João Jardim de Vilhena, Júlio Vilhena no distrito de Aveiro, Vol. IX, pp. 248-253.

JÚLIO VILHENA

NO DISTRITO DE AVEIRO

O Sr. D. ALBERTO BRAMÃO no seu interessante livro Recordações do jornalismo, da política, da literatura e do mundanismo, publicado em 1936, insere um capítulo intitulado: A Rolinada. Júlio de Vilhena com fome, e do qual extrato o mais importante:

− que em 1863, se deu em Coimbra um acontecimento universitário que ficou célebre com o nome de Rolinada.

− que esse nome proveio do ter o duque de Loulé, presidente do Ministério, de apelido Rolin de Moura Barreto, negado um perdão d'acto pedido pelos estudantes.

− que o movimento de protesto levou a academia a abandonar Coimbra e que Júlio de Vilhena, meu pai, foi com ela para o Porto, de caminho de ferro, em 3.ª classe.

− que meu pai estava no 1.º ano de direito, e que tendo esgotado a sua mesada, viu-se em apuro no Porto. Um amigo valeu-lhe com 11 tostões e regressou a Coimbra, parando em Ovar.

− que nesta vila sentiu fome e, dirigindo-se a uma vendedeira de sardinhas, lhe disse que tinha fome e não tinha dinheiro. E ela lhe deu sardinhas e 800 réis para poder ir até Aveiro.

− que nesta cidade encontrou uma família das suas relações que por 3 dias o hospedou e lhe deu o necessário para regressar à Lusa-Atenas.

Vamos fazer algumas considerações sobre o assunto e desenvolvê-lo.

O caso deu-se, muitas vezes o ouvi contar, mas não com os pormenores que o Sr. D. ALBERTO BRAMÃO lhe imprimiu.

Meu pai tinha uma excelente memória para os factos, mas fraquejava na citação das datas e dos lugares. É de notar que eu me refiro aos últimos anos da sua vida; e o Sr. BRAMÃO, que privou com ele, muito intimamente, desde 1925 a 1928, / 249 / ano do seu falecimento, encontrou-o já na decadência, apesar de vivo e esperto no diálogo, de lógico na discussão e de eloquente em tudo o que dizia.

Depois, as vicissitudes da política haviam desassossegado o seu espírito. Mesmo no regímen republicano, ele interessava-se pela sua marcha, não porque esperasse benefícios, mas porque amigo da sua pátria, e tendo dado na monarquia o melhor do, seu esforço para que ela sempre brilhasse no concerto das nações europeias, todo o seu empenho era que tudo corresse bem e a contento de todos. Assim, as recordações do seu tempo de estudante universitário diluíam-se na barafunda das preocupações políticas, e quando delas se socorria apareciam-lhe nebulosas e confusas.

A portaria do Governo que negou o perdão de acto aos estudantes da Universidade é assim redigida:

«Tendo sido presente a Sua Majestade El-Rei a representação de alguns estudantes da Universidade de Coimbra pedindo isenção de fazer os actos no actual ano lectivo, graça que os mesmos alunos solicitam em comemoração do nascimento de Sua Alteza o Príncipe Real D. Carlos; e

Considerando que os mais gratos testemunhos de respeito que a mocidade esperançosa da Universidade pode dar pelo feliz natalício do Príncipe Real são os exemplos de aproveitamento nos seus estudos e todas as demais provas de que serão dignos um dia, ao entrar na vida pública, de merecerem a confiança do Rei e da nação;

Considerando que a concessão de dispensa dos exames seria uma excepção que os colocaria numa situação menos airosa ao lado dos alunos dos outros estabelecimentos literários e científicos que não pediram tal dispensa;

Considerando que sendo o requerimento assinado apenas por 5 estudantes sem a declaração de representarem a Academia, nem de serem delegados dela, se mostra que o pedido a que se refere o mesmo requerimento deixa de exprimir o voto não só da maioria dos estudantes da Universidade mas nem sequer de uma parte importante deles, podendo deduzir-se deste facto que a Academia em geral reconhece o anacronismo de uma medida contrária aos verdadeiros princípios da instrução;

Considerando que a isenção dos actos é uma dispensa de lei que não cabe nas atribuições do poder executivo;

Há por bem, o mesmo augusto Senhor, mandar declarar que não pode ser concedida a dispensa dos actos requerida pelos suplicantes. O que assim se participa ao Reitor da Universidade de Coimbra para os efeitos devidos. Paço da Ajuda em 25 de Abril de 1864. Duque de Loulé.»

