L. de Miranda Melo, A feira da Fontinha, Vol. XII, pp. 141-147

A FEIRA DA FONTINHA

(Do livro em preparação «Curiosidades da Região de Vouga»)

quadro real, de movimento e cor, que o autor publica no Arquivo para melhor conhecimento da região

Dedicado aos Ex.mos Senhores:

Dr. ALFREDO COELHO DE MAGALHÃES
Monsenhor JOSÉ BERNARDINO DOS SANTOS E SILVA
Dr. ANTÓNIO GOMES DA ROCHA MADAHIL
Dr. FERNANDO BAPTISTA


O LUGAR da Fontinha é um povoado com reduzido número de habitações que pertence à freguesia de Segadães, concelho de Águeda e distrito de Aveiro. Tem uma escola, uma capela e uns tascos com vinho e artigos de mercearia.

Das habitações destacam-se duas com aspecto de relativa grandeza, mandadas construir há bem mais de meio século pelos falecidos irmãos Pereira Martins, que fizeram fortuna em São Luís do Maranhão, no Brasil. E o nome da Fontinha teve origem em uma pequena fonte que antigamente ali existia e a cuja água as gentes de então atribuíam qualidades medicinais. Por esse motivo havia no local, ao tempo dos romanos, um balneário de que ainda hoje se podem colher impressões (segundo me informa o bom amigo Sr. José Martins Taveira) através de alguns elucidativos quadros que ornamentam as paredes da capela da Fontinha. E Segadães foi, no passado distante, vila de nomeada nesta formosa e aliciante região de Vouga e, como a Fontinha, tem para mais (e talvez bem mais) de mil e duzentos anos de existência, porque outrora ali aportavam, quando um braço do Oceano ia até àquelas paragens, embarcações gregas e romanas no seu roteiro de comércio.

A paisagem é de maravilha. Para Nascente vê-se o casario de Segadães, com a sua igreja lá no alto do monte a mirar a estrada coleante que, a subir, conduz à Palhaça, / 141 / segue à Trofa, Mourisca, Lamas, lugar de Vouga, Pontilhão, Serém (estes dois na margem direita do Vouga) e outra vez na margem esquerda, Macinhata, Valongo do Vouga, Brunhido, Arrancada, Aldeia da Arrancada, Aguieira... e todas estas localidades têm ramificações com estradas e caminhos que levam a outros povoados, por aí além... por aí além... cenários de maravilha!...

A Poente, campos do Almargem, largos milharais e azevens nos meses de verão, e a estrada que conduz a Almear, Ponte da Rata, Eirol, Carcavelos, Taipa, Requeixo... e na Ponte da Rata a Estação de Eirol da linha do Vale de Vouga e as águas do Águeda à juntarem-se às do rio Vouga, e a ramificação da Estrada Nacional que conduz à Ponte de S. João de Loure e à freguesia deste nome, a Pinheiro, a Frossos, a Angeja... e do lado esquerdo do Vouga aparece Horta, Eixo, Azurva, Esgueira, Aveiro.

Ao Norte da Fontinha desliza o dito rio Vouga (que por alturas da Trofa recebe as águas do MarneI), bucólicas margens bordadas a choupos, freixos, amieiros, salgueirais, e para lá ficam vastos campos e terras de Alquerubim, com os seus vários e afastados lugarejos, desde Pardos, e Calvães, e Fontes, e Ameal, até Paus (Paoos), e segue a estrada para Albergaria-a-Velha, e depois por aí além, serra acima, sempre serra acima...

Ao Sul as tintas verde-escuro dos pinheirais nostálgicos a cavalgar o dorso dos montes, e por entre essas tintas da paisagem, a serpentear, estradas e estradecas, caminhos e atalhos que conduzem a Travassô, Cabanões, e atravessando o Águeda encontra-se Ois da Ribeira, EspinheI (na vizinhança da famosa Pateira de Fermentelos, e nesta lagoa vem desaguar o Cértima), depois outra vez na margem direita do dito rio Águeda os caminhos levam-nos a Casal d'Álvaro, Oronhe, Casainho, e mais adiante ficam a linda vila de Águeda, e depois, caminhos à direita e à esquerda, Assequins, Alhandra, Recardães, Borralha, Barrô, Bolfiar... e por aí além, estradas e estradecas para um lado e para outro, caminhos e atalhos, sempre por aí além, os morros magníficos da serra lá nos longes, névoas que tocam os píncaros, arvoredo, salpicos do casaria, colorido... colorido... cenários de maravilha!...

