José Tavares, 1.º Centenário de Eça. «O Tesoiro», Vol. XII, pp. 27-32

1º CENTENÁRIO DE EÇA DE QUEIRÓS

«O TESOIRO» Adaptação cénica(1)

ARGUMENTADOR (Oculto por detrás do pano) Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guanes e Rostabal, eram então, em todo o reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os
mais remendados.

Nos paços de Medranhos, a que o vento da serra levara vidraça e telha, passavam eles as tardes desse inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo as solas rotas sobre as lajes da cozinha, diante da vasta lareira negra, onde, desde muito, não estalava lume nem fervia a panela de ferro. Ao escurecer, devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho. Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a neve, iam dormir à estrebaria, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas, que, esfaimadas como eles, roíam as traves da manjedoura. E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos.

Ora, na Primavera, por uma silenciosa manhã de domingo, andando todos três na mata de Roquelanes a espiar pegadas de caça e a apanhar tortulhos entre os robles, enquanto as três éguas pastavam a relva nova de Abril, os irmãos de / 28 / Medranhos encontraram, por trás de uma moita de espinheiros, numa cova da rocha, um velho cofre de ferro. Como se o resguardasse uma torre segura, conservava as suas três chaves nas suas três fechaduras. Sobre a tampa, mal decifrável através da ferrugem, corria um dístico em letras árabes. E dentro, até às bordas, estava cheio de dobrões de oiro!

No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficaram mais lívidos do que círios. Depois, mergulhando furiosamente as mãos no oiro, estalaram a rir, num riso de tão larga rajada, que as folhas dos olmos, em roda, tremiam... E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a flamejar numa desconfiança tão desabrida, que Guanes e Rostabal apalpavam nos cintos os cabos das grandes facas...

(Abre-se o pano. Vista de mata, muito agreste. Entram os três irmãos, trazendo o cofre com as suas três fechaduras. Depõem-no a um dos lados da cena e ficam-se a olhá-lo. Atravessa a cena uma figura mefistofélica, em medonhos esgares).

RUI -- Manos! O tesoiro, ou venha de Deus ou do demónio, pertence aos três, e entre nós se repartirá, rigidamente, pesando-se o oiro em balanças. Mas como poderemos carregar para Medranhos, para os cimos da serra, este cofre tão cheio?

ROSTABAL -- Nem convém que saiamos da mata, com o nosso bem, antes de cerrar a escuridão.

RUI -- Por isso, entendo que o mano Guanes, como mais leve, deve trotar para a vila vizinha de Retortilho, levando já oiro na bolsilha, a comprar três alforjes de coiro, três maquias de cevada para as éguas, três empadões de carne e três botelhas de vinho para nós, que já não comemos desde ontem. (Pausa) Assim refeitos, ensacaremos o oiro nos alforjes e subiremos para Medranhos, sob a segurança da noite sem lua...

ROSTABAL -- Bem tramado!

GUANES (Desconfiado) -- Manos! O cofre tem três chaves... Eu quero fechar a minha fechadura e levar a minha cbave!

ROSTABAL -- Também eu quero a minha, mil raios!

RUI (Sorrindo) -- Decerto! Decerto! A cada dono do oiro cabe uma das chaves. (Acercam-se do cofre. Guanes / 29 / faz menção de tirar algumas moedas, que esconde na bolsilha. Depois, fecham o cofre, e cada um toma conta da sua chave e a guarda).

ESPÍRITO (Figura mefistofélica, aproximando-se de Guanes e falando-lhe ao ouvido, enquanto, a um lado, os dois outros irmãos conversam) -- Vai, Guanes! Sê ambicioso! Mesmo antes de comprar os alforjes, na viela por detrás da catedral de Retortilho comprarás ao velho droguista judeu um pouco de veneno, que, misturado ao vinho, te tornará, a ti somente, dono de todo o tesoiro! (Vendo-o hesitante, apontando o caminho) Vai! (Guanes sai, seguido do Espírito. Rui e Rostabal olham-no).

(Passados instantes, Rui e Rostabal sentam-se no chão, junto do cofre).

