AVEIRO foi até aos princípios
do século XIX uma povoação insalubre devida ao pântano denominado Côjo,
que existia no vale que o atravessa do nascente para poente. O Côjo
começava junto à ponte oriental ou ponte da Corredoura e dilatava-se
para nascente.
Era limitado pelo Norte por um esteiro hoje totalmente
desaparecido, chamado esteiro do Côjo, e pelo Sul por outro esteiro que
ainda hoje existe e é chamada esteiro da Fonte Nova.
A parte ocidental do pântano compreendida entre estes dois esteiros chamava-se
o Ilhote do Côjo, no qual havia uma espécie de lagoa. Contra a
insalubridade do Côjo sucediam-se públicas reclamações, em virtude das
quais a Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra
ordenou em 12 de Agosto de 1818 ao Tenente-coronel de engenheiros LUÍS
GOMES DE CARVALHO, autor da abertura da barra nova de Aveiro em 1808,
que fizesse um projecto de saneamento
e correspondente urbanização do Côjo, a fim de se eliminarem as
epidemias que havia séculos dominavam em Aveiro.
LUÍS GOMES DE CARVALHO era um engenheiro distinto a quem
Aveiro muito
deve.
Para sanear o Côjo elaborou um projecto grandioso que apresentou com
data de 16 de Setembro de 1818. Muito de lamentar é que não tenha
sido executado, pois Aveiro seria
hoje uma das mais belas cidades de Portugal. Planeara LUÍS
GOMES prolongar o canal central da cidade que terminava então, como
ainda hoje, nas duas pontes vizinhas, a da Costeira e a da Corredaura,
até a actual estrada da Fonte Nova, e ladeá-lo com duas formosas ruas e
uma larga praça.
O projecto era encantador como se pode avaliar pela transcrição que
dele fazemos adiante. Ele visava simultaneamente a salubridade, a beleza
da cidade e a limpeza do canal central. Não teve, porém, execução, porque provavelmente
/ 150 / fizeram-se na ocasião obras sumárias de esgotamento das águas do
pântano, e o projecto caiu no esquecimento.
José Ferreira Pinto Basto comprou mais tarde o Ilhote do Côjo, e
desaterrou-o em 1828 e 1829 para obter uma caldeira que reunisse águas
salgadas bastantes, para, com a força das marés, moverem moinhos
instalados numa casa que construiu próximo das pontes.
Os moinhos dentro em pouco deixaram de funcionar, e a casa foi sofrendo
alterações, até que há alguns anos foi adquirida pelo Estado para nela
instalar a Capitania do porto de Aveiro que de facto lá está.
Mendes Leite comprou o Ilhote aos Pintos Bastos, e transformou a
caldeira em uma salina. Esta não deu resultado satisfatório e Mendes
Leite aterrou uma porção da caldeira a partir da casa dos moinhos para
nascente. Na parte restante construíram-se mais tarde piscinas ou
viveiros de peixes. Por fim, à volta de 1905, a Junta da Barra comprou
estas piscinas para nelas depositar as lamas das dragagens dos canais da
cidade. Em 1908 estavam quase aterradas pela
dita Junta. Os aterros continuaram, e ainda hoje se fazem com entulhos
das demolições da cidade. Sobre este enorme aterro existe hoje parte da
Avenida Dr. Lourenço Peixinho, o Mercado Municipal e várias construções.
Assim desapareceu o Ilhote do Côjo, e também a possibilidade de
realização do projecto de LUÍS GOMES DE CARVALHO. No entanto, está-se
realizando um projecto mais modesto.
Desde os fins do ano de 1945 está a Junta Autónoma da Ria e Barra de
Aveiro a proceder ao alargamento do velho esteiro do sul,
transformando-o num canal ladeado por fortes muros de alvenaria.
A Casa dos Moinhos fez morrer o mais belo projecto de melhoramentos da
cidade de Aveiro.
Aveiro, Maio de 1946.
F. FERREIRA NEVES
*
* *
DOCUMENTOS
I
Ill.mo e Ex.mo Senhor
Tenho a honra de remetter a V. Ex.ª o Plano para o Côjo, e hũa Nota que
explica os motivos, os detalhes, o orsamento, e o tempo de execução;
elle hé o rezultado depois de haver combinado com o Dez.or
Superintendente
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/ 152 /
das Obras Fernando Affonço Giraldes sobre o assumpto: Estimaremos seja
do agrado de V. Ex.ª
Deos guarde a V. Ex.ª Aveiro 16 de Setembro de 1818.
a) Luís Gomes de Carvalho
T.e Cor.el
IlI.mo
e Ex.mo
Snr. D. Miguel Pereira Forjaz.
