L. Alves da Cunha, O 31 de Janeiro em Anadia, Vol. XI, pp. 110-113

O 31 DE JANEIRO EM ANADIA

SÃO decorridos 54 anos e ainda conservo nítida lembrança desta data histórica e dos seus efeitos neste concelho.

A notícia, inesperada e desconcertante, anunciando a implantação da República no Porto, correu célere na manhã daquele dia do ano de 1891: a guarnição militar tinha-se revoltado e abolido a Monarquia.

Este sensacional acontecimento produziu na pacífica vila bairradina um assombro fácil de compreender. Terra essencialmente política, muito orgulhosa da sua influência adquirida pela supremacia do mando, não podia assistir impassível ao desmoronamento da fortaleza monárquica do concelho, tão solidamente construída pelo partido progressista em longos anos de indisputado predomínio.

O desastre estava iminente, e se para alguns era motivo de desgosto por verem no ostracismo um homem ilustre que a Anadia dava importância e brilho, para muitos significava
a perda de situações lucrativas e preponderantes que alimentavam apregoadas dedicações. Sofria por isso horas amargas o caciquismo local.

Mas o que mais irritava os ânimos era a falta de pormenores, sem haver meio de os obter com a brevidade que todos desejavam. O telégrafo que nos deu a notícia emudeceu após o primeiro rebate, e o telefone, apesar de já ser velho nesse tempo, só 40 anos depois é que chegou até nós.

Restava o recurso dos jornais do Porto que chegavam à estação de Mogofores no comboio do meio dia; tomou-se pois o caminho desta estação.

A vila em peso enchia a gare de lés a lés. Desde o graduado chefe político até ao modesto escrevente de cartório, tudo que em Anadia sentia e pensava estava ali, preso de uma inquietação febril. Formaram-se grupos e neles se discutia com calor o caso palpitante, abundando as previsões optimistas e afirmações espontâneas que um prudente oportunismo aconselhava. / 111 /

O Sr. Albano Coutinho, velho e indefectível republicano, presuntivo chefe político do concelho e do distrito, passeava sorridente entre aduladores, ouvindo complacente aquelas afirmações sinceras que todos os arrivistas costumam fazer em ocasiões semelhantes. Eram os precursores dos adesivos de 1910, solícitos em aproveitar as oportunidades, que buscavam seguro trampolim para futuras situações.

Ouve-se um silvo de locomotiva, e aquela mole de gente agita-se febrilmente e toma posições para o assalto aos jornais, mas viu lograda a sua curiosidade quando surgiu na curva do Penedo uma máquina que passou em corrida desabalada rebocando uma carruagem-salão que, segundo informou o chefe da estação, conduzia o general Scarnichia, comandante da Divisão Militar do Porto. Alguém aventou que este general, talvez impotente para dominar a revolução, iria refugiar-se em Lisboa e esta ideia, apesar de absurda, ensombrou o semblante de muitos. Mas não era verdade; fora chamado pelo Governo.

Refeita da decepção, a assistência voltou às apreciações interrompidas, enquanto eu deambulava entre a massa anónima, de ouvido atento, com a precoce curiosidade dos meus
quinze anos.

Num grupo de intelectuais, o Dr. Júlio Teixeira, rapaz novo e alma entusiasta, discreteia com os Drs. José Paulo Cancela, Abel de Matos Abreu e outros, sobre as probabilidades de êxito da revolta, e declara:

− Tenho pena se o movimento não vinga. Eu não sou republicano; mas isto caminha tão mal...

Logo o Dr. José Paulo acode:

− Olha, eu não sei o que sou; não morro de amores pela Monarquia nem me sacrifico pela República.

Estas palavras fixavam uma linha de conduta de cuja sinceridade era lícito duvidar naquela ocasião, mas quando em 1910 este honrado chefe político, que foi um carácter honestíssimo, aceitou o novo regime sem procurar postos de comando nem situações de destaque, ficou demonstrada a sua isenção.

Chegou finalmente o comboio e logo os jornais foram arrancados das mãos dos vendedores. Lidas sofregamente as primeiras linhas, saiu de quase todas as bocas um ah! de satisfação. A revolução tinha sido vencida.

A mutação foi completa. Logo se viram rostos desanuviados e peitos desoprimidos, e a simpatia pelos revoltosos manifestada momentos antes em comprometedoras blandícias mudou-se de repente em franca e agressiva hostilidade.

