DISSERAM-ME que era um
pândego e que andava por
ali havia mais de oito dias. Nunca, porém, se embriagava, como era tão vulgar nos que vinham
para a feira ou praça cantar o fado. Nem ao Domingo, nunca;
nunca ele mostrou que tinha pinguita a mais!
E parece que o povo lhe queria até mais por isso! Viam-no rir, cantar,
tocar, meter-se com as moças, reinadio, mas sempre fino, aprumado,
sempre inflexível, sempre as mais correctas atitudes.
Grande pândego, grandíssimo pândego, dizia
este e aquele dos do povo que
saía da roda, indo-se à vidinha contente daquele homem que tão bem
tocava.
Sete Instrumentos estava na Vila havia oito dias, hospedara-se na ti'
Domingas, ia cedo a Salreu, a Canelas, a todas as freguesias em volta, para regressar à noitinha, pelo lusco-fusco,
mais folgazão, mais jocoso, radiante por si próprio − quem sabe se
reflexo puro de sentimentos e ideias íntimas! − e radiante por aquela
bizarria de instrumentos, uns ligados às pernas, outros à barriga, e
outros presos à cabeça e aos braços, numa felicíssima combinação que o
tornava invulgarmente curioso e pitoresco.
Ninguém soube donde viera ou donde era natural. E também ninguém lhe
ouvira o nome. O homem falava muito pouco e quase nunca falava a sério.
− O Sete Instrumentos?! Onde anda, víste-Io?!
E, informados, logo os rapazes corriam esbaforidos, já
prontos a rir e a louvar, que aquilo é que era um «home» pândego, e
lindo o que tocava!...
Sete Instrumentos levantava-se cedinho e lá ia, dando volta
às freguesias todas, assim como pedinte, mas emprestando comovida e alegremente aos caminhos, aos campos, aos casais
e às pessoas, a risonha animação da sua arte que, por milagre
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[Vol. VII -
N.º 27 - 1941]
da sua destreza e génio, era agora enaltecida e como que mais bela.
A loja da ti' Domingas era o seu quartel general. Ali tinha um saco
−
resumo completo da sua riqueza. Ali vinha dormir todos os dias e nada
mais se conhecia a seu respeito... Os sete instrumentos que trouxe eram
também os seus amigos e confidentes.
De dia errava de aldeia em aldeia, mais, porém, para reinar que para
ganhar; e à noite, na loja da ti' Domingas, lá o veriam a tocar, a
dançar, a reinar com toda a alma!
E então a nossa ti' Domingas, perdida por música, como se
desvanecia do
hóspede, encantada com o «raça do homem»!... É que ele era de facto um
grande pândego e um grande artista!
Todos gostavam dele. Toda a Vila o conhecia já. Era assim, mal havia
chegado, como que um tipo da terra, uma dessas criaturas que há nas
localidades, conhecidas de todos e por todos... atormentadas!...
O Sete Instrumentos parecia também conhecer toda a gente. Tinha
deferências, atenções para qualquer um. Era criado humilde e atento, e
cumpridor, tanto dos garotos da rua como daqueles senhores de trancelim
sobre o ventre bojudo. E também todos o queriam, todos desejavam a sua
presença e por certo eram já também seus amigos. Figura bem disputada,
este Sete Instrumentos!...
Insinuante, ar de grande homem caído na miséria, divertido, bom músico,
tocava como maestro, e tocava sempre se alguém quisesse... Fora agora
instrumento de palheta, de cordas ou de foles, tudo palpitava, tudo
vibrava melodias nas suas mãos nervosas...
O Sete Instrumentos!... Fina coisa, isso sim... que era homem para tocar
nos céus, sei lá onde... se não fora aquele seu génio, aquela cisma!...
Dizia-me isto, há tempos, um dos seus melhores amigos, aquele que
lhe
pedia ora um vira, um fado, um corridinho − o
João Cortador, não conhecem?! − outro típico de Estarreja, tão célebre
pelo seu bom coração, pelas suas proezas de feiras e pelo génio de
rambóia, e dançador de romarias, como não há segundo!...
− Para aí anda, sabe-se lá por onde e como, um homem que daria brado,
se
fosse ter a qualquer boa terra, e que posto a tocar num palco de Lisboa
ou Porto, traria gente do fim do mundo para o ouvir.
Mas o Sete Instrumentos retirou-se da Vila. Tinha vindo como vêm os que
tocam na praça, aos Domingos, e os que vêm para a feira de Santo Amaro.
Tinha vindo muito simplesmente, e tomou logo fama imensa, e criou um mistério!...
