AINDA hoje o «tempo dos
franceses» marca época no espírito do nosso povo. Recordam-se
atrocidades e
vinganças, cenas de pavor e rasgos de heroísmo,
daqueles dias em que Portugal, como diz CAMILO, era
«tão façanhoso contra franceses e tão roupa deles». Quando,
porém, se pretende concretizar algum episódio referido pela tradição,
tudo aparece vago e confuso.
Vamos dar sumária notícia do que se passou entre Douro
e Vouga, para mais facilmente se poderem situar no quadro
histórico quaisquer memórias, documentos ou tradições, com
que os leitores desejem contribuir para o esclarecimento
dessa campanha. Os aspectos propriamente militares, deixamo-los ao estudo dos competentes, que nas obras de NAPIER
e CHARLES OMAN encontrarão valiosas informações, sobretudo
acerca dos combates de Albergaria e Grijó(1).
A INVASÃO DOS FRANCESES
As tropas do marechal Soult, duque da Dalmácia, entraram no
Porto às 6 horas da manhã do dia 29 de Março
de 1809, Quarta-feira de Trevas. Foi-lhes fácil empresa a conquista
/
162 / da cidade, porque não chegaram a encontrar-se com
forças verdadeiramente organizadas. Tudo se improvisara,
homens e armas. Dos preparativos de defesa do Porto, ficou
como nota cómica o seguinte esclarecimento que o brigadeiro
Bernardim Freire de Andrade, Governador das Armas, após
a uma ordem que recebera da Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra e Marinha:
«Fique V. S.ª na inteligência que pela palavra − Cavallo −
que vem no AVIZO para as ordenanças montadas, tambem se
deve entender as egoas e os que tiverem cavallos ou egoas
devem ser reputados cavalleiros».
Diante das tropas francesas, os habitantes da cidade,
tomados de pânico, só pensaram em fugir, apesar da chuva
e mau tempo que persistiam, após uma noite de medonha
tempestade. Grande multidão acorreu à margem do Douro,
no intento de passar para Gaia. Deu-se então o conhecido
desastre da ponte de barcas, que tão viva impressão deixou(2).
Nesse mesmo dia, o bispo D. António de S. José de
Castro, que na noite anterior se havia retirado para o convento da Serra do Pilar, pôs-se a caminho de Lisboa, levando
a bom recato o cofre militar, «que hera muito importante».
Chegado à vila de Ovar, «ali se embarcou tendo a
percaução de levar todos os barcos comsigo, para evitar algum embarque do
inimigo, deregindo sse a Aveiro salvando
tudo»(3). Nesta cidade, o prelado entregou ao reitor de
Avanca, Francisco de Paula Farinha, uma carta para o Cabido
com instruções a respeito do governo da Diocese.
Senhor da cidade, Soult ordenou aos generais Franceschi,
Mermet e Thomieres que passassem o Douro e avançassem
para Sul, apenas se restabelecesse a ponte de barcas. Passou primeiro
a divisão de cavalaria do general Franceschi, composta de seis regimentos.
No dia 30, Quinta-feira Santa, começaram as tropas
francesas a descer pela estrada real, vindo uma guarda avançada de cavalaria até Oliveira de Azeméis, onde ficaram cerca
de 280 cavalos. Daqui adiantaram-se algumas forças para o
Pinheiro da Bemposta, e delas se destacaram patruIhas para Angeja e
Albergaria-a-Velha. O grosso da cavalaria, no
efectivo de 400 cavalos, ficou na Arrifana. Para o lado do
mar, a infantaria ocupou a Vila da Feira com 1.500 homens
/
163 /
e Ovar com 1.200. O quartel general de todos estes destacamentos era em
Grijó.
Com o decorrer das operações, modificou-se naturalmente a distribuição das tropas e o seu contingente. A avançada francesa estendeu-se até o Vouga, mas sem acção
importante junto à costa e à margem da ria.
Por toda a parte, diz SORIANO, o inimigo achou as
povoações desertas. Os habitantes, retirando-se para os montes,
deles desciam diariamente para perseguirem os franceses».
