QUEM entra na vila da
Feira, pela linha férrea do Vale do Vouga, desce da estação pela rua do dr. Santos Carneiro, admirando a baixa
verdejante até ao casario
do povoado estendido de norte a sul.
Para a esquerda, numa lomba elevada do terreno, encimando o novo
edifício da cadeia comarcã, ficam-lhe as quase ruínas da velha Casa de
Justas.
Foi o solar de uma família fidalga, orgulhosa de descender daquele fero
Pero Coelho a quem o mais fero D. Pedro o Cru trincou cru o coração
arrancado pelas costas, em castigo de se contar entre «os brutos
matadores» da «linda Inês posta em sossego».
Ainda lá existia uma velha pedra de armas com uns
coelhinhos avultando em rude escultura.
Pois nesse pardieiro, desamparado e em ruína, nasceram
a bisavó e o avô do grande marquês de Pombal.
Também nela nascera, três gerações antes, um Gaspar Leitão Coelho, de
quem a parcimónia de herança fez um enqueredor, distribuidor e escrivão
de serventia na então vasta comarca da Feira.
Filho segundo de fidalgo pobre, casara com D. Cecília Pinto, nascida de
Pedro de Melo Soares, o do Púcaro, e de D. Briolanja Pereira. Talvez por
esta alcunha de louceiro os entendidos em linhagens dêem facilmente com
ele.
O Gaspar e a D. Cecília tiveram descendência, pelo menos dois filhos:
um do mesmo nome do pai e que chegou
'a licenciado e desembargador e o outro António Soares Coelho, cuja
descendência veio a viver na Casa de Justas, sendo sua bisneta D. Ana
Maria de Viveiros Freire, mãe de uns poucos de bastardos do último conde
da Feira, D. Fernando Forjaz Pereira Pimentel, que antes fora dom prior
da colegiada de Guimarães.
A D. Cecília morreu,
deixando o viúvo e o filho, ambos Gaspares Leitão
Coelho, a viverem na Arrifana, freguesia
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do concelho da Feira, à borda da estrada de Lisboa ao Porto e confinante
com S. João da Madeira.
O pai Gaspar casou-se de
novo. Casamento de conveniência, uma mésalliance, com uma filha de um Sebastião Lopes e de uma Joana Fogaça,
que, ainda para mais, se chamava burguesissimamente Eva Machada.
Mas o Lopes era rico e a Eva tão boa criatura que se
afeiçoou ao enteado Gaspar.
Em 1590 morre o Sebastião Lopes, partilham-se os bens dele, e a
viúva,
Joana Fogaça, doa ao genro e à filha a sua parte das propriedades em
Gaiate e Cesár.
Fazem então a Eva e o Gaspar testamento
in eadam charta e deixam esses
bens ao enteado dela e filho dele: Gaspar Leitão Coelho, licenciado em
direito e futuro desembargador, com encargo de missas por alma de ambos
na igreja de Arrifana.
Este segundo Gaspar casa com D. Joana de Mesquita e
passa a residir na Casa de Justas, onde lhes nasceu uma
filha D. Luísa de Melo.
Durante os seus estudos em Coimbra ou pela vida fora,
em qualquer judicatura, encontra-se o licenciado Gaspar com
o seu colega Sebastião de Carvalho.
Casara este com D. Maria de Braga e Figueiredo e, como
neto de um cónego da Sé de Évora, vivia à lei da nobreza.
O colega Gaspar orgulhava-se de descender dos Coelhos
e lá tinha os animalejos de pedra sobre a porta da moradia.
Nada mais natural do que estreitarem os laços da amizade em ligação de família e, assim, a D. Luísa de Melo
casou com o filho do Sebastião de Carvalho, do mesmo
nome e da mesma profissão do pai.
Trouxe a D. Luísa ao casal aqueles bens de Gaiate e de Cesár e tanto
bastou para que o Sebastião de Carvalho, segundo do nome e desembargador
como o pai, se dissesse e intitulasse senhor da honra de Gaiate e da
torre de Cesár
trazidas ao casal por cabeça da sua mulher e acrescentasse o
Melo nobilitante ao nome do filho de ambos. Foi assim que
o avô do grande marquês se chamou Sebastião de Carvalho e Melo, apelidos
continuados no neto com o acréscimo do sobrenome José.
Mas o Sebastião de Carvalho e Melo não se contentou
só com o intitular-se, como o pai, senhor da honra e da torre supostas nos bens provindos da herança do Sebastião
Lopes pela linha torta da madrasta do avô. Quis mais.
E intentou demanda no juízo da correição do cível da corte contra Martim
Teixeira Coelho de Melo, senhor da vila de Teixeira e de Sergude, para
haver uns morgados, afirmando pertencerem-lhe por ser segundo neto de
Gaspar Leitão Coelho e este ser (como não era) filho de Gonçalo Pires
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Coelho, donatário de Felgueiras e de Vieira, e da sua mulher
D. Violante de Magalhães.
Nesta paternidade estava o X da questão.
Contrariou a parte adversa, dizendo não ter o Gonçalo
tido outro filho além de Aires Coelho, de quem o Martim
de Melo directamente descendia.
Apresentou o Sebastião de Carvalho e Melo um terceiro
traslado transcrito em Tentúgal de 'um forjado em Évora de
outro «que se finge» ser de uns autos de justificação feita na
Feira.
Este primeiro traslado tinha a assinatura de Diogo de
Pinho e não consta ter havido na Feira tabelião ou escrivão
com tal nome.
De rebusca em rebusca, os advogados dos réus vieram
a esmiuçar a história do primitivo Gaspar Leitão Coelho e a
proveniência, insuspeita de honra e torre, dos bens de
Gaiate e Cesár.
Ainda tentaram dividir em dois o Gaspar: um reles,
escrivão, casado com a Eva Machada − e o outro nobre, com honra e
torre, marido da D. Cecília; mas fora a própria Eva, pela sua mãe
Joana Fogaça, a transmissora dos bens de
Gaiate e de Cesár à posse do viúvo e do filho da D. Cecília.
Portanto o Gaspar nobre e
rico era o reles escrivão e
enqueredor, o próprio Adão daquela Eva sem filhos, e esta
a Machada a cortar cerce as prosápias de descendência nobilitante, mal firmadas num terceiro traslado de documento
suspeito e provindo de incógnito notário.
O Sebastião de Melo esmoreceu, vindo a vender os bens
de Cesár e Gaiate ao fidalgo do Côvo, António de Magalhães e Meneses.
Mas o seu filho prosseguiu a demanda, fez-se linhagista
e escritor para a sustentação do seu inventado direito e o neto, usando o apelido Melo da bisavó feirense, ainda por
largo tempo continuou os recursos.
De tudo isto, porém, só tiro uma consequência e única
certeza: a bisavó e o avô do primeiro marquês de Pombal e conde de
Oeiras, Sebastião José de Carvalho e Melo, eram
meus patrícios e nasceram na Feira, ali na velhíssima Casa
de Justas, agora a cair aos pedaços como pardieiros mal
tratados.
Feira, 25 de Abril de 1945.
VAZ FERREIRA |