J. S Paes de Vilas-Boas, A região de Aveiro e as olarias, Vol. XII, pp. 33-39

A REGIÃO DE AVEIRO E AS OLARIAS

ENTRE as indústrias populares que nos apresentam maior tendência a desaparecer, é a das olarias a mais notável.

Quer por falta de mãos para a trabalhar, dispersas nos trabalhos agrícolas por carência de braços, quer pela fragilidade da pasta constitutiva, que lhes dá pouca duração no desempenho do emprego para que foram criadas, quer ainda pela facilidade de aquisição de material doméstico de longa duração e a preços relativamente baixos, o certo é esta indústria, de origem e forma antiquíssima, ir sofrendo uma transformação total na tipologia, processos e nomenclatura, tornando -se extensiva ao vocabulário especialista.

No estudo sobre a «Cerâmica negra nos distritos de Coimbra e Aveiro» feito por PEDRO FERNANDES TOMÁS na Portugália, I, pág. 821, nota-se para a actualidade uma profunda diferenciação.

Os núcleos populares oleiros da região aveirense estão sob a influência natural de importantes fábricas de produtos cerâmicos, e se a sua origem é a mesma, vão influenciar se não absorver nas suas formas e nomenclatura, nos processos em uso e na terminologia, os oleiros de louça grossa.

No singelo intuito de arquivar, e não com veleidades de apresentar estudo definitivo, traçam-se estas linhas, fruto de colheita directa e in loco, de um dos centros por certo mais antigos desta região: o centro de Vagos.

Em Aveiro desapareceram as olarias puramente populares. Nada nos custa a crer que dentro de poucos anos as da sua região tenham o mesmo triste fim.

Aveiro, pelos elementos que nos foi possível colher, era importantíssimo centro pelo séc. XVI, e do seu notável valor dá-nos conta JOAQUIM DE VASCONCELOS nas suas «Relíquias de Arte Nacional» no Catálogo da Exposição distrital de Aveiro em 1882. / 34 /

E tão grande era a sua importância, e tal valor tinha na terra, que havia aqui a «Torre dos Oleiros» cuja entrada se tapou por provisão de Filipe I em 1585 −, o «Bairro das Olarias», representação da classe pelo seu juiz com bandeira das padroeiras na procissão do Corpus Christi, e dança espeçial «dança dos oleiros» nos festejos públicos onde eles tomavam parte muito importante. Foi este o panorama da classe nesta risonha cidade de Aveiro.

Por 1813, segundo o mesmo autor, entra em franca decadência a indústria com a demolição dos 10 fornos existentes, sem dúvida a pedido da indústria, que por essa data na própria cidade e em pontos próprios se estabelece.

Quer por influência dos industriais a quem não convinham os pequenos fabricantes, quer por melhoria da paga aos populares que abandonam a sua «fábrica» pouco remuneradora, facto indiscutível é que Aveiro, centro exportador de grande importância de produtos de barro vermelho, cujas invenções de formas são notadas por Fr. FRANCISCO DE S. TIAGO na sua Crónica da Santa Província de N.ª S.ª da Soledade em 1762, sofre o seu golpe mortal para nunca mais se erguer dentro do carácter diferencial que possuía.

O exemplo da história dá como muito provável o desaparecimento de núcleos de menor importância, sobrecarregados como estão actualmente por contribuição industrial.

Algures foquei eu este problema ao tratar das condições de vida melhor chamar-lhe de morte das olarias de Barcelos, apontando tal imposto como carga pesada, quando em boa verdade as olarias nos núcleos puramente populares não são indústrias na verdadeira acepção do termo, mas sim uma forma subsidiária para equilibrar o orçamento doméstico.

Prova do facto é que em Vagos o centro que neste caso importa na época de inverno a oficina do oleiro desaparece por completo, por impossibilidade absoluta de efectuar qualquer trabalho.

Os centros populares oleiros como aliás qualquer outro estabelecem-se onde as matérias primas mais abundam.

Em povoação tão antiga como é Vagos, a 11 km a S. O. de Aveiro e cortada pela estrada de Aveiro à Figueira da Foz, com S. Tiago apóstolo por orago, teria florescido esta indústria, tão limitada hoje na sua produção tipológica e numerária.

Facto curioso a apontar é ser o barro de Vagos o melhor da região, de tal forma notável que o centro de Ovar por 1877 com 15 fábricas de louça vermelha di-lo MARQUES GOMES em O Distrito de Aveiro dele se vinha fornecer ali, aproveitando para tal fim o transporte natural dessa parte da região a Ria. / 35 /

A título de curiosidade direi cingindo-me a MARQUES GOMES que a principal exportação de Ovar era para Porto e... Aveiro.

Quando Aveiro se bastava a si próprio e exportava para Viana e Caminha, terminam as suas olarias, para seguidamente importar de Ovar os mesmos produtos.

PINHO LEAL no Portugal antigo e Moderno dá notícia da existência em Vagos de 12 fábricas de louça de barro ordinário.

Em 1943 data da minha colheita o fabrico da olaria estava cingido a: Francisco Ferreira Regalado e Viúva de António Ferreira Regalado, em Vagos; em Tabuaço, no Cabeço das Pedras, por Abel Vidinha ou Carrão e José Ferreira Regalado; e finalmente, em Oca, por António de Oliveira Novo.