O mesmo afirma nas suas memórias um oficial francês:
«L'avant-garde avait trouvé les villages abandonés; les habitants, retirés dans les montagnes, ne cessaient de harceler
nos troupes et de leur causer des pertes. On fut forcé d'agir
contre ces insurgés dont on tua un assez grand nombre»(4).
Parece, todavia, que, embora se generalizasse o terror, tal êxodo
apenas se verificou nas povoações próximas da
estrada real.
Deve dizer-se que nesta região o inimigo não logrou
encontrar colaboracionistas. O memorialista registava, com
certa mágoa, o contraste que oferecia a natureza, sorridente,
acolhedora, em plena primavera, com o carácter do povo,
agressivo, absolutamente intratável. Era preciso procurar
subsistências por muito longe e com todas as cautelas, porque a população escondia ou destruía quanto pudesse servir
aos invasores.
A OFENSIVA LUSO-BRITÂNICA
As notícias do Porto causaram alarme em Coimbra.
O coronel Nicolau Trant, que ali havia chegado como governador militar, preparou logo um corpo
expedicionário que
em 31 de Março se pôs em marcha para o norte. Dele fazia parte um
aguerrido batalhão académico. Outros elementos
se lhe foram agregando pelo caminho. A 9 de Abril, chegavam essas tropas à margem do Vouga, onde se mantiveram
a fim de impedir aos franceses a passagem do rio, já que não
dispunham de efectivos para empreender acção ofensiva(5).
Um mês depois, a 9 de Maio, vieram juntar-se-lhes as
tropas de Wellesley, destinadas a avançar para o Porto. Em Mogofores,
separou-se destas uma divisão comandada
pelo major general Rowland Hill, que na tarde desse mesmo
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dia chegou a Aveiro e seguiu imediatamente pela ria até Ovar, onde
desembarcou no dia 10, «au lever du soleil»,
como diz NAPIER.
À meia noite de 9 para 10 de Maio, atravessaram o Vouga e arrancaram
contra os franceses as forças de Wellesley, divididas em dois corpos
principais, um comandado pelo tenente general Paget e outro pelo tenente
general Sherbrooke. Às 2 horas da madrugada, a divisão de Trant, que já
estava na vila de Serém, seguiu-lhes pela esquerda.
Reunidas todas essas forças, defrontaram o inimigo na gandra entre
Albergaria-a-Velha e Albergaria-a-Nova.
O combate principiou às 4 horas e meia da manhã e estava concluído às
10. Os franceses, batidos, recuaram, primeiro para o Pinheiro da
Bemposta, depois para Oliveira de Azeméis e enfim para Grijó.
Indo-lhes no encalço, o exército luso-britânico, em que se salientava
a cavalaria comandada por Cotton, entrou em Oliveira nesse mesmo dia 10,
pelas 4 horas da tarde, e ali ficou uma noite o quartel general de Wellesley.
A divisão de Trant, em que seguia o corpo académico, teve ordem de
ladear para a esquerda, quando chegou ao rio UI, e tomou a estrada de Madail,
em cujos pinhais acampou.
No dia 11, pela manhã, todo o exército aliado prosseguiu o avanço. As
forças mais numerosas continuaram pela estrada real. A divisão de
Trant seguiu de Madail para a Vila da Feira, onde chegou às 11 horas e
meia. Já ali foi encontrar a divisão de Hill. que devia ir pela
beira-mar, mas se dirigira também à Feira, ou por erro na transmissão de
ordens, ou por se ter lançado na perseguição de inimigos que fugiam
de Ovar para essa vila.
O novo recontro com os franceses travou-se pelas alturas de Grijó, onde
eles tinham concentrado a sua força na totalidade de 5.200 homens, sendo 1.000 de cavalaria, protegidos por
artilharia postada no cabeça do Picôto. Wellesley, em manobra bem
conduzida, obrigou-os a deixar as suas posições e a prosseguir na
retirada.
Sabe-se que os generais Mermet, Thomières, De
Laborde e Franceschi
almoçaram nesse dia no convento de Grijó, onde se tinham instalado.
Quanto ao jantar, diz uma testemunha presencial: «os Francezes fugírão
tão precipitadamente que no dia 11 deixárão o jantar em Grijó, que
servio para os Inglezes»(6). SORIANO, porém, assevera que retiraram «em
boa ordem e defendendo-se sempre como puderam». E acrescenta: «Os
ingleses pararam durante a noite, ao
/
165 /
passo que os franceses, continuando a retirar-se, passaram o
Douro e entraram no Porto».
