Ao nome de EÇA DE QUEIRÓS
está vinculado o impulso inicial de uma das mais radicais
transformações da nossa literatura contemporânea, transformação que por
igual afectou a estética e a língua. Foi ele − todos o reconhecem − o introdutor, o aclimador do
realismo no romance
português.
Antes mesmo de ensaiar esse
género, em que de futuro havia de ser
mestre, já nessa. tentativa renovadora das conferências do Casino ele havia tomado para assunto de uma
conferência
a tese do Realismo na Arte, que desde o meado do século se debatia no
mundo artístico europeu e que PROUDHON
acabava de formular em doutrina no seu livro Du principe de l'Art et de sa destination sociale. Foi pouco depois que apareceu,
na Revista Ocidental, a primeira cópia do Crime do Padre Amaro. O
romancista iniciava-se na sua arte, submetendo-se disciplinarmente à
regra doutrinal de uma escola, da qual logo adoptou e adaptou a
técnica, desde os processos de observação e o tipo de contextura até
ao estilo e à linguagem. Ele próprio o confessa no prólogo da edição
de 1876: «Este trabalho novo, diz o autor, conserva todavia
muitos dos defeitos do trabalho antigo (a edição da Revista); conserva
vestígios consideráveis de certas preocupações de Escola e de Partido
− lamentáveis sob o ponto de vista da pura Arte − que tiveram outrora uma
influência poderosa no plano original do livro».
Ora, anteriormente a este romance (que, ainda uma vez refundido,
devia mais tarde ficar como uma das suas obras primas) EÇA DE QUEIRÓS manifestara nos seus incomparáveis e
imprevistos contos da Gazeta de Portugal, na colaboração do Mistério
da Estrada de Sintra e ainda mesmo nas Farpas, /
13 / um temperamento literário de todo o ponto avesso ao jugo rígido, à férrea tirania de um dogma. O que nessas páginas, fulgurantes e estranhas, transparecia era uma das mais vivas, mais bizarras e mais prodigiosas imaginações que
a nossa literatura tem revelado − imaginação alada de fantasista. já subtilmente humorístico, já emocionalmente lírico.
Como é que um espírito destes, imaginativo até ao misticismo, sensível até à poesia, com todos os bruscos caprichos, toda a incoercibilidade da
verve, poderia confinar-se no
campo limitado, circunvalado, da análise seca, fria e impessoal dos
factos positivos e reais? Como é que ele se dobraria ao paciente
trabalho de observação directa, à minúcia das autópsias psicológicas?
Como subjugaria o seu estilo, moderando-lhe as abaladas fogosas, os saltos macabros da fantasia, para o
reduzir à docilidade de uma expressão nítida e precisa?
O talento,
o verdadeiro talento faz muitas vezes disso a que, por preguiça de lhe
investigarmos as causas, designamos
comodamente chamando-lhe milagres. Grosseiro erro de crítica! Não há
nada de inexplicável numa simples transfiguração das faculdades
próprias, características, idiossincrásicas, de um certo espírito. É um puro caso de plasticidade
emocional e intelectiva, é o fino dom de uma estesia complexa e móbil que, una
na sua natureza, se revela, porém, hipostaticamente sob a máxima
variedade de formas.
Não houve, pois, nessa sujeição momentânea de EÇA DE QUEIRÓS às leis de
uma Estética, talvez demasiado dogmática e intransigente, uma deformação
do seu espírito, um tour
de force violento e contrafeito. Não. O que houve foi um erro de
exclusivismo, de partidarismo, por ele próprio reconhecido e deplorado no texto que acima citei. Desde que se emancipou
desse preconceito crítico, desde que quebrou o
pacto pelo qual enfeudara a imaginação a um princípio de arte
estreito e acanhado, desde que se libertou do espírito de escola − sem
contudo renegar aquela parte de verdade, de que ela fora a reveladora e
a definidora − EÇA DE QUEIRÓS
ostenta-se-nos na plenitude, na totalidade das suas amplas, e
profundas faculdades, íntegro e completo, sem reservas, sem
abstenções, pondo em livre jogo todo o complicado dinamismo da sua
psicologia artística.
Por isso, tão legitimamente suas são as suas obras de
observação e de análise. O Crime do Padre Amaro, O Primo
Basílio, Os Maias, como as obras de fantasia e de humorismo, desde os seus primeiros ensaios no
conto (que estão de há muito
requerendo uma racolta em volume)(2), até ao
/
14 / Mandarim e à
Relíquia, onde QUEIRÓS retoma, com um pleno sucesso, esse antigo filão, erradamente abandonado.
Era-me fácil provar, com exemplos e citações,
este meu modo de ver, se
dispusesse de espaço e se o que estou escrevendo não fosse apenas uma
modesta nota literária, destinada
a acompanhar o retrato do ilustre romancista(3). Mas
não
me parece difícil conceber-se como, transportado para o estudo da vida
real, o humorismo se transforma na vis comica, a emoção poética no
talento dramático, e a imaginação venha aumentar, intensificar a
energia criadora, que evoca os tipos e inventa as situações.
De tudo isto se deduzem já, me parece, os traços mais largos do perfil
literário de EÇA DE QUEIRÓS. É uma natureza complexa, multiforme,
ondulante, às vezes contraditória, onde as mais opostas correntes
psicológicas se embatem e se cruzam. Há nesse homem uns poucos de homens
− o que quer dizer que há nesse escritor uns poucos de escritores. E
estas pluralidades de naturezas torna de uma extensão quase
indefinida a sua escala artística.