RUI (Como em solilóquio) -- O mano Guanes, esta manhã, não queria descer connosco à mata de Roquelanes. Ruim sorte! Se Guanes tivesse quedado em Medranhos, só nós teríamos descoberto o cofre e só entre nós se dividiria o oiro! Grande pena, tanto mais que a parte de Guanes será em breve dissipada com rufiões, aos dados, pelas tavernas! (Mais alto) Ah, Rostabal, Rostabal! Se Guanes, passando aqui sozinho; tivesse achado este oiro, não dividia conosco, Rostabal!

ROSTABAL (Com furor, dando um puxão às barbas) -- Não, mil raios! Guanes é sôfrego... Quando o ano passado, se te lembras, ganhou os cem ducados ao espadeira de Fresno, nem me quis emprestar três para eu comprar um gibão novo!

RUI (Com alegria) -- Vês tu? (Levantam-se e ficam pensativos, cada um a seu lado da cena) E para quê? Para que lhe serve todo o oiro que nos leva? Tu não o ouves de noite, como tosse? Ao redor da palha em que dorme, todo o chão está negro, do sangue que escarra. Não dura até às outras neves, Rostabal. Mas, até lá, terá dissipado os bons dobrões que deviam ser nossos para levantarmos a nossa casa, e para tu teres ginetes, e armas, e o teu terço de solarengos, como compete a quem é, como tu, o mais velho dos de Medranhas...

ROSTABAL (Brutalmente) -- Pois que morra, e morra hoje!

RUl -- Queres? (Agarrando o braço de Rostabal e apontando para o caminho, em tom cavo) Logo adiante, ao fim / 30 / do trilho, há um bom sítio, nos silvados. E hás-de ser tu, Rostabal, que és o mais forte e o mais destro. Um golpe de ponta, pelas costas! E é de justiça de Deus que sejas tu, que muitas vezes, nas tavernas, sem pudor Guanes te tratava de cerdo e de torpe, por não saberes as letras nem os números!

ROSTABAL (Rangendo os dentes) -- Malvado!

RUI -- Vem! (Puxa-o. Ficam a olhar o caminho, de olhos esgazeados) Acolá! (Empurrando-o) Na ilharga! Mal que passe! (Rostabal sai. Rui estaca, pensativo. Depois, põe-se a percorrer a clareira, a largas passadas).

ESPÍRITO (Surge do mesmo lado e põe a mão sobre o ombro de Rui, que estremece) -- Aí vem o mano Guanes! Rostabal romperá de entre a sarça, por uma brecha. Atirará o braço, a longa espada, e toda a lâmina se embeberá molemente na ilharga de Guanes, quando, ao rumor, bruscamente se virar na sela... Todo o oiro poderá ser teu, se a Rostabal arrancares a vida! Vai! (Misteriosamente) Rostabal! Acolá! (Ouve-se um grito. O Espírito desaparece, às gargalhadas, para o lado donde o grito soou).

RUI (Olhando, esgazeado, com a voz sumida) -- Rostabal! A chave! (Depois de alguma hesitação, sai).

ARGUMENTADOR (Oculto) -- Arrancada a chave ao seio do morto, ambos largaram pela vereda -- Rostabal adiante, fugindo, com a pluma do sombrero quebrada e torta, a espada ainda nua entalada sob o braço, todo encolhido, arrepiado com o sabor de sangue que lhe espirrara para a boca; Rui, atrás, puxando desesperadamente os freios da égua, que, de patas fincadas no chão pedregoso, arreganhando a longa dentuça amarela, não queria deixar o seu dono assim estirado, abandonado, ao comprido das sebes.

(Pouco depois, entram Rostabal, com a espada, ensanguentada, debaixo do braço e espirros de sangue no rosto, seguido de Rui, que transporta um alforje cheio, donde emergem os gargalos de duas garra/as. Silêncio).

ROSTABAL -- Mil raios! Que o sangue de Guanes assim me tingiu a espada! (Dá-se a limpar o rosto e a espada, de costas para Rui. Este pousa o alforje e contempla sinistramente o irmão). / 31 /

RUI (Arrancando o punhal) -- Assassinol (Avança e crava-lho no peito).