No dia 12, pela manhã, todas as
forças luso-britânicas
se reuniram em Gaia e, à tarde, em operação audaciosa,
reconquistaram o Porto. A acção dos franceses, nesta zona
de entre Douro e Vouga, tinha durado 43 dias, desde a
Quinta-feira Santa à Quinta-feira da Ascensão (30 de Março
a 11 de Maio de 1809).
O MORTICÍNIO DA ARRIFANA
À margem destas operações sumariamente descritas,
houve episódios que gravaram na memória do povo o terror dos franceses.
O mais dramático deu-se na Arrifana..
Um dia, o tenente-coronel francês de cavalaria Lameth,
ajudante de campo do marechal Soult, tendo ido ao Porto
levar informações, voltava de lá para a vanguarda com diminuta escolta, quando foi surpreendido por uma emboscada,
junto à ponte de Cavaleiros, em Santiago de Riba-Ul.
Lameth e dois dragões da sua escolta caíram mortos aos
primeiros tiros. O tenente Choiseul, ajudante de campo do
general Franceschi, que ia com eles, apesar de aprisionado e despojado
do que levava, logrou escapar-se.
A morte de Lameth foi muito sentida, porque se tratava
de um militar digno de apreço. A. D'ILLENS faz-lhe este elogio:
«Les rares qualités de cet intéressant offlcier, et sa bravoure
à toute épreuve, semblaient devoir lui mériter une mort
plus glorieuse».
Soult mandou imediatamente o general Thomieres à
Arrifana, com uma brigada, para castigar os assaltantes.
Constituíam estes uma guerrilha, chefiada por Bernardo
António Soares Barbosa da Cunha, natural da Arrifana, que
tratou de se pôr a salvo, correndo para Águeda a juntar-se
às forças de Trant. Não conseguindo haver à mão os verdadeiros culpados, mas sabendo que
eles eram da Arrifana,
Thomières. cercou a povoação na madrugada de 17 de Abril.
Quando o cerco se foi apertando, o povo acudiu à igreja,
que ficou a servir-lhe de prisão. Dali foram retirados em fila todos os
mancebos e homens válidos, para efeito de
contagem, e o que perfazia o número de cinco era apartado.
Coube o número fatídico a uns 71 homens, que Thomières
mandou arrastar para o campo da Buciqueira, onde nesse dia
foram fuzilados. Seguiu-se o incêndio dos melhores prédios
da freguesia.
O caso vem brevemente noticiado e comentado na Gazeta de Lisboa (Sup. extraord. ao
n.º 19, 9 de Maio),
/ 166 /
que diz transcrever a informação dos «actuais Diários do
Porto»:
«S. JOÃO DA MADEIRA, E ARRIFANA
«Oito moradores, ou antes facinorosos destes lugares,
depois de legalmente convencidos de haverem indigna e atraiçoadamente
assassinado hum Official Francez de merecimento (he o que se diz ser
Sobrinho do mesmo Soult), e
cuja perda tem sido sobremaneira sensível a todo o Exercito,
forão prezos, sem perda de tempo enforcados, e as suas casas queimadas.» Este Official foi morto em huma emboscada, sempre licitas, em tempo de guerra: os infelizes justiçados pertencião ao lugar, mas não forão os da emboscada.
Trata-se de fazer sangue para metter medo, e nada mais».
A notícia, como se vê, dissimulava a extensão e realidade
da tragédia. À vista dos registos paroquiais, um investigador local apurou o seguinte, quanto ao número e naturalidade dos assassinados: 64 da Arrifana, 4
de S. João da
Madeira, 2 de Mosteirô, 1 da Vila da Feira. Houve, porém,
actos isolados de represália, que tornam mais elevado o
número das vítimas(7).
É que não faltavam francos-atiradores.
A. D'ILLENS, depois
de referir que os habitantes da Arrifana receberam «un châtiment
exemplaire», informa que foi preciso reprimir nessa
ocasião outros insurrectos: «Au même moment le général
Franceschi marcha contre un rassemblement de huit mille
insurgés postés à Albergharia-Velha, les mit en déroute complète et leur tua beaucoup
de monde. Il se porta sur un
autre rassemblement, à l'embouchure de la Vouga, et le
dispersa entièrement»(8).
