Miguel de Oliveira, A campanha de entre Douro e Vouga, Vol. XI, pp. 161-173

A CAMPANHA DE ENTRE DOURO E VOUGA

NA SEGUNDA INVASÃO FRANCESA

AINDA hoje o «tempo dos franceses» marca época no espírito do nosso povo. Recordam-se atrocidades e vinganças, cenas de pavor e rasgos de heroísmo, daqueles dias em que Portugal, como diz CAMILO, era «tão façanhoso contra franceses e tão roupa deles». Quando, porém, se pretende concretizar algum episódio referido pela tradição, tudo aparece vago e confuso.

Vamos dar sumária notícia do que se passou entre Douro e Vouga, para mais facilmente se poderem situar no quadro histórico quaisquer memórias, documentos ou tradições, com que os leitores desejem contribuir para o esclarecimento dessa campanha. Os aspectos propriamente militares, deixamo-los ao estudo dos competentes, que nas obras de NAPIER e CHARLES OMAN encontrarão valiosas informações, sobretudo acerca dos combates de Albergaria e Grijó(1).

A INVASÃO DOS FRANCESES

As tropas do marechal Soult, duque da Dalmácia, entraram no Porto às 6 horas da manhã do dia 29 de Março de 1809, Quarta-feira de Trevas. Foi-lhes fácil empresa a conquista / 162 / da cidade, porque não chegaram a encontrar-se com forças verdadeiramente organizadas. Tudo se improvisara, homens e armas. Dos preparativos de defesa do Porto, ficou como nota cómica o seguinte esclarecimento que o brigadeiro Bernardim Freire de Andrade, Governador das Armas, após a uma ordem que recebera da Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra e Marinha: «Fique V. S.ª na inteligência que pela palavra − Cavallo − que vem no AVIZO para as ordenanças montadas, tambem se deve entender as egoas e os que tiverem cavallos ou egoas devem ser reputados cavalleiros».

Diante das tropas francesas, os habitantes da cidade, tomados de pânico, só pensaram em fugir, apesar da chuva e mau tempo que persistiam, após uma noite de medonha tempestade. Grande multidão acorreu à margem do Douro, no intento de passar para Gaia. Deu-se então o conhecido desastre da ponte de barcas, que tão viva impressão deixou(2).

Nesse mesmo dia, o bispo D. António de S. José de Castro, que na noite anterior se havia retirado para o convento da Serra do Pilar, pôs-se a caminho de Lisboa, levando a bom recato o cofre militar, «que hera muito importante».

Chegado à vila de Ovar, «ali se embarcou tendo a percaução de levar todos os barcos comsigo, para evitar algum embarque do inimigo, deregindo sse a Aveiro salvando tudo»(3). Nesta cidade, o prelado entregou ao reitor de Avanca, Francisco de Paula Farinha, uma carta para o Cabido com instruções a respeito do governo da Diocese.

Senhor da cidade, Soult ordenou aos generais Franceschi, Mermet e Thomieres que passassem o Douro e avançassem para Sul, apenas se restabelecesse a ponte de barcas. Passou primeiro a divisão de cavalaria do general Franceschi, composta de seis regimentos.

No dia 30, Quinta-feira Santa, começaram as tropas francesas a descer pela estrada real, vindo uma guarda avançada de cavalaria até Oliveira de Azeméis, onde ficaram cerca de 280 cavalos. Daqui adiantaram-se algumas forças para o Pinheiro da Bemposta, e delas se destacaram patruIhas para Angeja e Albergaria-a-Velha. O grosso da cavalaria, no efectivo de 400 cavalos, ficou na Arrifana. Para o lado do mar, a infantaria ocupou a Vila da Feira com 1.500 homens / 163 / e Ovar com 1.200. O quartel general de todos estes destacamentos era em Grijó.

Com o decorrer das operações, modificou-se naturalmente a distribuição das tropas e o seu contingente. A avançada francesa estendeu-se até o Vouga, mas sem acção importante junto à costa e à margem da ria.

