ENTRE as indústrias populares que nos apresentam maior tendência a
desaparecer, é a das olarias a mais notável.
Quer por falta de mãos para a trabalhar, dispersas
nos trabalhos agrícolas por carência de braços, quer pela fragilidade da
pasta constitutiva, que lhes dá pouca duração no desempenho do emprego
para que foram criadas, quer ainda
pela facilidade de aquisição de material doméstico de longa
duração e a preços relativamente baixos, o certo é esta indústria, de
origem e forma antiquíssima, ir sofrendo uma
transformação total na tipologia, processos e nomenclatura, tornando -se
extensiva ao vocabulário especialista.
No estudo sobre a «Cerâmica negra nos distritos de Coimbra e Aveiro»
feito por PEDRO FERNANDES TOMÁS na Portugália, I, pág. 821, nota-se para
a actualidade uma profunda diferenciação.
Os núcleos populares oleiros da região aveirense estão sob a influência
natural de importantes fábricas de produtos cerâmicos, e se a sua origem
é a mesma, vão influenciar
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se não absorver
−
nas suas formas e
nomenclatura, nos processos em uso e na terminologia, os oleiros de
louça grossa.
No singelo intuito de arquivar, e não com veleidades de apresentar
estudo definitivo, traçam-se estas linhas, fruto de colheita directa e
in loco, de um dos centros por certo mais antigos desta região: o centro
de Vagos.
Em Aveiro desapareceram as olarias puramente populares. Nada nos custa a
crer que dentro de poucos anos as da
sua região tenham o mesmo triste fim.
Aveiro, pelos elementos que nos foi possível colher, era importantíssimo
centro pelo séc. XVI, e do seu notável valor dá-nos conta JOAQUIM DE
VASCONCELOS nas suas «Relíquias de Arte Nacional» no Catálogo da
Exposição distrital de Aveiro em 1882.
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E tão grande era a sua importância, e tal valor tinha na terra, que
havia aqui a «Torre dos Oleiros»
−
cuja entrada se tapou por provisão
de Filipe I em 1585
−,
o «Bairro das Olarias», representação da classe
pelo seu juiz com bandeira das padroeiras na procissão do Corpus Christi,
e dança espeçial
−
«dança dos oleiros»
−
nos festejos públicos onde eles
tomavam parte muito importante. Foi este o panorama
da classe nesta risonha cidade de Aveiro.
Por 1813, segundo o mesmo autor, entra em franca decadência a indústria
com a demolição dos 10 fornos existentes, sem dúvida a pedido da
indústria, que por essa data na própria cidade e em pontos próprios se
estabelece.
Quer por influência dos industriais a quem não convinham os pequenos
fabricantes, quer por melhoria da paga aos populares que abandonam a sua
«fábrica» pouco remuneradora, facto indiscutível é que Aveiro, centro
exportador de grande importância de produtos de barro vermelho, cujas
invenções de formas são notadas por Fr. FRANCISCO DE
S. TIAGO na sua Crónica da Santa Província de N.ª S.ª da Soledade em
1762, sofre o seu golpe mortal para nunca mais se erguer dentro do
carácter diferencial que possuía.
O exemplo da história dá como muito provável o desaparecimento de núcleos de menor importância, sobrecarregados como estão actualmente por contribuição industrial.
Algures foquei eu este problema ao tratar das condições de vida
−
melhor
chamar-lhe de morte
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das olarias de Barcelos, apontando tal imposto
como carga pesada, quando em boa verdade as olarias nos núcleos
puramente populares não são indústrias na verdadeira acepção do termo,
mas sim uma forma subsidiária para equilibrar o orçamento doméstico.
Prova do facto é que em Vagos
−
o centro que neste caso importa
−
na época
de inverno a oficina do oleiro desaparece por completo, por
impossibilidade absoluta de efectuar qualquer trabalho.
Os centros populares oleiros
−
como aliás qualquer outro
−
estabelecem-se onde as matérias primas mais abundam.
Em povoação tão antiga como é Vagos, a 11 km a S. O.
de Aveiro e cortada pela estrada de Aveiro à Figueira da Foz, com S.
Tiago apóstolo por orago, teria florescido esta indústria, tão limitada
hoje na sua produção tipológica e numerária.
Facto curioso a apontar é ser o barro de Vagos o melhor da região, de
tal forma notável que o centro de Ovar por 1877 com 15 fábricas de louça
vermelha
−
di-lo MARQUES GOMES
em O Distrito de Aveiro
−
dele se vinha fornecer ali, aproveitando para tal fim o transporte natural dessa parte da região
−
a
Ria.
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A título de curiosidade direi
−
cingindo-me a MARQUES GOMES
−
que a
principal exportação de Ovar era para Porto e... Aveiro.
Quando Aveiro se bastava a si próprio e exportava para Viana e Caminha,
terminam as suas olarias, para seguidamente importar de Ovar os mesmos
produtos.
PINHO LEAL no Portugal antigo e Moderno dá notícia da existência em
Vagos de 12 fábricas de louça de barro ordinário.
Em 1943
−
data da minha colheita
−
o fabrico da olaria estava cingido a:
Francisco Ferreira Regalado e Viúva de António Ferreira Regalado, em
Vagos; em Tabuaço, no Cabeço das Pedras, por Abel Vidinha ou Carrão e
José Ferreira Regalado; e finalmente, em Oca, por António de Oliveira
Novo.
