Joaquim Rodrigues da Silva, O "Sete Instrumentos", Vol. VII, pp. 222-226.

LITERATURA REGIONAL
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CONCELHO DE ESTARREJA

O "SETE INSTRUMENTOS"

DISSERAM-ME que era um pândego e que andava por ali havia mais de oito dias. Nunca, porém, se embriagava, como era tão vulgar nos que vinham para a feira ou praça cantar o fado. Nem ao Domingo, nunca; nunca ele mostrou que tinha pinguita a mais!

E parece que o povo lhe queria até mais por isso! Viam-no rir, cantar, tocar, meter-se com as moças, reinadio, mas sempre fino, aprumado, sempre inflexível, sempre as mais correctas atitudes.

Grande pândego, grandíssimo pândego, dizia este e aquele dos do povo que saía da roda, indo-se à vidinha contente daquele homem que tão bem tocava.

Sete Instrumentos estava na Vila havia oito dias, hospedara-se na ti' Domingas, ia cedo a Salreu, a Canelas, a todas as freguesias em volta, para regressar à noitinha, pelo lusco-fusco, mais folgazão, mais jocoso, radiante por si próprio − quem sabe se reflexo puro de sentimentos e ideias íntimas! − e radiante por aquela bizarria de instrumentos, uns ligados às pernas, outros à barriga, e outros presos à cabeça e aos braços, numa felicíssima combinação que o tornava invulgarmente curioso e pitoresco.

Ninguém soube donde viera ou donde era natural. E também ninguém lhe ouvira o nome. O homem falava muito pouco e quase nunca falava a sério.

− O Sete Instrumentos?! Onde anda, víste-Io?!

E, informados, logo os rapazes corriam esbaforidos, já prontos a rir e a louvar, que aquilo é que era um «home» pândego, e lindo o que tocava!...

Sete Instrumentos levantava-se cedinho e lá ia, dando volta às freguesias todas, assim como pedinte, mas emprestando comovida e alegremente aos caminhos, aos campos, aos casais e às pessoas, a risonha animação da sua arte que, por milagre / 223 / [Vol. VII - N.º 27 - 1941] da sua destreza e génio, era agora enaltecida e como que mais bela.

A loja da ti' Domingas era o seu quartel general. Ali tinha um saco − resumo completo da sua riqueza. Ali vinha dormir todos os dias e nada mais se conhecia a seu respeito... Os sete instrumentos que trouxe eram também os seus amigos e confidentes.

De dia errava de aldeia em aldeia, mais, porém, para reinar que para ganhar; e à noite, na loja da ti' Domingas, lá o veriam a tocar, a dançar, a reinar com toda a alma!

E então a nossa ti' Domingas, perdida por música, como se desvanecia do hóspede, encantada com o «raça do homem»!... É que ele era de facto um grande pândego e um grande artista!

Todos gostavam dele. Toda a Vila o conhecia já. Era assim, mal havia chegado, como que um tipo da terra, uma dessas criaturas que há nas localidades, conhecidas de todos e por todos... atormentadas!...

O Sete Instrumentos parecia também conhecer toda a gente. Tinha deferências, atenções para qualquer um. Era criado humilde e atento, e cumpridor, tanto dos garotos da rua como daqueles senhores de trancelim sobre o ventre bojudo. E também todos o queriam, todos desejavam a sua presença e por certo eram já também seus amigos. Figura bem disputada, este Sete Instrumentos!...

Insinuante, ar de grande homem caído na miséria, divertido, bom músico, tocava como maestro, e tocava sempre se alguém quisesse... Fora agora instrumento de palheta, de cordas ou de foles, tudo palpitava, tudo vibrava melodias nas suas mãos nervosas...

O Sete Instrumentos!... Fina coisa, isso sim... que era homem para tocar nos céus, sei lá onde... se não fora aquele seu génio, aquela cisma!...

Dizia-me isto, há tempos, um dos seus melhores amigos, aquele que lhe pedia ora um vira, um fado, um corridinho − o João Cortador, não conhecem?! − outro típico de Estarreja, tão célebre pelo seu bom coração, pelas suas proezas de feiras e pelo génio de rambóia, e dançador de romarias, como não há segundo!...

− Para aí anda, sabe-se lá por onde e como, um homem que daria brado, se fosse ter a qualquer boa terra, e que posto a tocar num palco de Lisboa ou Porto, traria gente do fim do mundo para o ouvir.