II
Nota sobre o Plano do Cojo de Aveiro
O Cojo he o terreno que vai na Planta lavado de côr verde; comessa
elle junto das Pontes O, e se estende subindo insensivelmente para Nascente, e dividindo Aveiro em duas metades cuja cidade se pode considerar
mettida entre as linhas AB e CD: o nivel do terreno do Cojo está proximamente pela altura de marés de Quarto de Lua, e as marés vivas de Lua
Nova,
e hũa cheia o podem cobrir
em altura de mais de palmo e meio termo
medio
de G até H; e tanto bastaria para elle não ser muito doentio e estar
quasi
no mesmo caso das outras praias e Marinhas que circundão Aveiro de mui
perto pelo Norte e Poente, como a experiencia de 9 annos o tem mostrado
com esta differença desfavoravel para o Cojo que este terreno sendo mais
abrigado, e as agoas ali menos salgadas e já misturadas com as doces do
regato que vem de sima d'Azenha da Rosa, dando lugar a vegetação de
muitas plantas aquaticas, o tornarão menos sadio, como judiciosamente o
tem dito e publicado os Medicos desta Cidade no Jornal de Coimbra n.º
61.
Mas os proprietarios do Cojo tem alem disso especulado em converter em
rigoroso pantano esse terreno que o não hé já (porque o seu nivel está
4 palmos e meio superior á baixamar em Aveiro e por consequencia pode
ficar exgotado duas vezes nas baixa mares de cada 24 horas e no mesmo
tempo renovadas suas agoas nas preamares) afim de criar as plantas
proprias de taes terrenos que vendem para estrumes em prejuizo da Saude
publica, e para isso tem aproveitado os Combros 8, 8, 8 que resultarão
da
primitiva abertura dos Esteiros OQR e OP, e das suas periodicas
limpezas
para tapar o Cojo, e neste anno até se achou tapado com hum grosso
marachão o mesmo Esteiro publico QR no ponto Q, com o fim de que a
maré não podesse entrar de modo algum e reter no Cojo a pouca agoa doce
do regato, que pelo entupimento das valIas 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, e
tapages das
mesmas em partes, andão estravazadas por todo o Cojo, o qual se corrompeu e no fim de Julho e principio d'Agosto estava de
hũa cor verde
formando laço por slma q. tinha a aparencia de azeite rançozo e exalava
hum fetido insuportavel.
Os intensos calores de Julho promoverão tambem esta maior corrupção e do meado do dito mez comessarão a aparecer muitas doenças na
Cidade e se manifestarão mais em tudo quanto estava mais vizinho do Cojo
ou para donde os ventos o que reinavão podiam levar as exalaçoens
putridas.
Nestes termos ouvindo os Medicos e temendo-se q. o contagio se fizesse geral e tomasse mao caracter de acordo com o
Dez.or, Superintendente se
fez logo abrir todo o Esteiro publico QR e se praticarão alguns
pequenos
cortes nos Combros 8, 8, 8, do Cojo (que tambem são do publico porque são
formados das terras extrahidas dos mesmos esteiros à custa do Cofre) e
as marés entrarão logo, muito contra a vontade do Domno, no Cojo immundo,
que o lavarão e em poucas marés ficou quaze limpo e perdeo a maior parte
do mao cheiro, e as muitas doenças q. felizmente conservarão hum caracter benigno, comessarão a afrouchar no meado de Agosto.
Com esta providencia extraordinária se remediou então em grande
parte mal que poderia ter ido muito adiante; mas isso não basta, e
Aveiro
/
163 /
fica exposto para futuro não só ao mal que o Cojo pode fazer, como dizem
os Médicos e se colige da descripção do local, porem muito mais pelos
abuzos a q. elle ja deve e pode dar lugar, não havendo policia, e consentindo-se que os seus proprietarios pelo pequeno lucro que elle pode
dar-lhe
como pantano, sacrifiquem a Cidade, e depois a Comarca e a Provincia; e
perderem os intereces que muitos delles podião tirar cultivando. Alem do
exposto hé mesmo dezagradavel seja como pantano imundo ou como praia
salgada e esteril hum terreno, como o Cojo metido no coração da Cidade,
que S. Magestade levantou das minas e da qual formou hum belo porto de
mar para felicidade da Beira; por todos estes motivos não acanhei pelo
temor da despesa o Plano que aprezento cumprindo as Ordens de S. Magestade dirigidas pela Secretaria d'Estado dos Negocios Estrangeiros e da
Guerra na data de 12 de Agosto deste anno, o qual vai desenhado na
papeleta sobreposta na Planta para evitar a confuzão e se ver
claramente o que hé no estado actual e no futuro do Projecto. Tambem
para não fazer hũa
prejudicial diversão aos fundos destinados ás obras da Barra e dos
Rios,
lembro que o dito Plano Approvando S. Mag.e se poderá realizar em 3
annos como se dirá.