Em Vagos, como em Guimarães e Barcelos, Canha e Malhada Sorda, sente-se
nos nomes indiscutível ar de parentesco.
Na classe observa-se nítida decadência, mas mais profundamente se sente
nos termos que se vão perdendo, nos usos que de novo se introduzem no
sistema de fabrico e de cocção, tão moderno este último, tão destituído
de carácter próprio que infelizmente nem vale a pena narrá-lo.
Outro tanto se não dá em Arada, centro curiosíssimo;
sofrendo dos males de Vagos, ficará para uma nota seguinte.
Destas cinco pobres fábricas, pobres nas condições de vida que têm,
mas ricas na anatomia primitivista das suas peças, vão saindo:
alguidares, cântaras, tigelas e jarras (fig. 1), tijolos
de lar, telha e beiral.
Pouco variada a forma; diminuto número de espécies as
fabricadas.
Os mil quilos de barro ficam ao oleiro por 21$00, pois custa o barro
na barreira e o seu corte 5&00, sendo a diferença para o carreto.
Corta-se delgadinho no barreiro e deita-se-lhe água para
que curta.
Curtido, passa ao terreiro ou amassadoiro onde se amassa a pés e se lhe tiram os nós e as pedras.
Na banca
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uma mesa
−
é então escolhido completando
a extracção dos nós e apertando-o para lhe tirar as bolhas.
Desta massa se fazem as pelas, vocábulo este generalizado a todos os centros que conhecemos.
Na cabeça da roda deita-se pó
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barro pobre, diz o meu
informador
−
para o barro não lhe aderir, e frente à adequina
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onde se coloca o loiceiro ou alpiota com água e a ferramenta
sentado no assentadoiro, com o pé na estrobeira, vão produzilldo
pela forma tão conhecida as peças enumeradas.
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Fig. 1 - jarra, borreto, tigela, alguidar Cântaras n.os
1, 2, 3. 4 |
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cana de trabalhar na roda
-
para puxar o barro
(fig. 2)
cana de margear - para fazer o tremido (superfície
de ondulação estreita)
cana de rapar tigelas - para lhes fazer o fundo
(figs. 3 e 4) e
alpanatas - panos para alisar a peça amaciando-a
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É curiosíssima, e tem sido minuciosamente colhida, a
uniformidade de um certo número de caracteres em todos os centros
oleiros.
Ainda em Vagos não encontrei aquela resposta que quem
averigua um facto procura a cada instante achar: o motivo de desde Canha
− ver Trabalhos da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia,
voI. X, fase. 2 − a Barcelos − in Ethnos, II − e Vagos
ser de 7 o número de tamanhos fabricados nas peças de maior capacidade(1).
Comercializado o uso, vão-se perdendo os vocábulos
próprios de cada tamanho, achando obra curiosa a sua colheita, para em
tempo futuro se procurar penetrar com fundamento senão na origem do
número
−
a predilecção popular pelo 7, já estudada
−
ao menos fazer-se estudo comparativo de costumes, método patrocinado e
aconselhado entre outros por P. DE SAINTYVES.
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Assim, por ordem crescente de tamanhos
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1 a 7
−
chamam entre os oleiros:
quartola, canada, mido grande, mido pequeno, quartilho, borretão e
borreto.
E notemos que equivalendo uma canada a 2 litros a cântara de canada tem
uma capacidade aproximada a 25 litros, e a mesma peça de quartilho, que
deveria ter de capacidade meio litro, tem aproximadamente 3 litros.
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Fig. 7 - Note-se o emprego da jarra, idêntico ao das
cântaras, e a sua colocação quando vazias. |
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É esta disparidade de números que não me tem permitido encontrar o fio
desta meada: regra seguida no esta belecimento dos nomes.
As capacidades correspondentes nas cântaras aos números de 4 a 7 são
aproximadamente: 30 litros, 25, 20 para 1, 2 e 3; o n.º 5 com 3 litros e
o n.º 7 com 2,5 decilitros.
Os alguidares são feitos nos 6 primeiros tamanhos.
Da lambuge
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o óleo de barro
−
se fazem as asas, e estas têm pegadouro
−
parte aderente à peça e que se se lhe separa se não estiver pregada de
sasão
−
e refrego
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fig. 5
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ou friso
−
fig. 6
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conforme pertencem às cântaras grandes ou pequenas.
Antes de ir ao forno, mas já seca e asada, dá-se-lhe um banho
−
banho amarelo de Arada desfeito em água
−
com o fim de, dando à peça uma cor mais encarnada, mais bonita ela se
torne à vista.
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Findo o banho, a peça deve ser bem enrolada
−
rebarba-se o fundo
−
rapa-se
−
para ficar mais liso.
A decoração é pobre, mas arquivemos o que há:
na borda dos alguidares faz-se um sulco profundo ondeado
−
a bicha; e friso chamam aos pobres ornatos na semalha
da boca das cântaras.
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Fig. 8 - «Cântara cheia» |
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Fica pronta para a cocção. É enfornada e dará certo lucro quando pronta
se não arrunhar
−
aluir a fornada
−
ou ficar apertada
−
queimada em demasia.
E nesta forma, com seus usos se vai finando este centro oleiro na região
de Aveiro.
J. S. PAES DE VILAS-BOAS |