Por toda a parte, diz SORIANO, o inimigo achou as povoações desertas. Os habitantes, retirando-se para os montes, deles desciam diariamente para perseguirem os franceses». O mesmo afirma nas suas memórias um oficial francês: «L'avant-garde avait trouvé les villages abandonés; les habitants, retirés dans les montagnes, ne cessaient de harceler nos troupes et de leur causer des pertes. On fut forcé d'agir contre ces insurgés dont on tua un assez grand nombre»(4).

Parece, todavia, que, embora se generalizasse o terror, tal êxodo apenas se verificou nas povoações próximas da estrada real.

Deve dizer-se que nesta região o inimigo não logrou encontrar colaboracionistas. O memorialista registava, com certa mágoa, o contraste que oferecia a natureza, sorridente, acolhedora, em plena primavera, com o carácter do povo, agressivo, absolutamente intratável. Era preciso procurar subsistências por muito longe e com todas as cautelas, porque a população escondia ou destruía quanto pudesse servir aos invasores.


A OFENSIVA LUSO-BRITÂNICA

As notícias do Porto causaram alarme em Coimbra. O coronel Nicolau Trant, que ali havia chegado como governador militar, preparou logo um corpo expedicionário que em 31 de Março se pôs em marcha para o norte. Dele fazia parte um aguerrido batalhão académico. Outros elementos se lhe foram agregando pelo caminho. A 9 de Abril, chegavam essas tropas à margem do Vouga, onde se mantiveram a fim de impedir aos franceses a passagem do rio, já que não dispunham de efectivos para empreender acção ofensiva(5).

Um mês depois, a 9 de Maio, vieram juntar-se-lhes as tropas de Wellesley, destinadas a avançar para o Porto. Em Mogofores, separou-se destas uma divisão comandada pelo major general Rowland Hill, que na tarde desse mesmo / 164 / dia chegou a Aveiro e seguiu imediatamente pela ria até Ovar, onde desembarcou no dia 10, «au lever du soleil», como diz NAPIER.

À meia noite de 9 para 10 de Maio, atravessaram o Vouga e arrancaram contra os franceses as forças de Wellesley, divididas em dois corpos principais, um comandado pelo tenente general Paget e outro pelo tenente general Sherbrooke. Às 2 horas da madrugada, a divisão de Trant, que já estava na vila de Serém, seguiu-lhes pela esquerda.

Reunidas todas essas forças, defrontaram o inimigo na gandra entre Albergaria-a-Velha e Albergaria-a-Nova.

O combate principiou às 4 horas e meia da manhã e estava concluído às 10. Os franceses, batidos, recuaram, primeiro para o Pinheiro da Bemposta, depois para Oliveira de Azeméis e enfim para Grijó.

Indo-lhes no encalço, o exército luso-britânico, em que se salientava a cavalaria comandada por Cotton, entrou em Oliveira nesse mesmo dia 10, pelas 4 horas da tarde, e ali ficou uma noite o quartel general de Wellesley. A divisão de Trant, em que seguia o corpo académico, teve ordem de ladear para a esquerda, quando chegou ao rio UI, e tomou a estrada de Madail, em cujos pinhais acampou.

No dia 11, pela manhã, todo o exército aliado prosseguiu o avanço. As forças mais numerosas continuaram pela estrada real. A divisão de Trant seguiu de Madail para a Vila da Feira, onde chegou às 11 horas e meia. Já ali foi encontrar a divisão de Hill. que devia ir pela beira-mar, mas se dirigira também à Feira, ou por erro na transmissão de ordens, ou por se ter lançado na perseguição de inimigos que fugiam de Ovar para essa vila.

O novo recontro com os franceses travou-se pelas alturas de Grijó, onde eles tinham concentrado a sua força na totalidade de 5.200 homens, sendo 1.000 de cavalaria, protegidos por artilharia postada no cabeça do Picôto. Wellesley, em manobra bem conduzida, obrigou-os a deixar as suas posições e a prosseguir na retirada.