Quando aos estudantes foi comunicado o texto da Portaria, reuniram-se no Largo da Feira, em número de 700. / 250 / Aí discursaram à vontade, queimaram um boneco que tinha a figura do Duque de Loulé e deliberaram sair de Coimbra.

O requerimento dirigido ao Duque tinha a assinatura de 5 estudantes, entre os quais figurava Oliveira Vale que foi depois notável advogado em Lisboa, Chaves e Castro que foi depois Lente de Teologia e Vieira de Castro que mais tarde se havia de tornar célebre pelo crime de homicídio em sua esposa − desventura lastimada pela amizade de CAMILO CASTELO BRANCO.

Como se vê pela data da Portaria, não foi em Abril de 1863 que se deu a Rolinada, mas sim em Abril de 1864.

Neste ano, meu pai ainda não estava no 1.º ano de Direito. Ele frequentava o liceu em uma aula de alemão, onde teve só um condiscípulo.

Como a questão era com os alunos da Universidade, ele devia mostrar-se alheio às manifestações, mas, como morava na Rua dos Anjos, n.º 9. com o seu protector académico Augusto César Elmano da Cunha e Costa, natural de Águeda, matriculado no 4.º ano de Direito, como bicho ingénuo e obediente, para não ficar abandonado em Coimbra, acompanhou no êxodo o seu protector e foi com ele para Águeda, seguindo sozinho depois para o Porto.

Quando se lhe acabou o dinheiro no Porto, meu pai resolveu voltar para Coimbra. Tinha no bolso somente 11 tostões. Ter-se-ia metido no comboio até Ovar ou viria até aqui em outro qualquer meio de locomoção? A vila de Ovar é distante da actual estação de caminho de ferro e se ele tivesse regressado por esta via, teria desanimado ao saber que havia de palmilhar urna grande distância, de mais a mais esfomeado.

Esta e outras mais que acudiram ao meu espírito, incitaram-me a resolvê-las com uma visita a Ovar e arredores.

Mas na impossibilidade imediata de a fazer, resolvi consultar o sr. dr. Zagalo dos Santos, naquela vila morador e pessoa muito conhecedora de assuntos ovarinos, e ele, com a maior solicitude e paciência, respondeu o seguinte:

«A estação do caminho de ferro, em Ovar, foi construída no meio de pinhais e somente em Maio de 64 foram avaliados os terrenos por onde se construiu, também, a estrada que a ligaria à vila.

A estrada actual, em parte, não segue a primitiva e aquela que sai defronte da estação em direcção ao poente foi aberta mais tarde.

A primeira casa que lá se fez foi de um negociante de panos, chamado Costa, por alcunha o «Cana Verde», que, / 251 / parece, a destinou primeiro para vivenda e fábrica de descasque de arroz e depois para hospedaria, que o foi durante muitos anos, depois, e agora é um colégio.

Não é da tradição vareira assar sardinhas às portas das tabernas. É, sim, assar castanhas no tempo próprio, servindo-se de uns interessantes e lindos fogareiros, inteiramente de barro.

A Mala-Posta Lisboa-Porto não vinha a Ovar. Seguia a estrada real, hoje nacional, no seu segundo traçado, porque o presente tem sofrido inúmeras alterações sobre aquele.

É possível que o Senhor Conselheiro Júlio de Vilhena tivesse vindo pela Ria, a encantadora Ria de Aveiro, desembarcando no Cais da Ribeira de Ovar ou do Bar, como o povo ainda diz.

No Cais da Ribeira havia uma hospedaria afamada pelo delicioso chá que servia. Era do Tomé Simões. A lembrança desse chá na memória do Saldanha, deu ao genro do hospedeiro lugar de Recebedor deste Concelho. Seria lá que seu pai conseguiu o empréstimo para a «barcada» até Aveiro? Era muito possível, porque o homem era um excêntrico e estava familiarizadíssimo com a estudantada de Coimbra que era do Norte.

Pelo sul da Capela do Mártir S. Sebastião, rente às cancelas que davam e dão passagem para S. João e Cabanões, havia a «benda» da Libarata, um pobre palheiro de madeira coberto a telha. Não se sabe se fora filha da necessidade de dar de beber ao pessoal que construiu a linha, ou se ali estava para matar o bicho a quem vinha das bandas de Souto e S. João da Madeira, ou para servir os romeiros no dia da festa do santo frechado.

