SÃO decorridos 54 anos e
ainda conservo nítida lembrança
desta data histórica e dos seus efeitos neste concelho.
A notícia, inesperada e desconcertante, anunciando
a implantação da República no Porto, correu célere na manhã daquele dia
do ano de 1891: a guarnição militar tinha-se revoltado e abolido a
Monarquia.
Este sensacional
acontecimento produziu na pacífica vila
bairradina um assombro fácil de compreender. Terra essencialmente
política, muito orgulhosa da sua influência adquirida pela supremacia do mando, não podia assistir impassível
ao desmoronamento da fortaleza monárquica do concelho, tão solidamente
construída pelo partido progressista em longos anos de indisputado
predomínio.
O desastre estava iminente, e se para alguns era motivo de desgosto por
verem no ostracismo um homem ilustre que a Anadia dava importância e
brilho, para muitos significava
a perda de situações lucrativas e preponderantes que alimentavam
apregoadas dedicações. Sofria por isso horas amargas o caciquismo local.
Mas o que mais irritava os ânimos era a falta de pormenores, sem haver
meio de os obter com a brevidade que todos desejavam. O telégrafo que nos deu a notícia emudeceu
após o
primeiro rebate, e o telefone, apesar de
já ser velho nesse tempo, só 40 anos depois é que chegou
até nós.
Restava o recurso dos jornais do
Porto que chegavam
à estação de Mogofores no comboio do meio dia; tomou-se pois o caminho
desta estação.
A vila em peso enchia a gare de lés a lés. Desde o
graduado chefe político até ao modesto escrevente de cartório, tudo que
em Anadia sentia e pensava estava ali, preso de uma inquietação febril.
Formaram-se grupos e neles se discutia com calor o caso palpitante,
abundando as previsões optimistas e afirmações espontâneas que um
prudente oportunismo aconselhava.
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O Sr. Albano Coutinho, velho e indefectível republicano,
presuntivo chefe político do concelho e do distrito, passeava
sorridente entre aduladores, ouvindo complacente aquelas
afirmações sinceras que todos os arrivistas costumam fazer
em ocasiões semelhantes. Eram os precursores dos adesivos
de 1910, solícitos em aproveitar as oportunidades, que buscavam seguro trampolim para futuras situações.
Ouve-se um silvo de locomotiva, e aquela mole de gente agita-se
febrilmente e toma posições para o assalto aos jornais, mas viu lograda a sua curiosidade quando surgiu na
curva do Penedo uma máquina que passou em corrida desabalada rebocando uma carruagem-salão que, segundo informou o chefe da estação, conduzia o general Scarnichia,
comandante da Divisão Militar do Porto. Alguém aventou
que este general, talvez impotente para dominar a revolução, iria
refugiar-se em Lisboa e esta ideia, apesar de absurda,
ensombrou o semblante de muitos. Mas não era verdade;
fora chamado pelo Governo.
Refeita da decepção, a assistência voltou às apreciações
interrompidas, enquanto eu deambulava entre a massa anónima, de ouvido
atento, com a precoce curiosidade dos meus
quinze anos.
Num grupo de intelectuais, o Dr. Júlio Teixeira, rapaz
novo e alma entusiasta, discreteia com os Drs. José Paulo
Cancela, Abel de Matos Abreu e outros, sobre as probabilidades de êxito da revolta, e declara:
− Tenho pena se o movimento não vinga. Eu não sou
republicano; mas isto caminha tão mal...
Logo o Dr. José Paulo acode:
− Olha, eu não sei o que sou; não morro de amores pela
Monarquia nem me sacrifico pela República.
Estas palavras fixavam uma linha de conduta de cuja
sinceridade era lícito duvidar naquela ocasião, mas quando
em 1910 este honrado chefe político, que foi um carácter
honestíssimo, aceitou o novo regime sem procurar postos
de comando nem situações de destaque, ficou demonstrada
a sua isenção.
Chegou finalmente o comboio e logo os jornais foram
arrancados das mãos dos vendedores. Lidas sofregamente
as primeiras linhas, saiu de quase todas as bocas um ah! de
satisfação. A revolução tinha sido vencida.
A mutação foi completa. Logo se viram rostos desanuviados e peitos desoprimidos, e a
simpatia pelos revoltosos
manifestada momentos antes em comprometedoras blandícias mudou-se de repente em franca e agressiva hostilidade.