À volta da sua
personalidade tudo se resumia em interrogações, dúvidas admiradas,
espantos, e como assim, quando um dia
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se foi embora, o golpe brusco da sua partida, aquela decisão
pronta, veio robustecer mais aquele espanto, adensar mais todo o
mistério criado.
E diziam alguns, talvez aqueles que menos o apreciavam
pela sua figura e música do que pelo ambiente de paródia que sabia
criar, que o homem devia estar ali fugido, ou de passagem, que era decerto um espião ou
talvez pior!...
Enfim, porque o homem não ligava ao dinheiro e falava
pouco, e bebia pouco e tinha um ar de intelectual pouco cuidadoso de si, porque
ele andava por ali assim, e divertindo por
divertir, divertindo a mando de qualquer garoto, cobrem-no
agora com os farrapos da sua maledicência em vez de prestar-lhe o jus duma inteligente estima e votar-lhe uma saudade contente e
alegre!
O Sete Instrumentos!... Nunca eu vi um pobre tocador de
feiras mais simpático, e mais artista. Figura de tipo de aldeia
dos mais curiosos, figura única!... No pé esquerdo, ali à altura
do tornozelo, uma marreta; no pé direito, à mesma altura, um
pequenino bombo. E depois, uma gaita de foles debaixo do
braço e uma pandeireta na cabeça, um prato no flanco, outro
no cotovelo e castanholas na mão esquerda, ferrinhos suspensos
da cinta e uma viola presa numa fita vermelha a tiracolo, viola
rica, viola formosíssima, de que ele sabia tirar maravilhas e que
lhe merecia todos os seus desvelos...
Com esta viola nas mãos, e poucos mais instrumentos, o
que lhe pedísseis, qualquer peça musical da vossa estima, seria
um pouco mais bela, agradar-vos-ia mais! Por mim, pedi-lhe
um dia a «Lenda de um Beijo»! O homem riu, acenou que
sim, e os instrumentos, não sei quantos, nem quais, mas ou
porque fossem dois apenas ou porque fossem os sete, só sei que
vi nos altos e baixos daquela música, nos trechos mais animados
e nos mais lentos, que a alma daquele artista se comunicava de beleza, e
que, arrebatado, librando-se nela, vivia as mais fantásticas harmonias para que fôssemos tocados da sua chama,
para enfim nos comunicar, em profunda e agradável emoção, as
virtudes salutares duma bela música!...
Naquele homem palpitava um mistério de que a sua figura,
toda a sua personalidade e a sua arte, devem ser os elementos
substanciais.
Falava muito pouco. Interrogado, limitava-se a ouvir ou
contradizer levemente. E mal vestido, mal calçado, os cabelos
soltos, secos, despenteados, tomava, assim, um ar mais impressionante de desconforto e abandono!...
Teria trinta anos, se tanto. Era de meia altura... Estranha marca dos grandes artistas: o seu nome ganha o atributo, a
identificação da sua arte!... Chamavam-lhe o Sete instrumentos,
há-de chamar-se assim onde quer que vá com eles!...
Pela Vila, lá na loja ou na Praça, tocava geralmente as
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chulas das nossas províncias, os viras, as canções e os fados. Achava
talvez que só isso ou que essas, mais que nenhumas outras, comoviam o
nosso povo. E como para o povo, mais que para nós, comover é agradar,
tocava as músicas do seu maior agrado.
Todavia, podia tocar-nos tudo. Pedísseis-lhe um clássico, Schubert,
Mozart, Chopin e veríeis então os seus olhos garços, como que
agradecidos, dirigirem-se-vos contentes, brilhando duma franqueza e
alegria que vos tocava a alma e vos dizia da sua estima agradecida.
Sete Instrumentos, coitado... às vezes até metia dó o seu olhar dolorido
e aquela esforçada luta de músculos para nos mostrar como tocava os
instrumentos todos; é que ele torcia-se, ondeava, obcecado em tirar as
notas do retorcer dos seus músculos e articulações... Parecia querer
assim fazer do seu corpo o nervo duma orquestra!...
Era um fenómeno!...
Aquele homem, que ria e chorava quando queria, fazia
também que, suspensos, tocados da sua arte comovida, ríssemos
e chorássemos a seu querer!
Ele dominava a beleza, ele fazia beleza com as suas mãos,
tinha-a ali para nos maravilhar e para nos dar prova plena de que o homem de génio faz das coisas da vida nascer outras
vidas e coisas novas!...
