O Sr. D. ALBERTO BRAMÃO no
seu interessante livro Recordações do jornalismo, da política, da
literatura e do mundanismo, publicado em 1936, insere um capítulo
intitulado: A Rolinada. Júlio de Vilhena
com fome, e do qual extrato o mais importante:
− que em 1863, se deu em Coimbra um acontecimento
universitário que ficou célebre com o nome de Rolinada.
− que esse nome proveio do ter o duque de Loulé, presidente do Ministério, de apelido Rolin de Moura
Barreto,
negado um perdão d'acto pedido pelos estudantes.
− que o movimento de protesto levou a academia a abandonar Coimbra e que
Júlio de Vilhena, meu pai, foi com ela para o Porto, de caminho de
ferro, em 3.ª classe.
− que meu pai estava no 1.º ano de direito, e que tendo
esgotado a sua mesada, viu-se em apuro no Porto. Um amigo
valeu-lhe com 11 tostões e regressou a Coimbra, parando em Ovar.
− que nesta vila sentiu fome e, dirigindo-se a uma vendedeira de
sardinhas, lhe disse que tinha fome e não tinha
dinheiro. E ela lhe deu sardinhas e 800 réis para poder ir
até Aveiro.
− que nesta cidade encontrou uma família das suas relações que por 3
dias o hospedou e lhe deu o necessário
para regressar à Lusa-Atenas.
Vamos fazer algumas considerações sobre o assunto e desenvolvê-lo.
O caso deu-se, muitas vezes o ouvi contar, mas não com os pormenores que
o Sr. D. ALBERTO BRAMÃO lhe imprimiu.
Meu pai tinha uma excelente memória para
os factos, mas
fraquejava na citação das datas e dos lugares. É de notar que
eu me refiro aos últimos anos da sua vida; e o Sr. BRAMÃO,
que privou com ele, muito intimamente, desde 1925 a 1928,
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ano do seu falecimento, encontrou-o já na decadência, apesar de vivo e
esperto no diálogo, de lógico na discussão e de eloquente em tudo o que
dizia.
Depois, as vicissitudes da política haviam desassossegado o seu
espírito. Mesmo no regímen republicano, ele interessava-se pela sua
marcha, não porque esperasse benefícios, mas porque amigo da sua pátria,
e tendo dado na monarquia o melhor do, seu esforço para que ela sempre
brilhasse no concerto das nações europeias, todo o seu empenho era que
tudo corresse bem e a contento de todos. Assim, as recordações do seu
tempo de estudante universitário diluíam-se na barafunda das
preocupações políticas, e quando delas se socorria apareciam-lhe
nebulosas e confusas.
A portaria do Governo que negou o perdão de acto aos
estudantes da Universidade é assim redigida:
«Tendo sido presente a Sua Majestade El-Rei a representação de alguns estudantes da Universidade de Coimbra pedindo
isenção de fazer os actos no actual ano lectivo, graça que os mesmos
alunos solicitam em comemoração do nascimento de Sua Alteza o Príncipe
Real D. Carlos; e
Considerando que os mais gratos testemunhos de respeito que a mocidade
esperançosa da Universidade pode dar pelo feliz natalício do Príncipe
Real são os exemplos de aproveitamento nos seus estudos e todas as
demais provas de que serão dignos um dia, ao entrar na vida pública, de
merecerem a confiança do Rei e da nação;
Considerando que a concessão de dispensa dos exames seria uma excepção que os colocaria numa situação menos airosa ao lado dos alunos dos
outros estabelecimentos literários e científicos que não pediram tal
dispensa;
Considerando que sendo o requerimento assinado
apenas
por 5 estudantes sem a declaração de representarem a Academia, nem de
serem delegados dela, se mostra que o pedido a que se refere o mesmo
requerimento deixa de exprimir o voto não só da maioria dos estudantes
da Universidade mas nem sequer de uma parte importante deles, podendo
deduzir-se deste facto que a Academia em geral reconhece o anacronismo
de uma medida contrária aos verdadeiros princípios da instrução;
Considerando que a isenção dos actos é uma dispensa de lei que não cabe
nas atribuições do poder executivo;
Há por bem, o mesmo augusto Senhor, mandar declarar que não pode ser
concedida a dispensa dos actos requerida pelos suplicantes. O que assim
se participa ao Reitor da Universidade de Coimbra para os efeitos
devidos. Paço da Ajuda em 25 de Abril de 1864. Duque de Loulé.»