Como humorista, a sua verve eleva-se agora à mais fina
e alada ironia, para descer logo até à charge caricatural, até à pantalonada bufa da farsa. A sua galeria de grotescos
− à frente o imortal
conselheiro Acácio! − é simplesmente maravilhosa. Se escrevesse para o teatro, seria um autor cómico
incomparável, como teria sido um grande e estranho poeta, se tivesse
feito versos... a sério. Mas a esse sentido do ridículo alia-se um
talento dramático de primeira ordem. A cena do infanticídio na primeira
versão do Padre Amaro, a morte de Luísa no Primo Basílio, as últimas
cenas do incestuoso episódio dos Maias − são pedaços de drama, vivos,
palpitantes, profundos de humana paixão. Psicólogo penetrante e subtil,
as suas faculdades de analista acham-se superiormente servidas por um
raro poder de reconstituição vital, que faz de todos os seus
personagens seres vivos e animados, tão flagrantes de naturalidade e
verosimilhança, que chegam a dar a ilusão de entidades reais. Todos eles,
com efeito, nos ficam marcados na memória, tão nítida, precisa e
frisantemente, que se diriam velhos conhecimentos com quem infinitas
vezes houvéssemos cruzado na rua, ombro a ombro. Por vezes, essa pujante
faculdade leva-o a criações superiores, à concepção de verdadeiros
arquétipos morais e sociais. Citei há pouco o conselheiro Acácio.
Lembrarei agora a Juliana do Primo Basílio, o Libaninho do Padre Amaro
e o Alencar dos Maias.
/
15 /
Bastavam estas três criações para a glória de um grande escritor. E,
por fim, esse humorista, cruel por vezes até ao sarcasmo, esse psicólogo
impessoal, que tão bem se insinua e introduz no íntimo dos mais
opostos caracteres, tem ao mesmo tempo o dom da mais emotiva
sensibilidade, reunido ao predicado de a exprimir numa linguagem que
encontra todas delicadezas de um tocante lirismo. Recordem-se da morte de Cármen, no
Mistério da Estrada de Sintra. Recordem-se do abade
Ferrão, no Padre Amaro, e das páginas em que o romancista descreve a
modesta igreja rural dos Poiais. Recordem-se dessa deliciosa cena dos
Maias, em que o velho Afonso recebe nos braços o neto que o filho, traído
e abandonado pela mulher, lhe traz para casa.
Mas, quando se desprende da contemplação do real, quando se despreocupa
do estado exacto da natureza humana, quando solta o seu espírito como um
silfo alado no pleno azul da fantasia, a sua imaginação, onde há um não
sei quê de estranho, de fantasmagórico, de pandemónico, de macabro,
produz essas maravilhas que se chamam o Mandarim e a Relíquia.
Sobre a nudez forte da verdade
− o manto diáfano da fantasia − escreve
ele, como um dístico, na primeira pagina desta última obra. E esta é,
com efeito, a fórmula precisa e exacta da sua fantasia, cujo carácter
intimo está justamente no facto, à primeira vista paradoxal, de ser,
como muito subtilmente a definia OLIVEIRA MARTINS, uma fantasia realista. A realidade transfigurada pela incoerência do sonho
− eis o que constitui o fundo, a urdidura dessas obras. Há nisto uma
faculdade de visão especial, talvez uma deformação patológica da retina
artística, que descobre nas cousas e,
nos seres aspectos imprevistos, inconsequentes e um delírio lúcido,
onde, através das curvas, das volutas caprichosas e febricitantes do
desvairamento imaginativo, a razão conserva a sua serenidade, a sua
força presente, a sua acção crítica.
A sua forma, o seu estilo é uma emanação directa e espontânea da sua
psicologia artística: é como o perfume que se exala de uma corola, ou a
evaporação que sobe de um lago. É inconfundível com qualquer outro
estilo, porque o espírito, cujas emoções e ideias verbalmente fixa, é
por sua vez inconfundível com outro espírito qualquer. Essa
originalidade, tão admirada, da sua linguagem vem-lhe da originalidade
do seu pensamento. E a lenda − aliás verdadeira da sua morosa e laboriosa
composição não destrói o que acabo de dizer. Não há nesse trabalho
lento uma dificuldade de expressão: o que há é o escrúpulo meticuloso
de um artista sedento de perfeição plástica da palavra, que só larga a
pena quando julga ter esgotado todos os recursos do seu verbo,
/ 16 /
para dar aos seus pensamentos a mais bela, correcta, justa e
cristalina forma.
Psicólogo, moralista, humorista; fantasista, poeta e artista
− eis o feixe admirável de faculdades de que esse espírito é
como que o nódulo ganglionar e que em todos os seus livros
vemos em acção, numa riqueza e abundância de notas, que
de cada um deles faz uma obra perfeita, cheia e acabada.
Está hoje no vigor da idade, na plena maturação do seu
talento, nesse momento de lucidez calma e consciente que é
a hora suprema da vida intelectual. E, morto CAMILO, a soberania do romance, que já
com o velho e glorioso Mestre
compartilhava, fica-lhe agora inteira e completa, sem o
menor vislumbre de dúvida e sem a menor sombra de contestação.
LUÍS DE MAGALHÃES |