Na próxima freguesia de Cucujães, um indivíduo chamado
Francisco Dias assassinou, a 15 de Abril, no lugar das Cavadas, «um francês que levava de Oliveira de Azeméis para
Arrifana um saco com dinheiro para pagamento aos soldados
franceses do seu vencimento pecuniário». Escapou este à
justiça de Soult, mas, volvido algum tempo, enlouqueceu.
O mosteiro de Cucujães nada sofreu; os monges,
porém,
transidos de medo, «fugiram desordenadamente, chegando
a escalar o muro da cerca pelo lado sul, por onde passaram
e fizeram passar mulas carregadas de bastante dinheiro,
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muitas alfaias do culto e outros objectos de valor e estimação».(9).
Próximo do Pinheiro da Bemposta, segundo se diz, os franceses
bivacaram no sítio chamado Olho Marinho, «partindo daí à pilhagem pelos
lugares circunvizinhos. Na passagem por esta vila, assassinaram, violaram, destruíram; a vingança, porém,
não se fez esperar, pois que,
sendo atraídos à quinta de Fontechãs, aí pagaram, com a vida, as suas
proezas».(10)
O PINHEIRO DAS SETE CRUZES
Na freguesia de Mazelas, o velho Pinheiro das Sete
Cruzes é testemunha, ainda viva, de outra vindicta sangrenta,
a última que os franceses praticaram na retirada. Eis um
relato do acontecimento:
«Vagueava por esta região um indivíduo de má fama e piores acções,
chamado Catafula. Era de Olívães, freguesia
de Nogueira da Regedoura.
Um dia, num desforço
patriótico, matou três soldados franceses, dos
muitos que passavam pela estrada real. Foi preso com outros, acusados de
cumplicidade, sendo todos condenados à morte pelas autoridades militares
francesas.
O Catafula quis confessar-se, e foi chamado o P.e João
de Sá Rocha, capelão do convento de Monchique (Porto), que se encontrava
em Anta, sua terra natal.
Os franceses obrigaram o Padre
a revelar a confissão do Catafula, para
virem ao conhecimento de todos os seus cúmplices.
O venerável P.e Rocha cumpriu nobremente o seu dever:
não revelou uma só palavra da confissão do Catafula. Por isso, foi arcabuzado e pendurado no histórico «Pinheiro das Sete
Cruzes» juntamente com seu irmão Manuel, com o Catafula e mais quatro
condenados. Manuel de Sá Rocha fora morto pelos franceses no sítio das
Barrancas e depois arrastado até juntos dos cadáveres do irmão Padre e
companheiros executados.
Passados anos, uma sobrinha do virtuoso P.e Rocha, de nome Francisca
Alves de Sá, da Idanha (Anta), mandou construir, junto ao Pinheiro, uma
Capelinha em cujo retábulo mandou gravar estes dizeres: «Aqui foram mortos pelos franceses, a
11 de Maio de 1809, o venerando
Padre João de Sá Rocha, seu irmão
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Manuel e outros, nascidos no lugar de Esmojães, freguesia
de Anta.
Vós que tendes sentimentos
lembrai-vos dos nossos tormentos.
Vós que por aqui passais
lembrai-vos de nós cada vez mais.»(11)
Há também notícia de que os franceses mataram dois
homens nas Airas (S. João de Ver) e desceram para Arcozelo onde
praticaram roubos e outras violências.
Aliás, em carta dirigida ao nosso ministro da guerra,
sobre as operações no Minho, dizia Artur Wellesley: «Tenho
visto muitas pessoas pendentes, enforcadas em árvores ao longo das
estradas, executadas por nenhuma outra razão que
eu possa saber, senão porque não eram amigas da invasão
dos franceses, nem da usurpação do seu país, e podia traçar-se
a rota da sua retirada pelo fumo das aldeias a que eles lançam o fogo»(12).
OPERAÇÕES NA BEIRA-MAR
Nas povoações afastadas da estrada real, não houve
acções de relevo, além da já mencionada passagem da divisão
do general Hill pela ria de Aveiro. Dentro do plano geral,
segundo diz OMAN, esta divisão destinava-se a interceptar a
retirada às tropas de Franceschi.