Sabe-se que os generais Mermet, Thomières, De Laborde e Franceschi almoçaram nesse dia no convento de Grijó, onde se tinham instalado. Quanto ao jantar, diz uma testemunha presencial: «os Francezes fugírão tão precipitadamente que no dia 11 deixárão o jantar em Grijó, que servio para os Inglezes»(6). SORIANO, porém, assevera que retiraram «em boa ordem e defendendo-se sempre como puderam». E acrescenta: «Os ingleses pararam durante a noite, ao / 165 / passo que os franceses, continuando a retirar-se, passaram o Douro e entraram no Porto».

No dia 12, pela manhã, todas as forças luso-britânicas se reuniram em Gaia e, à tarde, em operação audaciosa, reconquistaram o Porto. A acção dos franceses, nesta zona de entre Douro e Vouga, tinha durado 43 dias, desde a Quinta-feira Santa à Quinta-feira da Ascensão (30 de Março a 11 de Maio de 1809).


O MORTICÍNIO DA ARRIFANA

À margem destas operações sumariamente descritas, houve episódios que gravaram na memória do povo o terror dos franceses. O mais dramático deu-se na Arrifana..

Um dia, o tenente-coronel francês de cavalaria Lameth, ajudante de campo do marechal Soult, tendo ido ao Porto levar informações, voltava de lá para a vanguarda com diminuta escolta, quando foi surpreendido por uma emboscada, junto à ponte de Cavaleiros, em Santiago de Riba-Ul. Lameth e dois dragões da sua escolta caíram mortos aos primeiros tiros. O tenente Choiseul, ajudante de campo do general Franceschi, que ia com eles, apesar de aprisionado e despojado do que levava, logrou escapar-se.

A morte de Lameth foi muito sentida, porque se tratava de um militar digno de apreço. A. D'ILLENS  faz-lhe este elogio: «Les rares qualités de cet intéressant offlcier, et sa bravoure à toute épreuve, semblaient devoir lui mériter une mort plus glorieuse».

Soult mandou imediatamente o general Thomieres à Arrifana, com uma brigada, para castigar os assaltantes. Constituíam estes uma guerrilha, chefiada por Bernardo António Soares Barbosa da Cunha, natural da Arrifana, que tratou de se pôr a salvo, correndo para Águeda a juntar-se às forças de Trant. Não conseguindo haver à mão os verdadeiros culpados, mas sabendo que eles eram da Arrifana, Thomières. cercou a povoação na madrugada de 17 de Abril. Quando o cerco se foi apertando, o povo acudiu à igreja, que ficou a servir-lhe de prisão. Dali foram retirados em fila todos os mancebos e homens válidos, para efeito de contagem, e o que perfazia o número de cinco era apartado. Coube o número fatídico a uns 71 homens, que Thomières mandou arrastar para o campo da Buciqueira, onde nesse dia foram fuzilados. Seguiu-se o incêndio dos melhores prédios da freguesia.

O caso vem brevemente noticiado e comentado na Gazeta de Lisboa (Sup. extraord. ao n.º 19, 9 de Maio), / 166 / que diz transcrever a informação dos «actuais Diários do Porto»:

«S. JOÃO DA MADEIRA, E ARRIFANA

«Oito moradores, ou antes facinorosos destes lugares, depois de legalmente convencidos de haverem indigna e atraiçoadamente assassinado hum Official Francez de merecimento (he o que se diz ser Sobrinho do mesmo Soult), e cuja perda tem sido sobremaneira sensível a todo o Exercito, forão prezos, sem perda de tempo enforcados, e as suas casas queimadas.» Este Official foi morto em huma emboscada, sempre licitas, em tempo de guerra: os infelizes justiçados pertencião ao lugar, mas não forão os da emboscada. Trata-se de fazer sangue para metter medo, e nada mais».

A notícia, como se vê, dissimulava a extensão e realidade da tragédia. À vista dos registos paroquiais, um investigador local apurou o seguinte, quanto ao número e naturalidade dos assassinados: 64 da Arrifana, 4 de S. João da Madeira, 2 de Mosteirô, 1 da Vila da Feira. Houve, porém, actos isolados de represália, que tornam mais elevado o número das vítimas(7).