Consiste elle: 1.º em continuar o Caes de Aveiro M N O das Pontes O
para Nascente abrindo o Esteiro G K H de 7 palmos e meio ou 60 polegadas
de fundo abaixo do nivel do Cojo, para ser navegavel em baixa-mar; e de
14 braças de largura, que tanto calculei ser preciso para que das
terras
resultantes se terraplene o resto do Cojo de hũa e outra parte pelo
nivel da
calsada L que borda o Caes do Cojo que he supperior ás marés e cheias e
que ficam assima do nivel medio do terreno do Cojo 30 polegadas; e por
isso que o Esteiro ha-de ter 60 polegadas de fundo e dessas terras se
hão-de
entulhar 30 em altura para igualar o Cojo ás sobreditas ruas junto do
Caes,
segue-se que o Esteiro há-de ter de largura metade do terreno restante
do
Cojo ou há-de ser hum terço da sua total largura media q. eu achei de
42 braças, cujo terço são as 14 braças que lhe dou de largura.
2.º Em abrir a ValIa H T para receber o Regato, e as agoas de todas
as Vallas de enchugo do Cojo 1, 3, 4, 5, 6, 7, as quaes andam totalmente
entupidas por desprezo, e por especulação dos proprietarios, e que estes
nas suas testadas as possão abrir ou sejam constrangidos a isso; e em
abrir outra valIa transversal V Z para receber o resto das agoas e dar
as terras
precizas para o caminho XY onde passará um Pontilhão de pedra sobre um
archete, debaixo do qual se estabelecerá hũa
porta de maré H que por si
mesma se feixa qd.º a maré enche e se abre sempre que ella vaza, e em
geral sempre que as agoas doces que vem de sima estiverem supperiores á
maré para lhe dar sahida e enchugar o terreno e vedar absolutamente a
entrada da agoa salgada em algũa maré viva de Equinoscio, que pode
ainda ir insultar os terrenos assim a da dita porta H para se poder
deste modo
seguramente cultivar o milho e feijão ou como convier a seus domnos;
mas
jamais formarem de semelhante terreno pantano por discuido ou arteficio.
Esta porta H pode de inverno demorar as agoas no Cojo, assima della
para lhe dar sahida na baixamar e ajudar assim a limpeza de todo o Caes
de Aveiro desde H até as Pyramides M.
3.º Terraplanado o Cojo em toda a extensão do Esteiro G K H com
as terras resultantes da excavação do mesmo será distribuido em duas
ruas de 80 palmos de largura paralellas ao dito esteiro; e se deixará
hũa espaçoza praça m, n, d, c, ou m, n, f, g, q.
do lado do Norte fica terminada
pela
arcada m, d, f, h, q. conduz a agoa á Fonte da Praça F, q. he a
principal
da cidade e aquella q. dá agoada aos Navios; os terrenos que ficam E E E
e vão lavados de amarello sendo de grande valor logo q. se fassa este
Caes G K H no maior abrigo p.ª os barcos e no centro da Cidade, e
poderão
servir para indemnização da porção do Cojo que vai ser ocupado pelo
publico, cujo terreno não será de grande valor (nem o era antes da Barra
nova), desde que se não consentir q. os proprietarios formem pantanos
dentro da Cidade com incommodo dos seus habitantes e em prejuizo tão grande
da saude publica em paiz tão melindrozo que foi como hé sabido o Cabo...
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...Verde de Portugal, e que a Barra nova fez sadio, e se não percão por tão
pouco tantos sacrificios, tantos trabalhos e tantos bens obtidos.
Ex aqui o orsamento desta Obra:
Emquanto porem este Plano se não executar, devem os Esteiros do
Cojo andar limpos e conservar franca a entrada á maré no dito Cojo para
lhe renovar as agoas onde a maré o cobre bem; e os proprietarios do
resto
delle, do R T para sima, sejão obrigados a trazer as valas 1, 3, 4. 6 e
7 abertas para escoamento desses terrenos q. por falta disso andão
alagados
e pantanosos.
Aveiro, 16 de Setembro de 1818
a) Luiz Gomes de Carvalho
T.e Cor.el
(Arquivo Histórico Colonial, Papeis avulsos
−
Reino)
FRANCISCO FERREIRA NEVES |