Mas um dia Sete Instrumentos
partiu, e na Vila ficou um vácuo. Ele viera sem alardes, quase subreptício... Viera como qualquer tocador
ambulante! À partida, porém, teve um cortejo de saudades, posto que
íntimas todas, mudas, caladas como o seu mistério, como a sua alma.
Ninguém quis tomar a sério que ele se fosse embora para não voltar mais,
e choravam-no sufocando-se, na esperança de que voltaria em breve.
Ninguém estremeceu, ninguém lhe acenou, não houve sequer um gesto que se
desenhasse... O cortejo era bem de lágrimas sufocadas, de saudades
esperançosas, só meio tristes... só como cauda de mistério!
Foi por uma manhã de domingo. Um dia de mercado que, como. bem sabem, é
como festa em Estarreja, é mesmo uma festa semanal em Estarreja.
Primavera, era Abril; Abril soalhento, corridinho de brisas, verde e
perfumado!... Sete Instrumentos tocava na praça. O povo ria-se,
enlevava-se, tomava este prazer que lhe fazia bem!.., Não ignoram por
certo que, sejam quais eles forem, os prazeres ao povo fazem sempre
bem!...
E depois, com esta música esqueciam-se as contrariedades da vida, umas
tantas incertezas, e as dúvidas agonizantes, e os inimigos mais as
desavenças, e as tabernas, tudo enfim ficaria para o lado!... Poder
imenso, acção imensa, magia adorável dum artista e duma arte!...
Sete Instrumentos vivia a sua hora. Estava no seu púlpito
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mais querido, inclinava para os corações em êxtase o vinho perfumado e
vivificador do seu credo apostólico!... Era todo ele um mistério... E
não obstante, uma certeza actuava sempre − era que ele tocava para quem
quisesse, e tocava tudo, tocava para todos, e divinamente e genialmente
e mais satisfeito, mais contente, mesmo agradecido, se lhe pediam
músicas para pensar, músicas românticas ou clássicas que nos fizessem
suspender
a alma, sonhando, esquecendo ou recordando!... Então sim,
que se comovia mais, e vibrava em todo o seu ser, como se às almas que
o escutavam quisesse entregar a sua alma, o seu nunca sondado mistério!...
Mas da multidão que o cercava adiantou-se uma farda. Avançou para o
músico, cortante, fria!... As bocas, expectantes, abriram-se mais. Meia
zanga, meio espanto, inquietação, meio terror!... E o Sete Instrumentos
tombou do altar do seu êxtase. Calou a sua arte, o seu credo, tocados
pela mão crua, má, intolerante do homem fardado!
E foi então, talvez pela vez primeira, que
Sete Instrumentos
ouviu um homem dizer que não queria ouvir música...
Os seus olhos brilharam numa chama dolente, como o
entardecer do calvário!...
E lá se foi embora, num cambalear trágico a que o ambiente
de decepção e tristeza retirava o cómico!... Foi-se embora, e ninguém
mais o viu. Dissolveu-se no povo, anda para aí entre o povo, por ventura
entre os que ensinou a evitar os prazeres abomináveis, ou talvez envolto
na sua angústia, caído na beira da estrada, ou na esquina da tua rua.
Não creias também que fosse espião!... Era só um mistério. Fez-nos bem,
fez sempre bem com o seu génio amoroso e a sua arte. Esta era a sua
grande certeza, a certeza constante da sua vida... Agora, vai aí por
esse mundo, afundando-se em mistério e na sua dor. Pobre dele!
Lembras-te que outrora quando lhe atiravam dinheiro, o repartia com os
pobres? Olha, talvez agora regateie migalhas, talvez seja esse pobre
andrajoso a que deste com repugnância uns míseros cobrezitos!...
Será talvez esse pobre!... É mais negro o seu mistério de agora!
Atira-lhe uma esmola maior. Se ele for reparti-la, são muitas esmolas
que dás; e, se for para a taberna, não te arrependa isso: ele ajudou
muitos a não irem lá. Foi um dedo trágico que lhe indicou este novo
caminho. Pobre dele, há-de sentir-se infeliz com isso, ou, que não se
sinta, tanto melhor; é que vai lá para aturdir-se, vai afogar as suas
deres!
E olha, tu não és capaz de aumentar a tua esmola, sabendo que é ela um
bálsamo do pobre?! lnda que ele vá à taberna gastá-la para aturdir-se,
ainda que ela seja o único meio de apagar as mágoas, dissolver uma
grande dor, abafar um grande
mistério?!
JOAQUIM RODRIGUES DA SILVA |