, como a Fontinha, tem para mais
(e talvez bem mais) de mil e duzentos anos de existência, porque outrora
ali aportavam, quando um braço do Oceano
ia até àquelas paragens, embarcações gregas e romanas no seu roteiro de
comércio.
A paisagem é de maravilha. Para Nascente vê-se o casario de Segadães,
com a sua igreja lá no alto do monte
a mirar a estrada coleante que, a subir, conduz à Palhaça,
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segue à Trofa, Mourisca, Lamas, lugar de Vouga, Pontilhão, Serém (estes
dois na margem direita do Vouga) e outra vez na margem esquerda, Macinhata, Valongo do Vouga, Brunhido, Arrancada,
Aldeia da Arrancada, Aguieira... e todas estas localidades têm
ramificações com estradas e caminhos que levam a outros povoados, por aí
além... por aí além... cenários de maravilha!...
A Poente, campos do Almargem, largos milharais e azevens nos meses de
verão, e a estrada que conduz a Almear, Ponte da Rata, Eirol,
Carcavelos, Taipa, Requeixo... e na Ponte da Rata a Estação de Eirol da
linha do Vale de Vouga
e as águas do Águeda à juntarem-se às do rio Vouga, e a
ramificação da Estrada Nacional que conduz à Ponte de S. João de Loure e
à freguesia deste nome, a Pinheiro, a Frossos, a Angeja... e do lado
esquerdo do Vouga aparece Horta, Eixo, Azurva, Esgueira, Aveiro.
Ao Norte da Fontinha desliza o dito rio Vouga (que por alturas da
Trofa recebe as águas do MarneI), bucólicas margens bordadas a choupos,
freixos, amieiros, salgueirais, e para lá ficam vastos campos e terras
de Alquerubim, com os seus vários e afastados lugarejos, desde Pardos, e Calvães, e Fontes, e
Ameal, até Paus (Paoos), e segue a estrada para Albergaria-a-Velha, e
depois por aí além, serra acima, sempre serra acima...
Ao Sul as tintas verde-escuro dos pinheirais nostálgicos a cavalgar o
dorso dos montes, e por entre essas tintas da paisagem, a serpentear,
estradas e estradecas, caminhos e atalhos que conduzem a Travassô,
Cabanões, e atravessando o Águeda encontra-se Ois da Ribeira, EspinheI
(na vizinhança da famosa Pateira de Fermentelos, e nesta lagoa vem
desaguar o Cértima), depois outra vez na margem direita do
dito rio Águeda os caminhos levam-nos a Casal d'Álvaro,
Oronhe, Casainho, e mais adiante ficam a linda vila de Águeda, e depois, caminhos à direita e à esquerda, Assequins, Alhandra,
Recardães, Borralha, Barrô, Bolfiar... e por aí além, estradas e
estradecas para um lado e para outro, caminhos
e atalhos, sempre por aí além, os morros magníficos da serra lá nos
longes, névoas que tocam os píncaros, arvoredo, salpicos do casaria,
colorido... colorido... cenários de maravilha!...
E a Feira Real da Fontinha
−
como a designavam ao tempo da Monarquia
Portuguesa
−
era então, como ainda hoje nos progressivos tempos da
República e desta passagem do nosso século, o mais frequentado e
abastecido mercado rural desta aliciante região de Vouga de que tenho
vindo, desde há tempos, a ocupar-me.
/ 143 /
De quase todas as localidades que acima menciono e de
outras que à memória escapam
−
por essas estradas, caminhos e atalhos que galgam montanhas e cortam planícies,
atravessando lugarejos
−
vêm, logo de manhãzinha, «ao começar a ver», gentes a pé, em
bicicletas e a cavalo, com cestos,
sacas, molhos e canastras, burricos e machos carregados
toc, toc, toc...
carros de vacas, carros de mulas, camionetas... gentes
que transportam os seus artigos, as suas fazendas, para vender a outras gentes que levam o seu rico dinheirinho para
comprar, «p'ra mercar».