Mas o Sete Instrumentos retirou-se da Vila. Tinha vindo como vêm os que tocam na praça, aos Domingos, e os que vêm para a feira de Santo Amaro. Tinha vindo muito simplesmente, e tomou logo fama imensa, e criou um mistério!... À volta da sua personalidade tudo se resumia em interrogações, dúvidas admiradas, espantos, e como assim, quando um dia / 224 / se foi embora, o golpe brusco da sua partida, aquela decisão pronta, veio robustecer mais aquele espanto, adensar mais todo o mistério criado.

E diziam alguns, talvez aqueles que menos o apreciavam pela sua figura e música do que pelo ambiente de paródia que sabia criar, que o homem devia estar ali fugido, ou de passagem, que era decerto um espião ou talvez pior!...

Enfim, porque o homem não ligava ao dinheiro e falava pouco, e bebia pouco e tinha um ar de intelectual pouco cuidadoso de si, porque ele andava por ali assim, e divertindo por divertir, divertindo a mando de qualquer garoto, cobrem-no agora com os farrapos da sua maledicência em vez de prestar-lhe o jus duma inteligente estima e votar-lhe uma saudade contente e alegre!

O Sete Instrumentos!... Nunca eu vi um pobre tocador de feiras mais simpático, e mais artista. Figura de tipo de aldeia dos mais curiosos, figura única!... No pé esquerdo, ali à altura do tornozelo, uma marreta; no pé direito, à mesma altura, um pequenino bombo. E depois, uma gaita de foles debaixo do braço e uma pandeireta na cabeça, um prato no flanco, outro no cotovelo e castanholas na mão esquerda, ferrinhos suspensos da cinta e uma viola presa numa fita vermelha a tiracolo, viola rica, viola formosíssima, de que ele sabia tirar maravilhas e que lhe merecia todos os seus desvelos...

Com esta viola nas mãos, e poucos mais instrumentos, o que lhe pedísseis, qualquer peça musical da vossa estima, seria um pouco mais bela, agradar-vos-ia mais! Por mim, pedi-lhe um dia a «Lenda de um Beijo»! O homem riu, acenou que sim, e os instrumentos, não sei quantos, nem quais, mas ou porque fossem dois apenas ou porque fossem os sete, só sei que vi nos altos e baixos daquela música, nos trechos mais animados e nos mais lentos, que a alma daquele artista se comunicava de beleza, e que, arrebatado, librando-se nela, vivia as mais fantásticas harmonias para que fôssemos tocados da sua chama, para enfim nos comunicar, em profunda e agradável emoção, as virtudes salutares duma bela música!...

Naquele homem palpitava um mistério de que a sua figura, toda a sua personalidade e a sua arte, devem ser os elementos substanciais.

Falava muito pouco. Interrogado, limitava-se a ouvir ou contradizer levemente. E mal vestido, mal calçado, os cabelos soltos, secos, despenteados, tomava, assim, um ar mais impressionante de desconforto e abandono!...

Teria trinta anos, se tanto. Era de meia altura... Estranha marca dos grandes artistas: o seu nome ganha o atributo, a identificação da sua arte!... Chamavam-lhe o Sete instrumentos, há-de chamar-se assim onde quer que vá com eles!...

Pela Vila, lá na loja ou na Praça, tocava geralmente as / 225 / chulas das nossas províncias, os viras, as canções e os fados. Achava talvez que só isso ou que essas, mais que nenhumas outras, comoviam o nosso povo. E como para o povo, mais que para nós, comover é agradar, tocava as músicas do seu maior agrado.

Todavia, podia tocar-nos tudo. Pedísseis-lhe um clássico, Schubert, Mozart, Chopin e veríeis então os seus olhos garços, como que agradecidos, dirigirem-se-vos contentes, brilhando duma franqueza e alegria que vos tocava a alma e vos dizia da sua estima agradecida.

Sete Instrumentos, coitado... às vezes até metia dó o seu olhar dolorido e aquela esforçada luta de músculos para nos mostrar como tocava os instrumentos todos; é que ele torcia-se, ondeava, obcecado em tirar as notas do retorcer dos seus músculos e articulações... Parecia querer assim fazer do seu corpo o nervo duma orquestra!...

Era um fenómeno!...

Aquele homem, que ria e chorava quando queria, fazia também que, suspensos, tocados da sua arte comovida, ríssemos e chorássemos a seu querer!

Ele dominava a beleza, ele fazia beleza com as suas mãos, tinha-a ali para nos maravilhar e para nos dar prova plena de que o homem de génio faz das coisas da vida nascer outras vidas e coisas novas!...