E a Feira Real da Fontinha como a designavam ao tempo da Monarquia Portuguesa era então, como ainda hoje nos progressivos tempos da República e desta passagem do nosso século, o mais frequentado e abastecido mercado rural desta aliciante região de Vouga de que tenho vindo, desde há tempos, a ocupar-me. / 143 /

De quase todas as localidades que acima menciono e de outras que à memória escapam por essas estradas, caminhos e atalhos que galgam montanhas e cortam planícies, atravessando lugarejos vêm, logo de manhãzinha, «ao começar a ver», gentes a pé, em bicicletas e a cavalo, com cestos, sacas, molhos e canastras, burricos e machos carregados

toc, toc, toc...

carros de vacas, carros de mulas, camionetas... gentes que transportam os seus artigos, as suas fazendas, para vender a outras gentes que levam o seu rico dinheirinho para comprar, «p'ra mercar».

Estas gentes do povo, via de regra, vestem assim: as mulheres, descalças, de chinelas, de tamanquinhos ou de sapatilhas, sem meias, a saia comprida e, sobre os ombros, a cair e a cobrir o tronco, o infalível xaile de lã franjado, com um lenço na cabeça e as pontas deste atadas por baixo do queixo. Algumas, sobre o lenço, colocam esses interessantes chapeuzinhos de veludo preto, redondos, que ainda se vêem pela região. Os homens calçam botas grossas ou tamancos, alguns descalços; vestem calça, colete ,e casaco, a camisa sem o colarinho, ou, se o tem, sem a gravata «qu'isso é p'ra doutores»; o chapéu às três pancadas e, às vezes, um cajado na mão. E homens e mulheres, se «vão p'ra mercar», quase todos levam uma saquita a que dão um nó e os cordões da dita «enfiados» no braço, e, dentro da saquita, muito embrulhado num lenço ao qual também dão «p'ró mór das dúvidas» dois nós seguros o rico dinheirinho.

Juntamente com esse formigueiro humano que vem por estradas, caminhos e atalhos, galgando montes e cortando planícies, também vejo o gado que desejam vender: vacum, suíno, ovino, caprino... os cordeiritos aos pulos ao lado das mães ovelhas, as ninhadas dos leitões nos carros dos lavradores, os bezerros atados por um cabresto aos pescoços das mamãs vacas... lá vão, brincalhões, muito lindos e luzidios, às carreirinhas...

O espaço destinado à Feira vai do sopé de uma ligeira montanha de pedra avermelhada até às alturas pouco acidentadas da mesma. Em baixo as barracas destinadas ao comércio de ferragens, artigos de ouro e prata, casimiras e panos vários, tamancaria e sapataria, rendas, bordados, linhos e estopas, miudezas, etc., etc. E sobre esteiras ou mantas e no próprio piso lajeado à margem da rua principal, milhentas coisas necessárias à vida doméstica, agrícola, e industrial / 144 / das gentes das redondezas, que ali afluem todos os dias dez (10) de cada mês que é esse o dia em que a Feira se realiza. Assim, entre os variadíssimos objectos expostos à venda pelo chão, encontram-se: ancinhos e engaços ao lado de cestos com tremoços, cordas de todos os feitios e grossuras a par de lenços garridos, forquilhas, lanternas e candeeiros, cofinhos para as trombas das vacas, rendas, machados, dedais e fitas, foucinhas, feijões, candeias de folha e latão, favas, ervilhas e outras sementes, peixes de bacalhau e cabos para engaços e machados, carne de porco salgada, batatas, podões e machadinhas, roscas e bolos doces, couves e nabos, fechaduras e dobradiças, artigos de funilaria, gamelas, escudelas, forcados, ceiras com figos do Algarve, pão de trigo, fitas e nastros, pás e enxadas, carrinhos de linha e riscados, nozes e castanhas, cobertores e cobertas de lã e de algodão, trempes de ferro e tenazes, panelas e púcaros de barro negro, pregos e parafusos, tachos de cobre, cântaras e barris de barro vermelho, canecos de madeira, rasas, razoilos e alqueires, tripas secas para enchidos, taxas e cravos, linhas de pescar, anzóis e chumbos, correias de couro, cordas para viola, cangas para gado, cadeiras e mesas de pinho, abóboras, melões, melancias e um ror de coisas mais que fazem o movimento do grande e simpático mercado rural.