Estas gentes do povo, via de regra, vestem assim:
−
as mulheres,
descalças, de chinelas, de tamanquinhos ou de
sapatilhas, sem meias, a saia comprida e, sobre os ombros,
a cair e a cobrir o tronco, o infalível xaile de lã franjado,
com um lenço na cabeça e as pontas deste atadas por baixo do queixo.
Algumas, sobre o lenço, colocam esses interessantes chapeuzinhos de veludo preto,
redondos, que ainda
se vêem pela região.
−
Os homens calçam botas grossas ou tamancos,
alguns descalços; vestem calça, colete ,e casaco, a
camisa sem o colarinho, ou, se o tem, sem a gravata «qu'isso
é p'ra doutores»; o chapéu às três pancadas e, às vezes, um cajado na
mão. E homens e mulheres, se «vão p'ra mercar», quase todos levam uma saquita a que dão um nó e os
cordões da dita «enfiados» no braço, e, dentro da saquita,
muito embrulhado
−
num lenço ao qual também dão «p'ró
mór das dúvidas» dois nós seguros
−
o rico dinheirinho.
Juntamente com esse formigueiro humano que vem por
estradas, caminhos e atalhos, galgando montes e cortando
planícies, também vejo o gado que desejam vender:
−
vacum,
suíno, ovino, caprino... os cordeiritos aos pulos ao lado das
mães ovelhas, as ninhadas dos leitões nos carros dos lavradores, os bezerros atados por um cabresto aos pescoços das
mamãs vacas... lá vão, brincalhões, muito lindos e luzidios, às
carreirinhas...
O espaço destinado à Feira vai do sopé de uma ligeira
montanha de pedra avermelhada até às alturas pouco acidentadas da mesma. Em baixo as barracas destinadas ao comércio de
ferragens, artigos de ouro e prata, casimiras e panos vários, tamancaria
e sapataria, rendas, bordados, linhos e estopas, miudezas, etc., etc.
−
E sobre esteiras ou mantas e
no próprio piso lajeado à margem da rua principal, milhentas coisas necessárias à vida doméstica, agrícola, e industrial
/
144 / das
gentes das redondezas, que ali afluem todos os dias
dez (10) de cada mês
− que é esse o dia em que a Feira se
realiza. Assim, entre os variadíssimos objectos expostos à venda pelo
chão, encontram-se:
− ancinhos e engaços ao lado de cestos com tremoços,
cordas de todos os feitios e grossuras a par de lenços garridos,
forquilhas, lanternas e candeeiros, cofinhos para as trombas das vacas,
rendas, machados, dedais e fitas, foucinhas, feijões, candeias de folha
e latão, favas, ervilhas e outras sementes, peixes de bacalhau e cabos
para engaços e machados, carne de porco salgada, batatas, podões e
machadinhas, roscas e bolos doces, couves e nabos, fechaduras e
dobradiças, artigos de funilaria, gamelas, escudelas, forcados, ceiras com figos do Algarve, pão de trigo, fitas e
nastros, pás e enxadas, carrinhos de linha e riscados, nozes e castanhas,
cobertores e cobertas de lã e de algodão, trempes de ferro e tenazes,
panelas e púcaros de barro negro, pregos e parafusos, tachos de cobre,
cântaras e barris de
barro vermelho, canecos de madeira, rasas, razoilos e alqueires, tripas
secas para enchidos, taxas e cravos, linhas de pescar, anzóis e
chumbos, correias de couro, cordas para viola, cangas para gado,
cadeiras e mesas de pinho, abóboras, melões, melancias e um ror de
coisas mais que fazem o movimento do grande e simpático mercado rural.