E o homem que até aí foi reconhecido e reverenciado
como futuro chefe, voltou para casa acompanhado por dois ou três amigos
fiéis.
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Assim terminou esta jornada, episódio memorável
da vida política de
Anadia, de que já poucos se lembram porque poucos são, dos que a ela assistiram, os que ainda vivem.
Estava nesta ocasião à frente
do Governo o Sr. Dr. José Luciano de
Castro, considerado político eleito chefe do partido progressista em 1885, que desde
esta data exercia no
distrito de Aveiro um domínio absoluto.
Com o insucesso da revolução,
este partido tornou-se mais forte e a
ditadura politica do distrito caminhava ovante,
aniquilando as escassas forças regeneradoras que debalde tentavam
levantar cabeça para afirmarem o seu direito de viver.
Lugar que os progressistas cobiçassem, sabia-se de antemão que era para quem o Sr. Conselheiro José Luciano
apoiasse, fosse qual fosse o governo que estivesse no poder.
Anadia impunha a sua vontade e os políticos contrários não
podiam reagir por falta de apoio de cima.
Eu tenho de memória um facto, bem conhecido há uns cinquenta anos, que
prova esta afirmativa:
Governava o país o partido regenerador, com o Sr. Hintze
Ribeiro na presidência do Conselho, quando vagou a reitoria
da Murtosa que nesse tempo pertencia ao concelho de Estarreja, onde aquele partido tinha ainda alguma força. Concorreu
a esta apetecida prebenda o pároco da vizinha freguesia do
Bunheiro, chefe da política governamental do concelho e ali
muito benquisto, que por isso se julgava em posição vantajosa.
Foi uma luta inglória; os seus serviços foram desprezados e desatendido
o pedido dos seus amigos. A nomeação
recaiu no prior de Oliveira do Bairro, Dr. Joaquim Tavares
de Araújo e Castro, apadrinhado pelo chefe progressista.
Este caso deu que falar aos políticos do tempo.
O pretendente preterido e afrontado abandonou o partido, afirmando ao Sr. Hintze que «era uma indignidade ser
regenerador no distrito de Aveiro», mas este chefe político
desculpou-se com as «concepções da sua política». A influência dos chefes rotativos da governação pública era inatacável
nos seus distritos.
Esta supremacia política reflectia-se na vida de Anadia,
dando-lhe brilho e fama, animada por altas figuras da grei
que vinham aqui em demanda dos saborosos frutos da inesgotável cornucópia governamental.
Mas veio o tempo em que o barómetro da sua preponderância baixou. Uma nova potência se levantava e desenvolvia no
distrito à sombra do próprio chefe progressista, e
paulatinamente lhe ia minando a influência, criando uma
larga clientela que devia entronizá-la, como verdadeira soberana, até à queda da Monarquia.
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[Vol. XI - N.º 42 - 1945]
A este poder omnipotente liga-se um facto que teve
certa retumbância entre os bastidores da política local, por
volta do ano de 1906, e cuja veracidade posso afirmar porque
vi um documento que aprova:
O Marquês da Graciosa (Dr. Francisco Furtado) pediu
ao Sr. Conselheiro José Luciano, presidente do Conselho de
Ministros, dois lugares públicos: o de reitor de Sôza para o
P.e José Cardoso de Melo, prior da freguesia de Arcos, e o
de professor do liceu do Porto para o seu primo D. Fernando
de Bourbon de Melo Geraldes, homem distinto e culto que
vegetava no lugar de secretário da Câmara Municipal de Espinho.
Lavrados os despachos respectivos e enviados para a
Imprensa Nacional, foi o facto comunicado por aquele estadista ao Sr. Marquês, que logo informou os interessados.
Com o Diário do Governo
veio, porém, uma surpresa:
para reitor de Sôza era nomeado o P.e Florindo Nunes da
Silva, de Cacia, e para professor do liceu do Porto ia um
individuo de cujo nome me não recordo. Certa estratégia,
posta em prática com êxito, tinha torpedeado aqueles despachos.
Mais tarde D. Fernando de Bourbon foi despachado para
tesoureiro da Caixa Geral de Depósitos, mas o P.e José
Cardoso cristalizou na sua antiga freguesia até à aposentação.
Curia, Fevereiro de 1945.
LUÍS ALVES DA CUNHA |