Quando aos estudantes foi comunicado o texto da Portaria, reuniram-se no
Largo da Feira, em número de 700.
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Aí discursaram à vontade, queimaram um boneco que tinha
a figura do Duque de Loulé e deliberaram sair de Coimbra.
O requerimento dirigido ao Duque tinha a assinatura
de 5 estudantes, entre os quais figurava Oliveira Vale que foi depois notável advogado em Lisboa, Chaves e Castro que
foi depois Lente de Teologia e Vieira de Castro que mais
tarde se havia de tornar célebre pelo crime de homicídio
em sua esposa − desventura lastimada pela amizade de CAMILO
CASTELO BRANCO.
Como se vê pela data da Portaria, não foi em Abril
de 1863 que se deu a Rolinada, mas sim em Abril de 1864.
Neste ano, meu pai ainda não estava no 1.º ano de Direito.
Ele frequentava o liceu em uma aula de alemão, onde teve
só um condiscípulo.
Como a questão era com os
alunos da Universidade, ele devia mostrar-se alheio às manifestações, mas, como
morava na Rua dos Anjos, n.º 9. com o seu protector académico Augusto César Elmano da Cunha e Costa, natural
de Águeda, matriculado no 4.º ano de Direito, como bicho
ingénuo e obediente, para não ficar abandonado em Coimbra,
acompanhou no êxodo o seu protector e foi com ele para Águeda, seguindo sozinho depois para o Porto.
Quando se lhe acabou o dinheiro no Porto, meu pai
resolveu voltar para Coimbra. Tinha no bolso somente 11 tostões.
Ter-se-ia metido no comboio até Ovar ou viria
até aqui em outro qualquer meio de locomoção? A vila de
Ovar é distante da actual estação de caminho de ferro e
se ele tivesse regressado por esta via, teria desanimado ao
saber que havia de palmilhar urna grande distância, de mais
a mais esfomeado.
Esta e outras mais que acudiram ao meu espírito, incitaram-me a resolvê-las com uma visita a Ovar e arredores.
Mas na impossibilidade imediata de a fazer, resolvi consultar
o sr. dr. Zagalo dos Santos, naquela vila morador e pessoa
muito conhecedora de assuntos ovarinos, e ele, com a maior solicitude e
paciência, respondeu o seguinte:
«A estação do caminho de ferro, em Ovar, foi construída
no meio de pinhais e somente em Maio de 64 foram avaliados os terrenos por onde se construiu, também, a estrada
que a ligaria à vila.
A estrada actual, em parte, não segue a primitiva e aquela
que sai defronte da estação em direcção ao poente foi aberta mais tarde.
A primeira casa que lá se fez foi de um negociante de
panos, chamado Costa, por alcunha o «Cana Verde», que,
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parece, a destinou primeiro para vivenda e fábrica de descasque de arroz
e depois para hospedaria, que o foi durante muitos anos, depois, e agora
é um colégio.
Não é da tradição vareira assar sardinhas às portas das tabernas.
É,
sim, assar castanhas no tempo próprio, servindo-se de uns
interessantes e lindos fogareiros, inteiramente de barro.
A Mala-Posta Lisboa-Porto não vinha a
Ovar. Seguia a estrada real, hoje
nacional, no seu segundo traçado, porque o presente tem sofrido inúmeras
alterações sobre aquele.
É possível que o Senhor Conselheiro Júlio de Vilhena
tivesse vindo pela Ria, a encantadora Ria de Aveiro, desembarcando no
Cais da Ribeira de Ovar ou do Bar, como o povo ainda diz.
No Cais da Ribeira havia uma hospedaria afamada pelo delicioso chá que
servia. Era do Tomé Simões. A lembrança desse chá na memória do Saldanha,
deu ao genro do
hospedeiro lugar de Recebedor deste Concelho. Seria lá
que seu pai conseguiu o empréstimo para a «barcada» até
Aveiro? Era muito possível, porque o homem era um excêntrico e estava
familiarizadíssimo com a estudantada de Coimbra que era do Norte.
Pelo sul da Capela do Mártir S. Sebastião, rente às
cancelas que
davam e dão passagem para S. João e Cabanões, havia a «benda» da
Libarata, um pobre palheiro de madeira
coberto a telha. Não se sabe se fora filha da necessidade de dar de beber
ao pessoal que construiu a linha, ou se ali estava para matar o bicho a
quem vinha das bandas de Souto e S. João da Madeira, ou para servir os
romeiros no dia da festa do santo frechado.