Em Vagos, como em Guimarães e Barcelos, Canha e Malhada Sorda, sente-se nos nomes indiscutível ar de parentesco.

Na classe observa-se nítida decadência, mas mais profundamente se sente nos termos que se vão perdendo, nos usos que de novo se introduzem no sistema de fabrico e de cocção, tão moderno este último, tão destituído de carácter próprio que infelizmente nem vale a pena narrá-lo.

Outro tanto se não dá em Arada, centro curiosíssimo; sofrendo dos males de Vagos, ficará para uma nota seguinte.

Destas cinco pobres fábricas, pobres nas condições de vida que têm, mas ricas na anatomia primitivista das suas peças, vão saindo:

alguidares, cântaras, tigelas e jarras (fig. 1), tijolos de lar, telha e beiral.

Pouco variada a forma; diminuto número de espécies as fabricadas.

Os mil quilos de barro ficam ao oleiro por 21$00, pois custa o barro na barreira e o seu corte 5&00, sendo a diferença para o carreto.

Corta-se delgadinho no barreiro e deita-se-lhe água para que curta.

Curtido, passa ao terreiro ou amassadoiro onde se amassa a pés e se lhe tiram os nós e as pedras.

Na banca uma mesa é então escolhido completando a extracção dos nós e apertando-o para lhe tirar as bolhas.

Desta massa se fazem as pelas, vocábulo este generalizado a todos os centros que conhecemos.

Na cabeça da roda deita-se pó barro pobre, diz o meu informador para o barro não lhe aderir, e frente à adequina / 36 / onde se coloca o loiceiro ou alpiota com água e a ferramenta sentado no assentadoiro, com o pé na estrobeira, vão produzilldo pela forma tão conhecida as peças enumeradas.

 

 
 

Fig. 1 - jarra, borreto, tigela, alguidar Cântaras n.os 1, 2, 3. 4

 
 

 
 

cana de trabalhar na roda - para puxar o barro (fig. 2)

cana de margear - para fazer o tremido (superfície de ondulação estreita)
cana de rapar tigelas - para lhes fazer o fundo (figs. 3 e 4) e
alpanatas - panos para alisar a peça amaciando-a

 

É curiosíssima, e tem sido minuciosamente colhida, a uniformidade de um certo número de caracteres em todos os centros oleiros.

Ainda em Vagos não encontrei aquela resposta que quem averigua um facto procura a cada instante achar: o motivo de desde Canha − ver Trabalhos da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, voI. X, fase. 2 − a Barcelos − in Ethnos, II − e Vagos ser de 7 o número de tamanhos fabricados nas peças de maior capacidade(1).

Comercializado o uso, vão-se perdendo os vocábulos próprios de cada tamanho, achando obra curiosa a sua colheita, para em tempo futuro se procurar penetrar com fundamento senão na origem do número a predilecção popular pelo 7, já estudada ao menos fazer-se estudo comparativo de costumes, método patrocinado e aconselhado entre outros por P. DE SAINTYVES. / 38 /

Assim, por ordem crescente de tamanhos 1 a 7 chamam entre os oleiros:

quartola, canada, mido grande, mido pequeno, quartilho, borretão e borreto.


E notemos que equivalendo uma canada a 2 litros a cântara de canada tem uma capacidade aproximada a 25 litros, e a mesma peça de quartilho, que deveria ter de capacidade meio litro, tem aproximadamente 3 litros.

 

 
 

Fig. 7 - Note-se o emprego da jarra, idêntico ao das cântaras, e a sua colocação quando vazias.

 

É esta disparidade de números que não me tem permitido encontrar o fio desta meada: regra seguida no esta belecimento dos nomes.

As capacidades correspondentes nas cântaras aos números de 4 a 7 são aproximadamente: 30 litros, 25, 20 para 1, 2 e 3; o n.º 5 com 3 litros e o n.º 7 com 2,5 decilitros.

Os alguidares são feitos nos 6 primeiros tamanhos.

Da lambuge o óleo de barro se fazem as asas, e estas têm pegadouro parte aderente à peça e que se se lhe separa se não estiver pregada de sasão e refrego fig. 5 ou friso fig. 6 conforme pertencem às cântaras grandes ou pequenas.

Antes de ir ao forno, mas já seca e asada, dá-se-lhe um banho banho amarelo de Arada desfeito em água com o fim de, dando à peça uma cor mais encarnada, mais bonita ela se torne à vista. / 39 /

Findo o banho, a peça deve ser bem enrolada rebarba-se o fundo rapa-se para ficar mais liso.

A decoração é pobre, mas arquivemos o que há:

na borda dos alguidares faz-se um sulco profundo ondeado a bicha; e friso chamam aos pobres ornatos na semalha da boca das cântaras.

 

 
 

Fig. 8 - «Cântara cheia»

 

Fica pronta para a cocção. É enfornada e dará certo lucro quando pronta se não arrunhar aluir a fornada ou ficar apertada queimada em demasia.

E nesta forma, com seus usos se vai finando este centro oleiro na região de Aveiro.

J. S. PAES DE VILAS-BOAS

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(1) Pena é que nem ARMANDO DE MATOS na sua A olaria no Douro-Litoral em in Memoriam do Dr. Pedro Vitorino nem MARIA LUÍSA CARNEIRO PINTO em indústrias caseiras no Douro-Litoral, IX, de 1944, para só referir os mais modernos trabalhos, façam referência a este facto.

 

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