É que não faltavam francos-atiradores. A. D'ILLENS, depois de referir que os habitantes da Arrifana receberam «un châtiment exemplaire», informa que foi preciso reprimir nessa ocasião outros insurrectos: «Au même moment le général Franceschi marcha contre un rassemblement de huit mille insurgés postés à Albergharia-Velha, les mit en déroute complète et leur tua beaucoup de monde. Il se porta sur un autre rassemblement, à l'embouchure de la Vouga, et le dispersa entièrement»(8).

Na próxima freguesia de Cucujães, um indivíduo chamado Francisco Dias assassinou, a 15 de Abril, no lugar das Cavadas, «um francês que levava de Oliveira de Azeméis para Arrifana um saco com dinheiro para pagamento aos soldados franceses do seu vencimento pecuniário». Escapou este à justiça de Soult, mas, volvido algum tempo, enlouqueceu.

O mosteiro de Cucujães nada sofreu; os monges, porém, transidos de medo, «fugiram desordenadamente, chegando a escalar o muro da cerca pelo lado sul, por onde passaram e fizeram passar mulas carregadas de bastante dinheiro, / 167 / muitas alfaias do culto e outros objectos de valor e estimação».(9).

Próximo do Pinheiro da Bemposta, segundo se diz, os franceses bivacaram no sítio chamado Olho Marinho, «partindo daí à pilhagem pelos lugares circunvizinhos. Na passagem por esta vila, assassinaram, violaram, destruíram; a vingança, porém, não se fez esperar, pois que, sendo atraídos à quinta de Fontechãs, aí pagaram, com a vida, as suas proezas».(10)


O PINHEIRO DAS SETE CRUZES

Na freguesia de Mazelas, o velho Pinheiro das Sete Cruzes é testemunha, ainda viva, de outra vindicta sangrenta, a última que os franceses praticaram na retirada. Eis um relato do acontecimento:

«Vagueava por esta região um indivíduo de má fama e piores acções, chamado Catafula. Era de Olívães, freguesia de Nogueira da Regedoura.

Um dia, num desforço patriótico, matou três soldados franceses, dos muitos que passavam pela estrada real. Foi preso com outros, acusados de cumplicidade, sendo todos condenados à morte pelas autoridades militares francesas.

O Catafula quis confessar-se, e foi chamado o P.e João de Sá Rocha, capelão do convento de Monchique (Porto), que se encontrava em Anta, sua terra natal.

Os franceses obrigaram o Padre a revelar a confissão do Catafula, para virem ao conhecimento de todos os seus cúmplices.

O venerável P.e Rocha cumpriu nobremente o seu dever: não revelou uma só palavra da confissão do Catafula. Por isso, foi arcabuzado e pendurado no histórico «Pinheiro das Sete Cruzes» juntamente com seu irmão Manuel, com o Catafula e mais quatro condenados. Manuel de Sá Rocha fora morto pelos franceses no sítio das Barrancas e depois arrastado até juntos dos cadáveres do irmão Padre e companheiros executados.

Passados anos, uma sobrinha do virtuoso P.e Rocha, de nome Francisca Alves de Sá, da Idanha (Anta), mandou construir, junto ao Pinheiro, uma Capelinha em cujo retábulo mandou gravar estes dizeres: «Aqui foram mortos pelos franceses, a 11 de Maio de 1809, o venerando Padre João de Sá Rocha, seu irmão  / 168 / Manuel e outros, nascidos no lugar de Esmojães, freguesia de Anta.

Vós que tendes sentimentos
lembrai-vos dos nossos tormentos.

Vós que por aqui passais
lembrai-vos de nós cada vez mais.»
(11)


Há também notícia de que os franceses mataram dois homens nas Airas (S. João de Ver) e desceram para Arcozelo onde praticaram roubos e outras violências.