Mais além fica o local destinado às ovelhas e carneiros, cabras, cabritos, cordeiros. Depois, o local destinado aos porcos e ninhadas de leitões que foram transportados em carros de vacas, uma camada de palha no lastro do carro para amaciar, e ali continuam dentro dos carros até serem vendidos a este e àquele comprador, e, por fim, «ao desmanchar da feira», por preço mais em conta, aos tradicionais mercadores desses animaizinhos, «os regatões», que por ali estão à espera com os seus machos, que trazem sobre o lombo duas canastras com redes de cordoaria e chocalhos ao pescoço, É lá, nessas canastras, que depois se metem os leitõezinhos a grunhir, e por cima, dobrados, cobertores felpudos às riscas berrantes, e lá se vão com eles os «regatões» e os seus machos, estradas e caminhos além

toc, toc, toc...

os guizos a chocalhar

tlin, tlin, tlin...

a ponta da corda do macho ao ombro do mercador «regatão», que à frente, em passo cadenciado e calça de veludo (bombazina), a marcar uma tradição de séculos, lá segue a caminho da sua vida... Costumes da velha Ibéria? Descendente / 145 / [Vol. XII - N.º 46 - 1966] de ciganos? De árabes? Amálgama de sangues na formação da lusitanidade...

Os cabeçalhos dos carros onde estão esses leitões, tiradas as vacas, estão agora pousados no chão, e estes animais descansam e comem, à sombra de velhos eucaliptos, bandeiras secas de milho. E também à sombra daquelas árvores ou arrumadinhos aos lados, para não estorvarem, estão outros muitos carros de burros e camionetas, que trouxeram negociantes acompanhando o seu variado fazendame. E desatrelados e presos nos varais das carripanas, uns a comer outros a descansar, deitados, os auxiliares quadrúpedes aguardam o regresso.

Lá em riba do monte, no plano do pico, é o sítio, já tradicional, da feira das vacas, das novilhas, dos bezerros...

Em baixo, de mistura com a multidão do povo feirante, também ziguezagueiam senhoras, «senhorame das redondezas», que apreçam coisas, que namoriscam, que vieram a passeio.

Nos meses de verão anda no ar, vindo dos campos e dos montes, um cheirinho bom a milhos que amaduram, a flores campestres, a vinhedos, a pinheiros, a matos floridos, a eucaliptos. E o sol criador, quente e fecundo, beija de lampejos dourados as águas mansas dos rios e dos lagos, onde o Céu azul, muito azul... vem espelhar-se, em estremecimentos nervosos. E, dos longes, a brisa traz a voz fresca de certa rapariga, em toada monótona de amorosa cantiga, soluçante e arrastada:

«Ó oliveira da serra...
O vento leva a flor...
Só a mim ninguém me leva
Cartinhas ao meu amor.»


«Entre pedras e pedrinhas...
Nascem peras carvalhais...
Cuidava que te esquecia,
Cada vez me lembras mais.»


«Ai, cuidava que te esquecia...
Mas cada vez me lembras mais.»


E a azáfama da feira da Fontinha continua. Entre a gente do povo, que vende e que compra, há frases assim:

Então deixa ou não deixa pelo qu'eu digo?

Ó mulherzinha de Cristo, então vocemecê quer qu'eu perca?.. (e a compradora a afastar-se). / 146 /

Venha cá, tiazinha, venha cá... Leve lá, mas olhe que é p'ra m'estrear, porque perco dinheiro... por esta luz!...

Você perde eu bem sei o quê, diz a compradora a voltar... perde é uma... (e enche a boca com o palavrão).

Aqui, acolá, por toda a feira, a revoada desse linguajar nacional dos palavrões obscenos, para comprar isto ou vender aquilo.