O Correio vinha-nos da Vila da Feira, primeiro trazido, a pé, por um postilhão de acaso e confiança, depois por almocreve de contrato e finalmente por carro bem guisalhado que descia pelo Outeiro até à Praça ou Rua da Graça.

A vinda de V. a Ovar, não o aquenta nem arrefenta, para a traça do seu trabalho, porque tudo quanto encontrará na Estação e arredores é posterior à inauguração da mesma.»

Em Ovar, meu pai não podia ter comido castanhas assadas, porque ainda não as havia no mês de Abril. Comeu portanto sardinhas e ou elas lhe foram fornecidas pelo Tomé / 252 / Simões ou por qualquer mulher assadeira que estivesse à porta deste ou em outra qualquer porta, − o que é certo é que o caso se deu e nesse ponto a memória de meu pai não tinha duas versões. De castanhas foi ele sempre muito caroável; de sardinhas, não; mas isso nada quer dizer, porque um estômago de 19 anos tudo come e tudo digere.

Com os oito tostões emprestados pelo Tomé Simões ou pela velha assadeira de sardinhas (para estar de acordo com a tradição familiar) ele volveu a Aveiro.

Nesta cidade de nova atribulação. Ele não conhecia ninguém e aquela família das suas relações é força de expressão. Ele era um rapaz de 19 anos, vindo do concelho de Ferreira do Alentejo, pobre e insignificante burgo naquele tempo. Seu pai era secretário da Câmara Municipal, vivendo modestamente, sem ambições nem recordações de grandezas. É certo que ele era um Barbuda e havia casado com uma Vilhena, dois apelidos nobres em qualquer parte de Portugal, mas relações, se as tinha, eram com os da sua igualha do distrito de Beja. Fora daí não devia conhecer mais ninguém, principalmente em Aveiro, cuja existência ele saberia pelo seu ofício municipalista.

Mas quem seria a família caridosa de Aveiro que o acolheu e lhe deu o necessário para regressar a Coimbra?

Em 1864 era director político do Campeão das Províncias José Eduardo de Almeida Vilhena. Este senhor nasceu em Aveiro. Entrou em 1855 para aquele jornal, onde esteve até 1900. Colaborou em muitos jornais políticos. Em 1853 publicou um romance histórico O Emigrado. Em 1855 fundou em Aveiro com José Luciano de Castro um jornal literário − A Aurora − hoje raríssimo. Em 1865 tomou a direcção política da Opinião, órgão dos dissidentes do partido histórico, publicado em Lisboa. Em 1903, director-chefe do Progresso de Aveiro, sendo considerado nessa data como o mais antigo jornalista.

Tendo meu pai visto o seu nome subscrevendo o título Campeão das Províncias e animado com a igualdade do apelido, foi pedir-lhe protecção e auxílio para o transporte para Coimbra.

Demais, José Eduardo tinha uma irmã, D. Maria da Arrábida, poetisa de merecimento, que casou com Manuel Firmino de Almeida Maia(1), natural de Aveiro e que nesta cidade foi tudo quanto quis ser. / 253 /

E ambos, tratando-se de um Vilhena, com aquele espírito de solidariedade que nós temos por um fulano qualquer, que tenha o mesma patronímico, hospedaram-no, socorreram-no e adiantaram-lhe o bastante para o regresso.

Ainda julguei que entre os descendentes daquela Senhora corresse a tradição da protecção a meu pai, possivelmente parente, vindo das brenhas alentejanas e abandonado em Aveiro, pela magreza da sua mesada, aos acasos da sorte, naquele momento ínfimo bicho do liceu e mais tarde estudante laureado, doutor de capelo, deputado, ministro da marinha e da justiça, Governador do Banco de Portugal, chefe do partido regenerador, juiz e presidente do Supremo Tribunal Administrativo, Par do Reino e Conselheiro de Estado.

Mas o Sr. Dr. José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães, muito ilustre professor da Faculdade de Direito de Lisboa e afamado causídico, representante directo daquela família, disse-me que nada lhe constava.

No entanto, qualquer cousa houvera, porque meu pai muito honrava a família de Manuel Firmino e havia prometido, quando chefe do partido regenerador, uma visita a Aveiro, para recordar a sua mocidade, como ele disse a um influente regenerador que o havia convidado.

JOÃO JARDIM DE VILHENA

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(1) Cinquenta anos de vida política, por MARQUES GOMES. Livro muito interessante que fala de Manuel Firmino, da sua influência, da sua politica, dos seus dotes intelectuais, da sua família, − alguém que prestou serviços à sua terra e ao seu pais e cuja memória é ainda hoje venerada.

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