Aliás, em carta dirigida ao nosso ministro da guerra, sobre as operações no Minho, dizia Artur Wellesley: «Tenho visto muitas pessoas pendentes, enforcadas em árvores ao longo das estradas, executadas por nenhuma outra razão que eu possa saber, senão porque não eram amigas da invasão dos franceses, nem da usurpação do seu país, e podia traçar-se a rota da sua retirada pelo fumo das aldeias a que eles lançam o fogo»(12).


OPERAÇÕES NA BEIRA-MAR

Nas povoações afastadas da estrada real, não houve acções de relevo, além da já mencionada passagem da divisão do general Hill pela ria de Aveiro. Dentro do plano geral, segundo diz OMAN, esta divisão destinava-se a interceptar a retirada às tropas de Franceschi.

Conta o historiador que as autoridades de Aveiro a receberam com a melhor simpatia e tinham reunido os barcos suficientes para o transporte de 1.500 homens. Coube esta missão ao oficial da Marinha de Guerra, Isidoro Francisco Guimarães, que no entanto lamentava ter apenas conseguido aprontar 130 barcos, «quando a Ria tem 3 mil»(13).

A viagem fez-se durante a noite de 9 para 10 de Maio. «Era ainda de madrugada, continua OMAN, quando a brigada chegou a terra, e se Franceschi lá se tivesse dirigido uma hora mais cedo iria encontrar Hill na mais ameaçadora posição do seu flnnco. Mas a cavalaria francesa estava ainda afastada umas dez ou doze milhas, empenhada em incruenta demonstração contra a brigada de Cotton. / 169 /

Sabendo pela gente do campo que a cavalaria francesa estava acampada muito próximo dele, na Feira, e que a principal coluna inglesa vinha ainda longe, Hill concentrou os seus homens dentro dos muros (!) de Ovar, em vez de os ocupar na tentativa de interceptarem a retirada de Franceschi. Tinha decerto muita razão, pois seria arriscado repelir três batalhões, sem cavalaria nem artilharia, entre as tropas de Mermet na Feira e as colunas de cavaleiros franceses que retiravam. Hill reenviou, por isso, os seus barcos a Aveiro para transportarem a brigada de Cameron, e ficou em descanso toda a manhã. À tarde, os seus piquetes foram atacados pela infantaria francesa: Mermet tivera conhecimento da chegada e enviara da Feira os três batalhões do 31.º Léger para o conter e proteger o flanco de Franceschi. As companhias voltigeur desta força fizeram pressão sobre Hill, mas não puderam aventurar-se demasiadamente. Gastou-se a tarde em fúteis escaramuças, mas por último a cavalaria francesa retirou a galope, e os Dragões Ingleses, perseguindo-a em fogoso ataque, aproximaram-se do 31.º Léger. Hill, vendo-se mais uma vez em contacto com os seus amigos, arrancou então de Ovar, fez pressão sobre as companhias voltigeur francesas, que retiravam apressadamente, atacou pelas costas o regimento e, por último, foi alcançar o principal corpo de Mermet nas alturas que dominam Grijó. As escaramuças deram-se quase sem derramamento de sangue − Hill não perdeu um único homem, e a infantaria francesa teve apenas meia dúzia de feridos»(14).

Notícias do tempo dizem que a divisão de Hill, quando chegou a Ovar, «surpreendeo alguns Francezes que lá estávão, e depois rechaçou os que vierão da Feira em seu socorro, e resgatárão mais de 1.000 bois que tinhão roubado»(15). As bagagens tinham ficado em Aveiro e chegaram, pouco depois, com a segunda brigada, parecendo que não houve necessidade de voltarem lá os barcos.

Quanto ao local do desembarque, não encontrámos informação precisa. Há quem afirme que foi o cais do Puxadouro, em Válega(16). Afigura-se, no entanto, mais provável que fosse o cais da Ribeira, em Ovar.