E o homem que até aí foi reconhecido e reverenciado como futuro chefe, voltou para casa acompanhado por dois ou três amigos fiéis. / 112 /

Assim terminou esta jornada, episódio memorável da vida política de Anadia, de que já poucos se lembram porque poucos são, dos que a ela assistiram, os que ainda vivem.

Estava nesta ocasião à frente do Governo o Sr. Dr. José Luciano de Castro, considerado político eleito chefe do partido progressista em 1885, que desde esta data exercia no distrito de Aveiro um domínio absoluto.

Com o insucesso da revolução, este partido tornou-se mais forte e a ditadura politica do distrito caminhava ovante, aniquilando as escassas forças regeneradoras que debalde tentavam levantar cabeça para afirmarem o seu direito de viver.

Lugar que os progressistas cobiçassem, sabia-se de antemão que era para quem o Sr. Conselheiro José Luciano apoiasse, fosse qual fosse o governo que estivesse no poder. Anadia impunha a sua vontade e os políticos contrários não podiam reagir por falta de apoio de cima.

Eu tenho de memória um facto, bem conhecido há uns cinquenta anos, que prova esta afirmativa:

Governava o país o partido regenerador, com o Sr. Hintze Ribeiro na presidência do Conselho, quando vagou a reitoria da Murtosa que nesse tempo pertencia ao concelho de Estarreja, onde aquele partido tinha ainda alguma força. Concorreu a esta apetecida prebenda o pároco da vizinha freguesia do Bunheiro, chefe da política governamental do concelho e ali muito benquisto, que por isso se julgava em posição vantajosa.

Foi uma luta inglória; os seus serviços foram desprezados e desatendido o pedido dos seus amigos. A nomeação recaiu no prior de Oliveira do Bairro, Dr. Joaquim Tavares de Araújo e Castro, apadrinhado pelo chefe progressista.

Este caso deu que falar aos políticos do tempo.

O pretendente preterido e afrontado abandonou o partido, afirmando ao Sr. Hintze que «era uma indignidade ser regenerador no distrito de Aveiro», mas este chefe político desculpou-se com as «concepções da sua política». A influência dos chefes rotativos da governação pública era inatacável nos seus distritos.

Esta supremacia política reflectia-se na vida de Anadia, dando-lhe brilho e fama, animada por altas figuras da grei que vinham aqui em demanda dos saborosos frutos da inesgotável cornucópia governamental.

Mas veio o tempo em que o barómetro da sua preponderância baixou. Uma nova potência se levantava e desenvolvia no distrito à sombra do próprio chefe progressista, e paulatinamente lhe ia minando a influência, criando uma larga clientela que devia entronizá-la, como verdadeira soberana, até à queda da Monarquia. / 113 / [Vol. XI - N.º 42 - 1945]

A este poder omnipotente liga-se um facto que teve certa retumbância entre os bastidores da política local, por volta do ano de 1906, e cuja veracidade posso afirmar porque vi um documento que aprova:

O Marquês da Graciosa (Dr. Francisco Furtado) pediu ao Sr. Conselheiro José Luciano, presidente do Conselho de Ministros, dois lugares públicos: o de reitor de Sôza para o P.e José Cardoso de Melo, prior da freguesia de Arcos, e o de professor do liceu do Porto para o seu primo D. Fernando de Bourbon de Melo Geraldes, homem distinto e culto que vegetava no lugar de secretário da Câmara Municipal de Espinho.

Lavrados os despachos respectivos e enviados para a Imprensa Nacional, foi o facto comunicado por aquele estadista ao Sr. Marquês, que logo informou os interessados.

Com o Diário do Governo veio, porém, uma surpresa: para reitor de Sôza era nomeado o P.e Florindo Nunes da Silva, de Cacia, e para professor do liceu do Porto ia um individuo de cujo nome me não recordo. Certa estratégia, posta em prática com êxito, tinha torpedeado aqueles despachos.

Mais tarde D. Fernando de Bourbon foi despachado para tesoureiro da Caixa Geral de Depósitos, mas o P.e José Cardoso cristalizou na sua antiga freguesia até à aposentação.

Curia, Fevereiro de 1945.

LUÍS ALVES DA CUNHA

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