Luís de Magalhães, Eça de Queirós, Vol. XI, pp. 12-16.

EÇA DE QUEIRÓS (1)

Ao nome de EÇA DE QUEIRÓS está vinculado o impulso inicial de uma das mais radicais transformações da nossa literatura contemporânea, transformação que por igual afectou a estética e a língua. Foi ele − todos o reconhecem − o introdutor, o aclimador do realismo no romance português.

Antes mesmo de ensaiar esse género, em que de futuro havia de ser mestre, já nessa. tentativa renovadora das conferências do Casino ele havia tomado para assunto de uma conferência a tese do Realismo na Arte, que desde o meado do século se debatia no mundo artístico europeu e que PROUDHON acabava de formular em doutrina no seu livro Du principe de l'Art et de sa destination sociale. Foi pouco depois que apareceu, na Revista Ocidental, a primeira cópia do Crime do Padre Amaro. O romancista iniciava-se na sua arte, submetendo-se disciplinarmente à regra doutrinal de uma escola, da qual logo adoptou e adaptou a técnica, desde os processos de observação e o tipo de contextura até ao estilo e à linguagem. Ele próprio o confessa no prólogo da edição de 1876: «Este trabalho novo, diz o autor, conserva todavia muitos dos defeitos do trabalho antigo (a edição da Revista); conserva vestígios consideráveis de certas preocupações de Escola e de Partido − lamentáveis sob o ponto de vista da pura Arte − que tiveram outrora uma influência poderosa no plano original do livro».

Ora, anteriormente a este romance (que, ainda uma vez refundido, devia mais tarde ficar como uma das suas obras primas) EÇA DE QUEIRÓS manifestara nos seus incomparáveis e imprevistos contos da Gazeta de Portugal, na colaboração do Mistério da Estrada de Sintra e ainda mesmo nas Farpas, / 13 / um temperamento literário de todo o ponto avesso ao jugo rígido, à férrea tirania de um dogma. O que nessas páginas, fulgurantes e estranhas, transparecia era uma das mais vivas, mais bizarras e mais prodigiosas imaginações que a nossa literatura tem revelado − imaginação alada de fantasista. já subtilmente humorístico, já emocionalmente lírico.

Como é que um espírito destes, imaginativo até ao misticismo, sensível até à poesia, com todos os bruscos caprichos, toda a incoercibilidade da verve, poderia confinar-se no campo limitado, circunvalado, da análise seca, fria e impessoal dos factos positivos e reais? Como é que ele se dobraria ao paciente trabalho de observação directa, à minúcia das autópsias psicológicas? Como subjugaria o seu estilo, moderando-lhe as abaladas fogosas, os saltos macabros da fantasia, para o reduzir à docilidade de uma expressão nítida e precisa?

O talento, o verdadeiro talento faz muitas vezes disso a que, por preguiça de lhe investigarmos as causas, designamos comodamente chamando-lhe milagres. Grosseiro erro de crítica! Não há nada de inexplicável numa simples transfiguração das faculdades próprias, características, idiossincrásicas, de um certo espírito. É um puro caso de plasticidade emocional e intelectiva, é o fino dom de uma estesia complexa e móbil que, una na sua natureza, se revela, porém, hipostaticamente sob a máxima variedade de formas.

Não houve, pois, nessa sujeição momentânea de EÇA DE QUEIRÓS às leis de uma Estética, talvez demasiado dogmática e intransigente, uma deformação do seu espírito, um tour de force violento e contrafeito. Não. O que houve foi um erro de exclusivismo, de partidarismo, por ele próprio reconhecido e deplorado no texto que acima citei. Desde que se emancipou desse preconceito crítico, desde que quebrou o pacto pelo qual enfeudara a imaginação a um princípio de arte estreito e acanhado, desde que se libertou do espírito de escola − sem contudo renegar aquela parte de verdade, de que ela fora a reveladora e a definidora − EÇA DE QUEIRÓS ostenta-se-nos na plenitude, na totalidade das suas amplas, e profundas faculdades, íntegro e completo, sem reservas, sem abstenções, pondo em livre jogo todo o complicado dinamismo da sua psicologia artística.

Por isso, tão legitimamente suas são as suas obras de observação e de análise. O Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio, Os Maias, como as obras de fantasia e de humorismo, desde os seus primeiros ensaios no conto (que estão de há muito requerendo uma racolta em volume)(2), até ao / 14 / Mandarim e à Relíquia, onde QUEIRÓS retoma, com um pleno sucesso, esse antigo filão, erradamente abandonado.

Era-me fácil provar, com exemplos e citações, este meu modo de ver, se dispusesse de espaço e se o que estou escrevendo não fosse apenas uma modesta nota literária, destinada a acompanhar o retrato do ilustre romancista(3). Mas não me parece difícil conceber-se como, transportado para o estudo da vida real, o humorismo se transforma na vis comica, a emoção poética no talento dramático, e a imaginação venha aumentar, intensificar a energia criadora, que evoca os tipos e inventa as situações.

De tudo isto se deduzem já, me parece, os traços mais largos do perfil literário de EÇA DE QUEIRÓS. É uma natureza complexa, multiforme, ondulante, às vezes contraditória, onde as mais opostas correntes psicológicas se embatem e se cruzam. Há nesse homem uns poucos de homens − o que quer dizer que há nesse escritor uns poucos de escritores. E estas pluralidades de naturezas torna de uma extensão quase indefinida a sua escala artística.