JOÃO FREDERICO TEIXEIRA DE PINHO, nas suas Memórias e Datas para a História da Vila de Ovar, conta apenas o seguinte: «O General Thomier ficou estacionado na Vila da Feira, de onde mandava quotidianamente os seus Caçadores aqui /170 / descoberta, comandados pelo Capitão Guarin. Uma noite vieram os ardentes patriotas de Aveiro a combater os Franceses, e aí levantaram uma barricada na Ponte de José de Pinho, com sua peça montada. No dia seguinte Guarin encontrou o inimigo em posição defensiva e, apesar do sucesso inesperado, deu rijamente sobre eles, pondo-os logo em vergonhosa fuga, valendo-se da Ria, por onde escaparam à morte... Foi então que esta Vila esteve inocentemente a ponto de ser levada à espada e posta a saco, sendo salva pela prudência e magnanimidade daquele bravo oficial e perfeito cavalheiro.

«Em 11 de Maio desse ano entraram aqui 3.000 Ingleses e tiveram recontro com o inimigo na Ponte Nova, levando-o diante de si até à Feira, e dali ao Porto. Porém, a retirada precipitada dos Franceses deve-se, primeiro que tudo, à presença do Exército Anglo-Luso, que nesse mesmo dia tinha atravessado o Vouga».

Há erro na data do desembarque, mas o episódio da Ponte Nova é autêntico. Refere-o um testemunho do tempo: − A coluna «que veio a Aveiro, se deregio ao Ovar, estando ali a comer lhe chegou a noticia de que os Francezes estavão na Ponte Nova, que fica ao sahir da Vila, o Comandante Inglez mandou sem homens, que os atacaram fazendo-lhe algum estrágo, se pozeraõ em retirada.»(17).

O recontro com o capitão Guarin ainda há anos corria na tradição. Deu-se perto dos moinhos dos Pelames. Como era dia de mercado, a praça de Ovar estava cheia de gente, que largou em correria louca. «As estradas da Ribeira, da Mata e do Casal regorgitavam de fugitivos. Procuravam uns a Ria para se salvarem nos barcos, outros os pinhais e a Arruela para se esconderem». «Foi tal o receio que o acontecimento produziu em tôda a vila que muitos dos pacatos moradores da Arruela e S. Miguel se refugiaram nas Matas dos Ilhotes, Portinhos e Cruzeiro da Virgem [Válega] e por lá se deixaram ficar algumas horas a ver em que paravam as coisas.»(18).

Ovar ufana-se de ter dado à Guerra Peninsular pelo menos três heróis, que mais tarde se notabilizaram também nas hostes liberais: Bernardo António Zagalo, António da Costa e Silva e António Pereira Zagalo. O primeiro, sendo estudante em Coimbra e sargento de artilharia, comandou um grupo que libertou o forte da Figueira da Foz em Junho de 1808. António da Costa e Silva, mais tarde agraciado com o título de Visconde de Ovar, fez toda a campanha / 171 / desde 1808 e andou por Espanha e França em perseguição das tropas napoleónicas até 1814. António Pereira Zagalo, sendo estudante universitário, militou no batalhão académico em 1809, com o posto de alferes de artilharia. Cantou este os próprios feitos em poema que intitulou História da minha vida, no qual se lêem estes inspirados versos:

«Alistam-se estudantes novamente
Em forma de Legião organizada
Das armas todas; oitocentos homens
Era o total, que juntos a milícias
E a outros corpos, deram um composto
Já respeitável; tudo comandado
Era por Trant, um general valente.
A esta expedição que sobre o Porto
Se dirigiu, também eu pertencia».

A seguir, conta que adoeceu nesta campanha e só não tomou parte na terceira, contra Massena, por causa da moléstia, «que de todo vencida não estava»(19).

Diz-se, não sabemos com que fundamento, que a Filarmónica Ovarense começou a organizar-se em 1809, «com o auxílio de alguns soldados franceses que por aqui ficaram e constituíram família»(20).