Conta o historiador que as autoridades de Aveiro a receberam com a
melhor simpatia e tinham reunido os barcos
suficientes para o transporte de 1.500 homens. Coube esta
missão ao oficial da Marinha de Guerra, Isidoro Francisco
Guimarães, que no entanto lamentava ter apenas conseguido
aprontar 130 barcos, «quando a Ria tem 3 mil»(13).
A viagem fez-se durante a noite de 9 para 10 de
Maio.
«Era ainda de madrugada, continua OMAN, quando a brigada
chegou a terra, e se Franceschi lá se tivesse dirigido uma
hora mais cedo iria encontrar Hill na mais ameaçadora posição do seu flnnco. Mas a cavalaria francesa estava ainda afastada umas
dez ou doze milhas, empenhada em incruenta demonstração contra a
brigada de Cotton.
/ 169 /
Sabendo pela gente do campo que a cavalaria francesa
estava acampada muito próximo dele, na Feira, e que a principal coluna inglesa vinha ainda longe, Hill concentrou os
seus homens dentro dos muros (!) de Ovar, em vez de os
ocupar na tentativa de interceptarem a retirada de Franceschi. Tinha decerto muita razão, pois seria arriscado repelir
três batalhões, sem cavalaria nem artilharia, entre as tropas
de Mermet na Feira e as colunas de cavaleiros franceses que
retiravam. Hill reenviou, por isso, os seus barcos a Aveiro
para transportarem a brigada de Cameron, e ficou em descanso toda a manhã.
À tarde, os seus piquetes foram atacados pela infantaria francesa: Mermet tivera conhecimento
da chegada e enviara da Feira os três batalhões do 31.º Léger
para o conter e proteger o flanco de Franceschi. As companhias voltigeur desta força fizeram pressão sobre Hill, mas
não puderam aventurar-se demasiadamente. Gastou-se a
tarde em fúteis escaramuças, mas por último a cavalaria
francesa retirou a galope, e os Dragões Ingleses, perseguindo-a em
fogoso ataque, aproximaram-se do 31.º Léger. Hill,
vendo-se mais uma vez em contacto com os seus amigos,
arrancou então de Ovar, fez pressão sobre as companhias voltigeur francesas, que retiravam apressadamente, atacou
pelas costas o regimento e, por último, foi alcançar o principal corpo de Mermet nas alturas que dominam Grijó. As
escaramuças deram-se quase sem derramamento de sangue − Hill não perdeu
um único homem, e a infantaria francesa
teve apenas meia dúzia de feridos»(14).
Notícias do tempo dizem que a divisão de Hill,
quando chegou a Ovar, «surpreendeo
alguns Francezes que lá estávão, e depois rechaçou os que vierão
da Feira em seu
socorro, e resgatárão mais de 1.000 bois que tinhão roubado»(15). As bagagens tinham ficado em Aveiro e chegaram, pouco depois, com a segunda brigada, parecendo que
não houve necessidade de voltarem lá os barcos.
Quanto ao local do desembarque, não encontrámos informação precisa.
Há quem afirme que foi o cais do Puxadouro,
em Válega(16). Afigura-se, no entanto, mais provável que
fosse o cais da Ribeira, em Ovar.
JOÃO FREDERICO TEIXEIRA DE PINHO, nas suas
Memórias
e Datas para a História da Vila de Ovar, conta apenas o
seguinte:
«O General Thomier ficou estacionado na Vila da Feira,
de onde mandava quotidianamente os seus Caçadores aqui
/170 / descoberta, comandados pelo Capitão Guarin. Uma noite
vieram os ardentes patriotas de Aveiro a combater os Franceses, e aí levantaram uma barricada na Ponte de José de
Pinho, com sua peça montada. No dia seguinte Guarin
encontrou o inimigo em posição defensiva e, apesar do sucesso
inesperado, deu rijamente sobre eles, pondo-os logo
em vergonhosa fuga, valendo-se da Ria, por onde escaparam
à morte... Foi então que esta Vila esteve inocentemente
a ponto de ser levada à espada e posta a saco, sendo salva
pela prudência e magnanimidade daquele bravo oficial e perfeito cavalheiro.