Mas um dia Sete Instrumentos partiu, e na Vila ficou um vácuo. Ele viera sem alardes, quase subreptício... Viera como qualquer tocador ambulante! À partida, porém, teve um cortejo de saudades, posto que íntimas todas, mudas, caladas como o seu mistério, como a sua alma. Ninguém quis tomar a sério que ele se fosse embora para não voltar mais, e choravam-no sufocando-se, na esperança de que voltaria em breve. Ninguém estremeceu, ninguém lhe acenou, não houve sequer um gesto que se desenhasse... O cortejo era bem de lágrimas sufocadas, de saudades esperançosas, só meio tristes... só como cauda de mistério!

Foi por uma manhã de domingo. Um dia de mercado que, como. bem sabem, é como festa em Estarreja, é mesmo uma festa semanal em Estarreja. Primavera, era Abril; Abril soalhento, corridinho de brisas, verde e perfumado!... Sete Instrumentos tocava na praça. O povo ria-se, enlevava-se, tomava este prazer que lhe fazia bem!.., Não ignoram por certo que, sejam quais eles forem, os prazeres ao povo fazem sempre bem!...

E depois, com esta música esqueciam-se as contrariedades da vida, umas tantas incertezas, e as dúvidas agonizantes, e os inimigos mais as desavenças, e as tabernas, tudo enfim ficaria para o lado!... Poder imenso, acção imensa, magia adorável dum artista e duma arte!...

Sete Instrumentos vivia a sua hora. Estava no seu púlpito / 226 / mais querido, inclinava para os corações em êxtase o vinho perfumado e vivificador do seu credo apostólico!... Era todo ele um mistério... E não obstante, uma certeza actuava sempre − era que ele tocava para quem quisesse, e tocava tudo, tocava para todos, e divinamente e genialmente e mais satisfeito, mais contente, mesmo agradecido, se lhe pediam músicas para pensar, músicas românticas ou clássicas que nos fizessem suspender a alma, sonhando, esquecendo ou recordando!... Então sim, que se comovia mais, e vibrava em todo o seu ser, como se às almas que o escutavam quisesse entregar a sua alma, o seu nunca sondado mistério!...

Mas da multidão que o cercava adiantou-se uma farda. Avançou para o músico, cortante, fria!... As bocas, expectantes, abriram-se mais. Meia zanga, meio espanto, inquietação, meio terror!... E o Sete Instrumentos tombou do altar do seu êxtase. Calou a sua arte, o seu credo, tocados pela mão crua, má, intolerante do homem fardado!

E foi então, talvez pela vez primeira, que Sete Instrumentos ouviu um homem dizer que não queria ouvir música...

Os seus olhos brilharam numa chama dolente, como o entardecer do calvário!...

E lá se foi embora, num cambalear trágico a que o ambiente de decepção e tristeza retirava o cómico!... Foi-se embora, e ninguém mais o viu. Dissolveu-se no povo, anda para aí entre o povo, por ventura entre os que ensinou a evitar os prazeres abomináveis, ou talvez envolto na sua angústia, caído na beira da estrada, ou na esquina da tua rua.

Não creias também que fosse espião!... Era só um mistério. Fez-nos bem, fez sempre bem com o seu génio amoroso e a sua arte. Esta era a sua grande certeza, a certeza constante da sua vida... Agora, vai aí por esse mundo, afundando-se em mistério e na sua dor. Pobre dele! Lembras-te que outrora quando lhe atiravam dinheiro, o repartia com os pobres? Olha, talvez agora regateie migalhas, talvez seja esse pobre andrajoso a que deste com repugnância uns míseros cobrezitos!...

Será talvez esse pobre!... É mais negro o seu mistério de agora! Atira-lhe uma esmola maior. Se ele for reparti-la, são muitas esmolas que dás; e, se for para a taberna, não te arrependa isso: ele ajudou muitos a não irem lá. Foi um dedo trágico que lhe indicou este novo caminho. Pobre dele, há-de sentir-se infeliz com isso, ou, que não se sinta, tanto melhor; é que vai lá para aturdir-se, vai afogar as suas deres!

E olha, tu não és capaz de aumentar a tua esmola, sabendo que é ela um bálsamo do pobre?! lnda que ele vá à taberna gastá-la para aturdir-se, ainda que ela seja o único meio de apagar as mágoas, dissolver uma grande dor, abafar um grande mistério?!

JOAQUIM RODRIGUES DA SILVA

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