Espinho, Ovar, Aveiro e outras «terras de pescarias» foram convidadas pelo governo de Soult a contribuir para que na cidade do Porto houvesse «abundância de pescados». Talvez não correspondessem «imediatamente e prontissimamente com todo o zelo de patriotismo» que ele desejava. O certo é que as vilas de Ovar e da Feira mereceram ser contempladas no último decreto que o Marechal Duque da Dalmácia assinou no Porto, já com o pé no estribo, a 12 de Maio de 1809. Não podendo levar na bagagem 3.700 pipas de vinho apreendidas em barcos sobre o Douro, deixou-as ele em testamento às «cidades do Porto, Braga, Barcelos, Vila do Conde, Póvoa, Viana, Vila da Feira, Valongo e Ovar». A Feira receberia 100 pipas, e Ovar outras 100 (21)

Na Vila da Feira, as tropas de Thomières tinham entrado no dia 31 de Março, pelas duas horas da tarde. «Algumas violências e pilhagens assinalaram, de começo, a sua presença. Foram assaltadas a capela do Castelo e a residência do respectivo capelão, Dr. Sebastião Peixoto, que pôde fugir a tempo com as valiosas pratas da capela. Deixando estas em Souto, sob a guarda do capitão Sousa Bastos, do Salgueiral, refugiou-se / 172 / em S. Vicente, onde permaneceu hóspede de João Pereira Gomes, do Casal, até à definitiva expulsão do invasor».

«Em Souto, o pânico da primeira hora foi grande... Muita gente se escondeu no vale da Gesteira e S. Silvestre.»

«Diz a tradição que... as donzelas de S. Vicente fizeram um voto. a N.ª S.ª da Boa-Nova, se ela preservasse a freguesia dos horrores da invasão. Estando os franceses em Arrifana e informando-se das povoações dos arredores, citaram-lhes S. Vicente, acrescentando logo: «Mas lá não entram vocês, porque há lá uma santa de muitos milagres e o povo apegou-se com ela para os livrar dos invasores». Um magote de soldados, querendo demonstrar que nem os poderes do céu resistiriam às armas de Napoleão, resolveu uma incursão a S. Vicente. Chegando, porém, ao Marco dos Arais, seguiram pela congosta do Mouquinho, tomando o rumo de Pintim e Válega, onde foram parar. O povo tomou o engano como providencial, e o voto cumpriu-se»(22).

Em Válega , há a tradição de que esses franceses foram avançando até perto da ria e se perderam no sítio chamado de Cabedelo, onde uns heróis locais, refeitos do primeiro susto, facilmente deram cabo deles. Sabe-se, por documentos, que andaram na guerra, além de outros desta freguesia, José da Silva Soares Laranjeira, alferes do regimento de milícias de Oliveira de Azeméis, e Domingos da Silva Graça, tenente do mesmo regimento. Ambos foram condecorados com as medalhas da campanha e depois mereceram ser demitidos em 1828 por terem dado em fervorosos liberais; em 1834, o primeiro era comissário da polícia em Válega e o segundo estava na câmara de Pereira Jusã como presidente interino.

Num lugar do extremo norte da freguesia, junto a Ovar, ficou abandonada uma pequena peça de artilharia, que se diz ser dos franceses e que em 1941 foi removida para o Adro Velho, onde se colocou junto de outras antigualhas, a fim de se não perder.

Como alguns párocos costumavam anotar ocorrências várias nos livros do registo, é possível que ainda apareçam mais notícias curiosas. Por agora, mencione-se a festa que os moradores da vila de Angeja celebraram, a 6 de Agosto de 1809, em honra de N. Senhora das Neves, «reconhecidos ao benefício, que havião recebido do Ceo, que prodigiosamente os / 173 / salvara dos estragos inimigos». Na véspera houve iluminações, música e fogo de artifício por um hábil «fogueteiro de S. A. R.», e no dia missa cantada, sermão, Te-Deum e procissão − tudo patrocinado pelo Juiz de Fora, que dali tinha fugido para Águeda, onde esteve com o exército de Trant enquanto lhe cheirou a franceses. A Gazeta de Lisboa, tão parca em notícias, consagra à festa uma página inteira do seu n.º 78, em 31 de Agosto. Vale a pena transcrever o que ela diz dos pregadores: «Foi hum Fr. Manoel da Rainha dos Anjos, Religioso da Provincia da Conceição, aggregado ao Corpo dos militares Academicos, que com os livros na esquerda, e as armas na direita, acabando de dar com seus Camaradas irrefragaveis testemunhos da sua coragem, continua a ostentar com louvor o seu grande engenho; foi outro o Reverendo Fr. João Nuno, da Ordem dos Pregadores, natural da Villa de Vagos, Bispado e Comarca de Aveiro, na Literatura profundo, em idéas sublime, de pensamento rico, na sã eloquencia raro, genio na verdade grande».