ROSTABAL (Deixando cair a espada, leva a mão ao peito, cai vergado. sobre os joelhos) -- Ah, que me mataste!... Ladrão!... (Cai sobre as mãos, estorcendo-se e gemendo. Olhar de Ódio sobre o irmão; procura estender-se direito ao cofre com sofreguidão, a voz a sumir-se) Ladrão I... O meu oiro!... O meu... (Fica fulminado).

RUI (Aterrorizado ante a agonia de Rostabal, agarra-se ao cofre sofregamente, como a arrancar-lho das mãos) Maldito! É meu o cofre, por todos os demónios!... (A seguir, horrorizado, tira da bolsilha de Rostabal a terceira das chaves e guarda-a. Depois, puxa o cadáver para um lado, com horror e desprezo. Tira as três chaves e contempla-as).

ESPÍRITO (Aproximando-se) -- Vês? Agora, são só tuas as três chaves! Mal a noite desça, com o oiro metido nos alforjes, guiando a fila das éguas pelos trilhos da serra, subirás a Medranhos e enterrarás na adega o teu tesoiro!

RUI (Sossegando) -- Sim! Quando ali na fonte, e além, rente aos silvados, só restarem, sob as neves de Dezembro, alguns ossos sem nome; serei o magnífico senhor de Medranhos, e na capela nova do solar renascido mandarei dizer missas ricas pelos meus irmãos mortos... (Horrorizado) Mortos, como?

ESPÍRITO -- Como devem morrer os de Medranhos: a pelejar contra o turco! (Apontando o alforje) Sacia essa fome! Guanes foi bom mordomo: nem esqueceu as azeitonas! (Desaparece, às gargalhadas).

(Rui, aproximando-se do alforje, tira um pão, um pedaço de carne e põe-se a comer com sofreguidão. Passados instantes, empunha uma das garrafas, bebe a largos tragos...)

RUI -- Ah! Oh vinho bendito, que tão prontamente me aqueces o sangue! (Abre a outra garrafa e vai para beber, mas suspende-se) Não! Não! A jornada para a serra requer firmeza e acerto! (Comendo, pensativo) Ahl Depois, Medranhos, coberto de telha nova! Altas chamas na lareira, por noites de neve! (Vai-se levantando) O meu leito com brocados, onde terei sempre mulheres! (Dirige-se para o / 32 / cofre, abre-o, toca nas moedas) O meu tesoiro!... Só meu!.. (Fecha a tampa, vai a erguer-se, mas de repente sente-se cambalear) Que é isto, Rui? Raios de Deus! É um lume, um lume vivo, que se me acende dentro, me sobe até às goelas! (Rasga o gibão, atira os passos incertos, limpa o suor) Oh Virgem Mãe! Outra vez o lume, mais forte, me está roendo!... (Cambaleante) Socorro! Alguém! Guanes! Rostabal! (Olhando as duas garrafas) Só duas garrafas para três convivas... (Com horror) Compreendo!... Compreendo!... Traição!... É veneno! Ah! (Atira-se, direito ao cofre, arrepela-se, e morre em estertores horríveis).

CORRE O PANO

ARGUMENTADOR (Em frente do pano) -- Anoiteceu. Dois corvos, de entre o bando que grasnava além, nos silvados, já tinham pousado sobre o corpo de Guanes. A fonte, cantando, lavava o outro morto. Meio enterrada na erva negra, toda a face de Rui se tornara negra. Uma estrelinha tremeluzia no céu. (Em tom misterioso, apontando) O tesoiro ainda lá está, na mata de Roquelanes!

JOSÉ PEREIRA TAVARES

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(1) Este arranjo cénico do formoso conto de Eça foi representado no Ginásio do Liceu de Aveiro em a noite de 24 de Novembro de 1945, na sessão comemorativa do 1.º centenário queirosiano (Veja Arquivo, voI. XI, pág. 299). Intérpretes: Argumentador: António Carvalho Simão (7.º ano de Ciências); Rui: José Duarte Simão (professor primário, ensaiador); Guanes: Renato Freire Figueiredo (7.º ano de Ciências); Rostabal: Rui Nunes da Silva (7.º ano de Ciências); Espírito: Amadeu Miranda Poças (7.º ano de Letras)..

 

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