Mais além fica o local destinado às ovelhas e carneiros, cabras,
cabritos, cordeiros. Depois, o local destinado aos
porcos e ninhadas de leitões que foram transportados em
carros de vacas, uma camada de palha no lastro do carro
para amaciar, e ali continuam dentro dos carros até serem
vendidos a este e àquele comprador, e, por fim, «ao desmanchar da
feira», por preço mais em conta, aos tradicionais mercadores desses
animaizinhos, «os regatões», que por ali estão à espera com os seus
machos, que trazem sobre o lombo duas canastras com redes de cordoaria e
chocalhos ao
pescoço, É lá, nessas canastras, que depois se metem os leitõezinhos a grunhir, e por cima, dobrados, cobertores felpudos às
riscas berrantes, e lá se vão com eles os «regatões» e os seus machos,
estradas e caminhos além
toc, toc, toc...
os guizos a chocalhar
tlin, tlin, tlin...
a ponta da corda do macho ao ombro do mercador «regatão», que à frente,
em passo cadenciado e calça de veludo (bombazina), a marcar uma tradição de séculos, lá segue a
caminho da sua vida... Costumes da velha Ibéria? Descendente
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[Vol. XII - N.º 46 - 1966] de ciganos?
De árabes? Amálgama de sangues na formação da lusitanidade...
Os cabeçalhos dos carros onde estão esses leitões, tiradas as vacas, estão
agora pousados no chão, e estes animais descansam e
comem, à sombra de velhos eucaliptos, bandeiras secas de milho. E também
à sombra daquelas árvores ou arrumadinhos aos lados, para não
estorvarem, estão outros muitos carros de burros e camionetas, que
trouxeram negociantes acompanhando o seu variado fazendame. E
desatrelados e presos nos varais das carripanas, uns a comer outros a
descansar, deitados, os auxiliares quadrúpedes aguardam o regresso.
Lá em riba do monte, no plano do pico, é o sítio, já
tradicional, da feira das vacas, das novilhas, dos bezerros...
Em baixo, de mistura com a multidão do povo feirante,
também ziguezagueiam senhoras, «senhorame das redondezas», que apreçam coisas, que namoriscam, que vieram a
passeio.
Nos meses de verão anda no ar, vindo dos campos e dos montes, um
cheirinho bom a milhos que amaduram, a flores campestres, a vinhedos, a
pinheiros, a matos floridos, a eucaliptos. E o sol criador, quente e fecundo, beija de lampejos
dourados as águas mansas dos rios e dos lagos, onde o Céu
azul, muito azul... vem espelhar-se, em estremecimentos nervosos. E, dos longes, a brisa traz a voz fresca de certa rapariga, em toada monótona
de amorosa cantiga, soluçante e arrastada:
«Ó oliveira da serra...
O vento leva a flor...
Só a mim ninguém me leva
Cartinhas ao meu amor.»
«Entre pedras e pedrinhas...
Nascem peras carvalhais...
Cuidava que te esquecia,
Cada vez me lembras mais.»
«Ai, cuidava que te esquecia...
Mas cada vez me lembras mais.»
E a azáfama da feira da Fontinha continua. Entre a gente
do povo, que vende e que compra, há frases assim:
− Então deixa ou não deixa pelo qu'eu digo?
−
Ó mulherzinha de Cristo, então vocemecê quer
qu'eu perca?.. (e a compradora a afastar-se).
/ 146 /
− Venha cá, tiazinha, venha cá...
Leve lá, mas olhe que é p'ra
m'estrear, porque perco dinheiro... por esta luz!...
−
Você perde eu bem sei o quê, diz a compradora a voltar... perde é uma...
(e enche a boca com o palavrão).
Aqui, acolá, por toda a feira, a revoada desse linguajar
nacional dos palavrões obscenos, para comprar isto ou vender aquilo.
E então lá em riba na feira do gado?! ... Ai, Nossa Senhora nos acuda!
Aquilo, sim, é que é pirotecnia portuguesa... pornografia da boa... de
três estalos e tiro real!...