Onde abundavam heroísmos como o do Juiz de Fora, bem era que não minguassem oradores de tal «engenho e arte».

Padre MIGUEL DE OLIVEIRA

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(1) Principal bibliografia utilizada: "Gazeta de Lisboa", ano de 1809; Souvenirs d'un milltaire des armées françaises, dites de Portugal, por A. D'ILLENS (Paris, 1827); W. F. P. NAPIER, na versão francesa de MATHIEU DUMAS, Histoire de la Guerre dans la Péninsule (tomo 3.º, Paris, 1850); História da Guerra Civil, de LUZ Soriano (2.ª época, tomo II, Lisboa, 1871); Estudo Histórico sobre a Campanha do Marechal Soult, de A. P. TAVEIRA (Lisboa, 1898; A History of the Peninsular War, de CHARLES OMAN (vol. II, Oxford, 1903).

(2) A respeito dos acontecimentos do Porto, veja-se especialmente: 1809 − O Porto sob a segunda invasão francesa, por ARTUR DE MAGALHÃES BASTO; Lisboa. 1926. 

(3) − CONDE DE CAMPO BELO, D. HENRIQUE, Os Franceses no Porto em 1809. transcrevendo o testemunho de ANTÓNIO MATEUS FREIRE DE ANDRADE, no «Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto», vol. VII, págs. 269 e segs.

(4) A. D'ILLENs, ob. cit., pág. 187.

(5) Sobre o que se passou em Coimbra e os feitos do Corpo Académico, ver: Coimbra e a Guerra Peninsular, por MARIA ERMELINDA DE AVELAR SOARES FERNANDES MARTINS, 2 vol., Coimbra, 1944..  

(6)Gaz. de Lisboa, supl. ext. ao n.º 21, de 23 de Maio.

(7)SAUL EDUARDO REBELO VALENTE, Terras da Feira − Noticias e Memórias da Freguesia da Arrifana de Santa Maria, págs. 71 e seg., Coimbra, 1937.

(8)Ob. cit., pág. 199.. 

(9) P.e JOÃO DOMINGUES AREDE, Cucujães, págs. 114 e 115; Porto, 1914.  

(10)Portugal − Dicionário de ESTEVES PEREIRA, v. Pinheiro da Bemposta.

(11)P.e MANUEL F. DE SÁ, Santa Maria de Fiães da Terra da Feira, pág. 93, Porto, 1939-1940.

(12)A. P. TAVEIRA, ob. cit., doc. 97.

(13)A Barra de Aveiro em 1809, por BELISÁRIO PIMENTA, no «Arquivo do Distrito de Aveiro», voI. VIII, págs. 161 e segs.

(14)CH. OMAN, ob. cit., págs. 326-327.

(15)Gaz. de Lisboa, supl. ext. ao n.º 20, 16 de Maio 1809.

(16)Guia de Portugal, 3.º vol., págs. 565-566.  

(17)CONDE DE CAMPO BELO, doc. cit.

(18) − Almanaque ilustrado de Ovar para 1917 (6.º ano), pág. 125.

(19)A. DIAS SIMÕES, Ovar-Biografias, págs. 48, 63 e 82; Ovar, 1917..

(20)Almanaque cit., pág. 21. 

(21)A. DE MAGALHÃES BASTO, ob. cit., pág. 205.  

(22)Informações extraídas da Resenha Histórica das Freguesias de Souto, S. Vicente de Pereira e S. Martinho da Gandra. publicada pelo P.e AUGUSTO DE OLIVEIRA PINTO em folhetins da «Tradição» da Vila da Feira, desde Maio de 1935; págs. 159 e seg. 

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