LAGUNA ou ria, o que dela
primeiramente nos interessa
é aquele mar de água e aquelas vistas. Não há aí
coração que não arribe, que não trejubile, ante aquela
paisagem vasta e multicolor e a sua agitação crescente
de vida e mais vida.
Eu tenho a paixão da Ria. Por vezes ela adormece-me
à beira, ela toda, calma, a beijar-se de brisas, o moliço de
belo verde a vertebrar as ondinas, e aquelas ondinas da Ria, como olhos
garços, a brilharem de céu e de luz, como tontinhas, abrindo-se para a carícia rude dos barcos e para me
seduzirem a mim, apaixonado e ciumento!...
Tantas vezes eu, já todo nu, paro na riba mais alta
erguendo o peito, erguendo os braços, como para apartar-me
de mim e da terra e então todo o amoroso apetite da Ria me
enlaça e beija e me envolve em perfumes e me encanta, para que, inebriado, eu tombe para ela... e depois, só se sente
o transporte a delícias que só a água dá e que só o corpo
conhece!
Ontem dormi no meu barco. E pela manhã, ainda mal a aurora incendiava cirros de primavera
−
para que fosse o
sol e não a chuva a imperar seu dia
−
e já uma sinfonia
mansa partia dos charcos, batia fino pelo junco, roncava nas
docas, clamava com a sereia do porto, e corria em vozes de
gaivotas e ia pianar moderado, abatendo-se comprimida, lá
para São Jacinto, para a Torreira e para o Furadouro, como se fosse, uma
fuga a meus êxtases...
A minha cama da proa cheirava a marisco. Novamente
me deitei nela, para ficar de olhos fechados, a escutar, a
ouvir só!...
Os ouvidos são mais ricos, mais inundados da vida e da
beleza dos sons, quando os olhos se tapam, quando se apaga
a chama das cores!
Sinfonias da minha Ria, nunca mais eu adormecerei e
também nunca mais entreabro meus olhos, que não tenha
em meus lábios, como em prece consolada, a expressão contente do amor
que me destes!
Tudo quanto eu amar, há-de ter a presença, o ensinamento, a moral de amor que a Ria me deixou. Há-de ser
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simultaneamente violento e manso, fascinante e esquivo, cândido e
misterioso; há-de ferir como golpe, como coisa que rasga e ao mesmo
tempo, na própria dor, há-de inebriar, tal como um ópio, um vinho, uma
doçura, fim bálsamo!...
Outro dia, eu tinha-me afastado sobre a Barra, lá para onde o Farol é
maior, onde a Ria tem melhores praias, onde à mão se tiram da terra
berbigões, amêijoas e mexilhões, que até crus se comem e têm paladar;
tinha lançado a rede, atirado a fisga, aguentado o anzol; tinha pescado
aqueles peixes que os olhos não aguentam, tão luminosa é a escama,
e ainda estava longe de Estarreja, quando a noite chegou.
Nunca mais os sentidos me esquecerão aquela Natureza:
antes de a noite se ver, o sol morrera em berros por toda a
planura das águas... Aquele sol não queria a morte santa de quem mandou
sem violências, nem tiranias, não queria perder uma amplidão de beleza
que conhecera e amara e onde, pelo seu valor e virilidade, dominara todo
um dia de fecundação e soberbas; não queria afogar-se nas ondas, não
queria aquele fenecer melancólico entre medonhos clangores, como uma
praga, e então, pôs-se a incendiar o céu, a estender as suas chamas de
luz e calor para emprestar quentura e tonalidade, e desta maneira
assinar o seu protesto naqueles cúmulos frios que o envolviam como
mortalha!...
Aquele sol morrera. Teria de morrer. No seu ocaso, porém, aquela
orquestração de luzes correndo pelo espaço, aquele seu estertor que
cuspia vermelhões de valentia e raiva
e o estalar da noite
− que, não obstante, crescia e vinha
− e aquele
arrebanhar dos últimos revérberos, deram a esse sol, no último minuto, a
fama, que não acaba, de como entre as
ondas o sol sabe morrer!...
Ria ou laguna, como te chamarem não importa; a mim,
o que interessa e a ti me cativa, é a soma de quadros de vida, as tuas
imagens de beleza e virilidade sadia com que povoaste a minha
inteligência, com que me enriqueces e a todos enriquecerás a alma toda.
A mim, o que irresistivelmente me atrai é o teu peixe, o teu moliço, os
teus mexilhões; é essa estrada sem portagem nem barreiras que ofereces a
todo o barco que te sulca as águas; é o teu lugar ao sol, aberto a
pobres e a ricos, aberto a todos; é o teu vento que espalha perfumes e
com eles a sensação de fartura e asseio; como é a tua luz, a tua sedução
e mistério, essas artes que possuis para agradares a todos Os sentidos!
A mim, o que me prende a ti, Ria de Aveiro, é sentir-se a gente homem,
plenamente homem, junto de ti!...
JOAQUIM RODRIGUES DA SILVA |