«Em 11 de Maio desse ano entraram aqui 3.000 Ingleses
e tiveram recontro com o inimigo na Ponte Nova, levando-o
diante de si até à Feira, e dali ao Porto. Porém, a retirada
precipitada dos Franceses deve-se, primeiro que tudo, à presença do
Exército Anglo-Luso, que nesse mesmo dia tinha
atravessado o Vouga».
Há erro na data do desembarque, mas o episódio da
Ponte Nova é autêntico. Refere-o um testemunho do tempo: − A coluna «que veio a Aveiro, se deregio ao Ovar, estando
ali a comer lhe chegou a noticia de que os Francezes estavão
na Ponte Nova, que fica ao sahir da Vila, o Comandante
Inglez mandou sem homens, que os atacaram fazendo-lhe
algum estrágo, se pozeraõ em retirada.»(17).
O recontro com o capitão Guarin ainda há anos corria
na tradição. Deu-se perto dos moinhos dos Pelames. Como
era dia de mercado, a praça de Ovar estava cheia de gente,
que largou em correria louca. «As estradas da Ribeira, da
Mata e do Casal regorgitavam de fugitivos. Procuravam
uns a Ria para se salvarem nos barcos, outros os pinhais e a
Arruela para se esconderem». «Foi tal o receio que o
acontecimento produziu em tôda a vila que muitos dos
pacatos moradores da Arruela e S. Miguel se refugiaram nas
Matas dos Ilhotes, Portinhos e Cruzeiro da Virgem [Válega]
e por lá se deixaram ficar algumas horas a ver em que paravam as coisas.»(18).
Ovar ufana-se de ter dado à Guerra Peninsular pelo
menos três heróis, que mais tarde se notabilizaram também
nas hostes liberais: Bernardo António Zagalo, António da Costa e Silva
e António Pereira Zagalo. O primeiro, sendo estudante em Coimbra e
sargento de artilharia, comandou
um grupo que libertou o forte da Figueira da Foz em Junho
de 1808. António da Costa e Silva, mais tarde agraciado com o título de
Visconde de Ovar, fez toda a campanha
/ 171 /
desde 1808 e andou por Espanha e França em perseguição
das tropas napoleónicas até 1814. António Pereira Zagalo, sendo
estudante universitário, militou no batalhão académico em 1809,
com o posto de alferes de artilharia. Cantou este
os próprios feitos em poema que intitulou História da
minha vida, no qual se lêem estes inspirados versos:
«Alistam-se estudantes novamente
Em forma de Legião organizada
Das armas todas; oitocentos homens
Era o total, que juntos a milícias
E a outros corpos, deram um composto
Já respeitável; tudo comandado
Era por Trant, um general valente.
A esta expedição que sobre o Porto
Se dirigiu, também eu pertencia».
A seguir, conta que adoeceu
nesta campanha e só não
tomou parte na terceira, contra Massena, por causa da
moléstia, «que de todo vencida não estava»(19).
Diz-se, não sabemos com que fundamento, que a Filarmónica Ovarense começou a organizar-se em 1809,
«com o
auxílio de alguns soldados franceses que por aqui ficaram e
constituíram família»(20).
Espinho, Ovar, Aveiro e outras «terras de pescarias»
foram convidadas pelo governo de Soult a contribuir para
que na cidade do Porto houvesse «abundância de pescados».
Talvez não correspondessem «imediatamente e prontissimamente com todo o zelo de patriotismo» que
ele desejava.
O certo é que as vilas de Ovar e da Feira mereceram ser
contempladas no último decreto que o Marechal Duque da
Dalmácia assinou no Porto, já com o pé no estribo, a 12 de
Maio de 1809. Não podendo levar na bagagem 3.700 pipas
de vinho apreendidas em barcos sobre o Douro, deixou-as ele em testamento às «cidades do
Porto, Braga, Barcelos,
Vila do Conde, Póvoa, Viana, Vila da Feira, Valongo e Ovar».