E então lá em riba na feira do gado?! ... Ai, Nossa Senhora nos acuda! Aquilo, sim, é que é pirotecnia portuguesa... pornografia da boa... de três estalos e tiro real!...

Para apreçar uma junta de vacas ou vender um vitelo são «tantas notas», que é assim que se diz só visto e ouvido de perto, senhores, que contado não se acredita. E então é posta em cena por aqueles homens que a isso andam acostumados pelas feiras (que é o seu métier) toda uma política de atitudes e gestos de malabarismo, de manhas e piscadelas de olhos marotos a darem sinal a terceiros, abrindo bocas de animais, contando os dentes, puxando as línguas, levantando as caudas, tudo com avanços e «arrecuos» de negociantes traquejados e matreiros, uns semi-honestos, outros malandros de todo (avivando em nossas memórias sangues de ascendentes árabes e ciganos), acompanhados de grandes cajados nas mãos grossas, de dedos cabeludos e chatos, e grandes guarda-sóis de seringador dependurados, dentro dos sovacos dos casacos, e farta vinhaça no «pandulho», a camisa a sair enrodilhada para fora das calças e coletes, tudo de mistura com muitos palavrões indecentes, berrados por cima do gado atónito, por cima das cabeças do povo indiferente ao porco linguajar, ferindo ouvidos delicados e coisas mansas, mascarando de torpeza o encanto policrómico da feira e o bucolismo da paisagem.

E muitas das vezes esses negócios de gado só ficam fechados, mesmo fechados, e com boas notas de sinal (uma nota são cem escudos), nos tascos de comidas e bebidas em meio de grosseiras orgias pantagruélicas, caçouladas de carne a rescender, leitão assado, rijões (rojões), postas de bacalhau e peixe frito, tudo regado com a excitante e boa pinga da região, a julgar pelo verdejante ramo de loureiro à porta da locanda e pela algazarra infernal que vem de dentro, com os palavrões do bom linguado nacional, e isto enquanto um moço ou moça de lavoura aguarda à porta com as juntas das vacas ou das bezerras, segurando-as pela soga, a negociata fechada no tasco, a poder de berros, de vinhaça e de indecências. / 147 /

Lá pelas onze horas do dia principia o «desmanchar da Feira», que se arrasta até ao meio dia. E, de então até à noite, por toda a santa tarde, são gentes, e carros, e gados a passar de regresso, em grande alarido, por aquelas mesmas estradas, caminhos e atalhos. E são os mesmos berros e praguedos, pelo trajecto, a discutir negócios feitos ou ainda só alinhavados, negócios que foram pouco lisos, negócios de palavras não cumpridas. E aos berros dos homens, e também das mulheres (que às vezes são muito piores), junta-se o berrar doloroso das mamãs vacas, e ovelhas, e chibas, e o roncar das porcas, pelos filhos vendidos na Feira, que seguiram outros destinos.

E esses homens e essas mulheres, pelos lugarejos por onde vão passando a caminho de suas terras e de seus lares, vão entrando neste e naquele tasco, para «beber um copo e molhar a palavra», e o gado fora, à espera, guardado por moço ou mulher que acompanha o grupo, onde logo outro grupo se vem juntar. E ainda ali, pelos tascos do caminho, por entre copos e petiscos, com a ajuda de todos os presentes, se realizam os últimos negócios «ficam atados» porque lá na feira não chegaram a acordo, que o vinho não era tão quente... e agora é quase noite... «Tome lá o sinal, tiozinho»...

Mas se o vendedor não está pelos ajustes e vai-se afastando com o gado, já a trinta, a quarenta braças de distância... o comprador, entre os companheiros, no meio da rua, em frente ao tasco, num último golpe e aos berras do negócio:

Ó seu alma d'um raio? Então as vacas são ou não são minhas?...

Se quiser, é pelo qu'eu disse, responde lá de longe o vendedor.

E o comprador a insistir, os braços no ar, vermelhuço, num derradeiro berro que morre longe, nas quebradas:

Diga lá a sua última palavra, homem de Deus, diga lá!...

Assim é a Feira da Fontinha, a 10 de cada mês, o mais frequentado e abastecido mercado rural desta lindíssima região de Vouga.

Aveiro, Fevereiro, 1946.

LAUDELINO DE MIRANDA MELO

 

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