O Correio vinha-nos da Vila da Feira, primeiro trazido, a pé, por um
postilhão de acaso e confiança, depois por almocreve de contrato e
finalmente por carro bem guisalhado que descia pelo Outeiro até à Praça ou Rua da Graça.
A vinda de V. a Ovar, não o aquenta nem arrefenta,
para a traça do seu trabalho, porque tudo quanto encontrará
na Estação e arredores é posterior à inauguração da mesma.»
Em Ovar, meu pai não podia ter comido castanhas assadas, porque ainda
não as havia no mês de Abril. Comeu
portanto sardinhas e ou elas lhe foram fornecidas pelo Tomé
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Simões ou por qualquer mulher assadeira que estivesse à
porta deste ou em outra qualquer porta, − o que é certo é
que o caso se deu e nesse ponto a memória de meu pai não
tinha duas versões. De castanhas foi ele sempre muito caroável; de sardinhas, não; mas isso nada
quer dizer, porque um estômago de 19 anos tudo come e tudo digere.
Com os oito tostões emprestados pelo Tomé Simões ou
pela velha assadeira de sardinhas (para estar de acordo com a tradição familiar)
ele volveu a Aveiro.
Nesta cidade de nova atribulação.
Ele não conhecia ninguém e aquela família das suas relações é força de
expressão. Ele era um rapaz de 19 anos, vindo do concelho
de Ferreira do Alentejo, pobre e insignificante burgo naquele tempo. Seu pai era secretário da Câmara Municipal, vivendo
modestamente, sem ambições nem recordações de grandezas. É certo que ele era um Barbuda e havia casado com uma
Vilhena, dois apelidos nobres em qualquer parte de Portugal, mas
relações, se as tinha, eram com os da sua igualha
do distrito de Beja. Fora daí não devia conhecer mais ninguém, principalmente em Aveiro, cuja existência
ele saberia
pelo seu ofício municipalista.
Mas quem seria a família caridosa de Aveiro que o acolheu e lhe deu o necessário para regressar a Coimbra?
Em 1864 era director político do
Campeão das Províncias José Eduardo de Almeida Vilhena. Este senhor nasceu
em Aveiro. Entrou em 1855 para aquele jornal, onde esteve até 1900. Colaborou em muitos jornais políticos. Em 1853
publicou um romance histórico O Emigrado. Em 1855 fundou
em Aveiro com José Luciano de Castro um jornal literário − A Aurora
− hoje raríssimo. Em 1865 tomou a direcção política da
Opinião, órgão dos dissidentes do partido histórico, publicado em
Lisboa. Em 1903, director-chefe do Progresso de Aveiro, sendo considerado nessa data como
o mais antigo jornalista.
Tendo meu pai visto o seu nome subscrevendo o título
Campeão das Províncias e animado com a igualdade do apelido, foi pedir-lhe protecção e auxílio para o transporte
para Coimbra.
Demais, José Eduardo tinha uma irmã, D. Maria
da
Arrábida, poetisa de merecimento, que casou com Manuel
Firmino de Almeida Maia(1), natural de Aveiro e que nesta
cidade foi tudo quanto quis ser.
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E ambos, tratando-se de um Vilhena, com
aquele espírito de
solidariedade que nós temos por um fulano qualquer, que tenha o mesma
patronímico, hospedaram-no, socorreram-no e adiantaram-lhe o bastante
para o regresso.
Ainda julguei que entre os descendentes daquela Senhora corresse a
tradição da protecção a meu pai, possivelmente parente, vindo das
brenhas alentejanas e abandonado em Aveiro, pela magreza da sua mesada,
aos acasos da sorte, naquele momento ínfimo bicho do liceu e mais tarde estudante laureado, doutor de capelo, deputado, ministro da
marinha e da justiça, Governador do Banco de Portugal,
chefe do partido regenerador, juiz e presidente do Supremo Tribunal Administrativo, Par do Reino e Conselheiro de
Estado.
Mas o Sr. Dr. José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães, muito ilustre
professor da Faculdade de Direito de Lisboa e afamado causídico,
representante directo daquela família, disse-me que nada lhe constava.
No entanto, qualquer cousa houvera, porque meu pai muito honrava a
família de Manuel Firmino e havia prometido, quando chefe do partido regenerador, uma visita a Aveiro,
para
recordar a sua mocidade, como ele disse a um influente regenerador que o
havia convidado.
JOÃO JARDIM DE VILHENA |