A Feira
receberia 100 pipas, e Ovar outras 100
(21)
Na Vila da Feira, as tropas de Thomières tinham entrado
no dia 31 de Março, pelas duas horas da tarde. «Algumas
violências e pilhagens assinalaram, de começo, a sua presença. Foram
assaltadas a capela do Castelo e a residência do respectivo capelão, Dr. Sebastião Peixoto, que pôde fugir a tempo
com as valiosas pratas da capela. Deixando estas em Souto,
sob a guarda do capitão Sousa Bastos, do Salgueiral, refugiou-se
/ 172 /
em S. Vicente, onde permaneceu hóspede de João
Pereira Gomes, do Casal, até à definitiva expulsão do
invasor».
«Em Souto, o pânico da primeira hora foi grande...
Muita gente se escondeu no vale da Gesteira e S. Silvestre.»
«Diz a tradição que... as donzelas de S.
Vicente fizeram
um voto. a N.ª S.ª da Boa-Nova, se ela preservasse a freguesia
dos horrores da invasão. Estando os franceses em Arrifana
e informando-se das povoações dos arredores, citaram-lhes S. Vicente, acrescentando logo: «Mas lá não entram vocês,
porque há lá uma santa de muitos milagres e o povo apegou-se com ela para os livrar dos invasores». Um magote
de soldados, querendo demonstrar que nem os poderes do
céu resistiriam às armas de Napoleão, resolveu uma incursão
a S. Vicente. Chegando, porém, ao Marco dos Arais, seguiram pela congosta do Mouquinho, tomando o rumo de Pintim
e Válega, onde foram parar. O povo tomou o engano como
providencial, e o voto cumpriu-se»(22).
Em Válega , há a tradição de
que esses franceses foram
avançando até perto da ria e se perderam no sítio chamado
de Cabedelo, onde uns heróis locais, refeitos do primeiro susto,
facilmente deram cabo deles. Sabe-se, por documentos,
que andaram na guerra, além de outros desta freguesia, José
da Silva Soares Laranjeira, alferes do regimento de milícias
de Oliveira de Azeméis, e Domingos da Silva Graça, tenente
do mesmo regimento. Ambos foram condecorados com as
medalhas da campanha e depois mereceram ser demitidos
em 1828 por terem dado em fervorosos liberais; em 1834, o
primeiro era comissário da polícia em Válega e o segundo
estava na câmara de Pereira Jusã como presidente interino.
Num lugar do extremo norte da freguesia, junto a Ovar, ficou abandonada
uma pequena peça de artilharia, que se diz ser dos franceses e que em
1941 foi removida para o Adro Velho,
onde se colocou junto de outras antigualhas, a fim de se não
perder.
Como alguns párocos costumavam anotar ocorrências
várias nos livros do registo, é possível que ainda apareçam mais
notícias curiosas. Por agora, mencione-se a festa que
os moradores da vila de Angeja celebraram, a 6 de Agosto
de 1809, em honra de N. Senhora das Neves, «reconhecidos
ao benefício, que havião recebido do Ceo, que prodigiosamente os
/ 173 / salvara dos estragos inimigos». Na véspera houve
iluminações, música e fogo de artifício por um hábil «fogueteiro de S. A. R.», e no dia missa cantada, sermão,
Te-Deum e procissão
− tudo patrocinado pelo Juiz de Fora, que dali
tinha fugido para Águeda, onde esteve com o exército de
Trant enquanto lhe cheirou a franceses. A Gazeta de Lisboa, tão parca em notícias, consagra à festa uma página
inteira do seu n.º 78, em 31 de Agosto. Vale a pena transcrever o que ela diz dos pregadores:
«Foi hum Fr. Manoel
da Rainha dos Anjos, Religioso da Provincia da Conceição,
aggregado ao Corpo dos militares Academicos, que com os
livros na esquerda, e as armas na direita, acabando de dar
com seus Camaradas irrefragaveis testemunhos da sua coragem, continua a ostentar com louvor o seu grande engenho;
foi outro o Reverendo Fr. João Nuno, da Ordem dos Pregadores, natural da Villa de Vagos, Bispado e Comarca de
Aveiro, na Literatura profundo, em idéas sublime, de pensamento rico, na sã eloquencia raro, genio na verdade grande».
Onde abundavam heroísmos como o do Juiz de Fora,
bem era que não minguassem oradores de tal «engenho e
arte».
Padre MIGUEL DE OLIVEIRA |