Para apreçar uma junta de vacas ou vender um vitelo
− são «tantas
notas», que é assim que se diz
−
só visto e
ouvido de perto, senhores, que contado não se acredita. E então é posta
em cena por aqueles homens que a isso andam acostumados pelas feiras
(que é o seu métier) toda uma política de atitudes e gestos de
malabarismo, de manhas e piscadelas de olhos marotos a darem sinal a
terceiros, abrindo bocas de animais, contando os dentes, puxando as línguas, levantando as caudas, tudo com avanços e «arrecuos» de
negociantes traquejados e matreiros, uns semi-honestos, outros malandros
de todo (avivando em nossas memórias sangues de ascendentes árabes e
ciganos), acompanhados de grandes cajados nas mãos grossas, de dedos
cabeludos e chatos, e grandes guarda-sóis de seringador dependurados,
dentro dos sovacos dos casacos, e farta vinhaça no «pandulho», a camisa
a sair enrodilhada para fora das calças e coletes, tudo de mistura com
muitos palavrões indecentes, berrados por cima do gado atónito, por cima
das cabeças do povo indiferente ao porco linguajar, ferindo ouvidos delicados e coisas mansas, mascarando de torpeza o encanto
policrómico da feira e o bucolismo da paisagem.
E muitas das vezes esses negócios de gado só ficam fechados, mesmo
fechados, e com boas notas de sinal (uma nota são cem escudos), nos
tascos de comidas e bebidas em
meio de grosseiras orgias pantagruélicas, caçouladas de carne a
rescender, leitão assado, rijões (rojões), postas de bacalhau e peixe
frito, tudo regado com a excitante e boa pinga da região, a julgar pelo
verdejante ramo de loureiro à porta da locanda e pela algazarra infernal
que vem de dentro, com os
palavrões do bom linguado nacional, e isto enquanto um moço ou moça de
lavoura aguarda à porta com as juntas das vacas ou das bezerras,
segurando-as pela soga, a negociata fechada no tasco, a poder de berros,
de vinhaça e de indecências.
/
147 /
Lá pelas onze horas do dia principia o «desmanchar da Feira», que se
arrasta até ao meio dia. E, de então até à noite, por toda a santa
tarde, são gentes, e carros, e gados a passar de regresso, em grande
alarido, por aquelas mesmas estradas, caminhos e atalhos. E são os
mesmos berros e praguedos, pelo trajecto, a discutir negócios feitos ou
ainda só alinhavados, negócios que foram pouco lisos, negócios de
palavras não cumpridas. E aos berros dos homens, e também das mulheres
(que às vezes são muito piores), junta-se o berrar doloroso das mamãs vacas, e ovelhas, e chibas, e o
roncar das porcas, pelos filhos vendidos na Feira, que seguiram outros
destinos.
E esses homens e essas mulheres, pelos lugarejos por onde vão passando a
caminho de suas terras e de seus lares, vão entrando neste e naquele
tasco, para «beber um copo e molhar a palavra», e o gado fora, à
espera, guardado por moço ou mulher que acompanha o grupo, onde logo
outro grupo se vem juntar. E ainda ali, pelos tascos do caminho, por entre copos e petiscos, com a ajuda de todos os presentes, se
realizam os últimos negócios
− «ficam atados»
− porque lá na feira não
chegaram a acordo, que o vinho não era tão quente... e agora é quase
noite...
− «Tome lá o sinal, tiozinho»...
Mas se o vendedor não está pelos ajustes e vai-se afastando com o gado,
já a trinta, a quarenta braças de distância... o comprador, entre os
companheiros, no meio da rua, em frente ao tasco, num último golpe e aos
berras do negócio:
− Ó seu alma d'um raio? Então as vacas são ou não
são minhas?...
− Se quiser, é pelo qu'eu disse, responde lá de longe o
vendedor.
E o comprador a insistir, os braços no ar, vermelhuço,
num derradeiro berro que morre longe, nas quebradas:
−
Diga lá a sua última palavra, homem de Deus, diga lá!...
Assim é a Feira da Fontinha, a 10 de cada mês, o mais frequentado e
abastecido mercado rural desta lindíssima região de Vouga.
Aveiro, Fevereiro, 1946.
LAUDELINO DE MIRANDA MELO |