Como humorista, a sua verve eleva-se agora à mais fina e alada ironia, para descer logo até à charge caricatural, até à pantalonada bufa da farsa. A sua galeria de grotescos − à frente o imortal conselheiro Acácio! − é simplesmente maravilhosa. Se escrevesse para o teatro, seria um autor cómico incomparável, como teria sido um grande e estranho poeta, se tivesse feito versos... a sério. Mas a esse sentido do ridículo alia-se um talento dramático de primeira ordem. A cena do infanticídio na primeira versão do Padre Amaro, a morte de Luísa no Primo Basílio, as últimas cenas do incestuoso episódio dos Maias − são pedaços de drama, vivos, palpitantes, profundos de humana paixão. Psicólogo penetrante e subtil, as suas faculdades de analista acham-se superiormente servidas por um raro poder de reconstituição vital, que faz de todos os seus personagens seres vivos e animados, tão flagrantes de naturalidade e verosimilhança, que chegam a dar a ilusão de entidades reais. Todos eles, com efeito, nos ficam marcados na memória, tão nítida, precisa e frisantemente, que se diriam velhos conhecimentos com quem infinitas vezes houvéssemos cruzado na rua, ombro a ombro. Por vezes, essa pujante faculdade leva-o a criações superiores, à concepção de verdadeiros arquétipos morais e sociais. Citei há pouco o conselheiro Acácio. Lembrarei agora a Juliana do Primo Basílio, o Libaninho do Padre Amaro e o Alencar dos Maias. / 15 /

Bastavam estas três criações para a glória de um grande escritor. E, por fim, esse humorista, cruel por vezes até ao sarcasmo, esse psicólogo impessoal, que tão bem se insinua e introduz no íntimo dos mais opostos caracteres, tem ao mesmo tempo o dom da mais emotiva sensibilidade, reunido ao predicado de a exprimir numa linguagem que encontra todas delicadezas de um tocante lirismo. Recordem-se da morte de Cármen, no Mistério da Estrada de Sintra. Recordem-se do abade Ferrão, no Padre Amaro, e das páginas em que o romancista descreve a modesta igreja rural dos Poiais. Recordem-se dessa deliciosa cena dos Maias, em que o velho Afonso recebe nos braços o neto que o filho, traído e abandonado pela mulher, lhe traz para casa.

Mas, quando se desprende da contemplação do real, quando se despreocupa do estado exacto da natureza humana, quando solta o seu espírito como um silfo alado no pleno azul da fantasia, a sua imaginação, onde há um não sei quê de estranho, de fantasmagórico, de pandemónico, de macabro, produz essas maravilhas que se chamam o Mandarim e a Relíquia.

Sobre a nudez forte da verdadeo manto diáfano da fantasia − escreve ele, como um dístico, na primeira pagina desta última obra. E esta é, com efeito, a fórmula precisa e exacta da sua fantasia, cujo carácter intimo está justamente no facto, à primeira vista paradoxal, de ser, como muito subtilmente a definia OLIVEIRA MARTINS, uma fantasia realista. A realidade transfigurada pela incoerência do sonho − eis o que constitui o fundo, a urdidura dessas obras. Há nisto uma faculdade de visão especial, talvez uma deformação patológica da retina artística, que descobre nas cousas e, nos seres aspectos imprevistos, inconsequentes e um delírio lúcido, onde, através das curvas, das volutas caprichosas e febricitantes do desvairamento imaginativo, a razão conserva a sua serenidade, a sua força presente, a sua acção crítica.

A sua forma, o seu estilo é uma emanação directa e espontânea da sua psicologia artística: é como o perfume que se exala de uma corola, ou a evaporação que sobe de um lago. É inconfundível com qualquer outro estilo, porque o espírito, cujas emoções e ideias verbalmente fixa, é por sua vez inconfundível com outro espírito qualquer. Essa originalidade, tão admirada, da sua linguagem vem-lhe da originalidade do seu pensamento. E a lenda − aliás verdadeira da sua morosa e laboriosa composição não destrói o que acabo de dizer. Não há nesse trabalho lento uma dificuldade de expressão: o que há é o escrúpulo meticuloso de um artista sedento de perfeição plástica da palavra, que só larga a pena quando julga ter esgotado todos os recursos do seu verbo, / 16 / para dar aos seus pensamentos a mais bela, correcta, justa e cristalina forma.

Psicólogo, moralista, humorista; fantasista, poeta e artista − eis o feixe admirável de faculdades de que esse espírito é como que o nódulo ganglionar e que em todos os seus livros vemos em acção, numa riqueza e abundância de notas, que de cada um deles faz uma obra perfeita, cheia e acabada.

Está hoje no vigor da idade, na plena maturação do seu talento, nesse momento de lucidez calma e consciente que é a hora suprema da vida intelectual. E, morto CAMILO, a soberania do romance, que já com o velho e glorioso Mestre compartilhava, fica-lhe agora inteira e completa, sem o menor vislumbre de dúvida e sem a menor sombra de contestação.

LUÍS DE MAGALHÃES

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(1) (1) Da «Revista Ilustrada» n.º 12, de 30 de Setembro de 1890, pág. 135.

(2) Os Contos só vieram a aparecer em volume em 1902. 

(3) − Reprodução de um pastel de Columbano, que figura na primeira página do respectivo número da Revista.

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