Joaquim Soares de Sousa Baptista, Fontes de Arrancada, Vol. VII, pp. 217-221.

FONTES DE ARRANCADA

ARRANCADA, a donairosa povoação que por largos anos serviu de sede ao antiquíssimo concelho do Vouga, extinto por decreto de 31 de Dezembro de 1853, sem ter-lhe em conta a vetustez da existência, nem tampouco o valor da gente, a riqueza das terras de cultura e a extensão do revestimento por soutos, carvalhedos e pinhais; Arrancada, milenária aldeia de nome que lhe veio, parece, da audaciosa arremetida contra o mouro delapidador dos lares dos povos ribeirinhos do MarneI, rompida do esconderijo que representava a floresta opulenta onde ela, a velha povoação, nasceu e tomou vulto − com insuficiência de água potável lutou até à proximidade de nossos dias. E de um episódio referente e dos esforços de alguns de seus filhos para obtê-la vai dizer-nos a transcrição de dois documentos que o acaso nos trouxe às mãos.


UM REQUERIMENTO

«Ill.mos Sr.es  Diz Anto Pereira Simoens deste Lugar de Arrancada Conco de Vouga, no Sitio do Toural e ao Cimo deste mmo Lugar tem o supe huma mina d'agoa propria delle Supe, da qual o Povo Se tem Servido Cladestinamente Com grave prejuiso do Supe pr que lhe estragão as suas novidades pr não aver huma fonte publica que dê agoa todo o anno, e pr  que algumas pessoas tem pertendido q' o Sup.e dê ao Publico a mesma mina Com Servídão pela Estrada, o Sup.e não duvida fazel lo Com as condições d' elle tapar a viela q' vai pª a fonte chamada do Toural que So dá agoa no inverno, e q' confronta com o Sup.e, pello Nascente, Norte e Poente, e de todos Consentirem na mma troca assim requer o Supe q' VS.as madando Convocar o Povo pª dia, e hora Certa procedão a huma Vestoria, e ahi conforme o que acharem de conveniensia pª o Povo deliberem a mma troca, ou a deneguem qdo a não haja, ou apareça alguma pessoa a impugna la pr q' o Supe qr que Seja a aprazimto de todos Convpcando V Sas os do Conco Municipal p.ª assim deliberarem Se pª Sua validade deverem assistir, ou ser convocados            P.ª V Sas Snr.es Presidente e Vereadores desta Camara de Vouga Sejão Servidos assim lhe deferir E R Mce Anto Perª Sim.es»  / 218 /


DESPACHO

«Assinão o dia 13 do proximo 7br.º Sendo primeiro o Povo convocado pr pregões Arrdª em Camara de 19 de Agto de 1841 = Correa = Mello = Vidal = Castro = Vidal»

 

A VISTORIA

« Anno do Nascimto de Nosso Senhor Jezus Christo de 1841 aos 13 de 7br.º do dito anno neste Sitio dos Tourais Lemite d'Arrancada aonde veio o Presidente da Camara Municipal deste Conco de Vouga Antonio Rodrigues Correa, o Fiscal Jose Marques de Mello e o Vereador Jose Ferreira Vidal para proceder á Vestoria menSionada no Requerim.to retro tendo para esse fim Convocado o Povo por pregoens, e avizos, em presença do qual procederão elles Vereadores a referida Vestoria, e tanto pelas indagações oculares Como pelas informações que Colheram, observarão, que a fonte antiga, chamada do Povo Se achava Seca Sem agoa alguma por não Ser agoa nativa naquelle Sitio, mas Sim da que lhe menistrava o Rego, ou Corga do Toural que ordinariamte costuma Secar pelo S. João, e não torna a fertelizar Senão pelo Natal em Cujo tempo, e em todo o inverno recebe aquelle rego, ou Corga dos Tourais os inxurros, e immondices das estradas, e que Conduz á mma fonte, de maneira que nos 6 mezes que apenas aquella fonte tem agoa, he immunda, e So a necessidade obriga o Povo a fazer uzo della pa beber Que a mina que o Suppe Oferece Se acha abundante d'agoa nativa, e que em todo o anno assim Se conServa, e que achando se na borda da Estrada tem todas as proporSões de se fazer ali huma fonte que Sendo mto utíl ao Povo preste igual utilidade aos Viandantes, CircunstanSia esta que não pode verificar Se na antiga fonte, não Só por Se achar hum pouco desviada da Estrada, mas mto mais pela falta d'agoa, na estação ardente em que ella he mais necessaria, e apetecida, e porque Sendo tambem prezente o Suplicante Antonio Pereira Simoens, disse que Se obrigava a dar, e abrir á Sua Custa, Serventia, e Caminho desembaraçado p.ª a mina referida Com a condição de tapar a Servidão, e Caminho da fonte antiga na forma relata em Sua Petição: O Povo Cujas assinaturas abaixo Se Seguem declarou que Convinha na troca referida e proposta na petição do Sup.e pela grande utilidade que della lhe rezulta, e Só foi impugnada pr Anna Maria, Viuva do Dr. Manoel Antonio, Luiza Maria Solteira do Cimo da Rua, o Alferes Jose Francisco Tavares, Antonio Banqueiro e Bernardo Choco, em vista do que mandarão Lavrar este auto, e que Se convocasse o Concelho Municipal para deliberar a ulterior decizão, e assinarão / 219 / com o Sup.e, e Povo Consentidor. Antonio Jose Marques Secretario da Camara o escrevy Correa = Mello = Vidal = Antº Jose Marques = Antonio Pereira Simões = Antonio Roiz Pantalião = Antº Pinto da Pureza = João Simões = Jose Gomes da VaI = de Antonio dos Santos huma Cruz - de Manoel d'Almeida huma Cruz = de Antonio Branco huma Cruz = de Manoel d'Almeida Sobreiro huma Cruz = de Jose Franco Castanheira huma Cruz = de Antonio Henriques Alvitelho huma Cruz = de Roque Roiz huma Cruz = de Luiz Tavares huma Cruz = de Antonio Pinheiro Ilheo huma Cruz = de João Nogueira huma Cruz = de Manoel Ventura Coelho huma Cruz = de Joze Simões huma Cruz = de Jose dos Santos huma Cruz = de Miguel d'Almeida huma Cruz = de Thomaz Marques huma Cruz = de Manoel Tavares huma Cruz»

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Ante a impugnação das filhas e genro de Caetano de Almeida Luís, Bernardo Choco e António Banqueiro não pôde o requerente ser atendido. E mais 49 anos decorreram até que lograsse Arrancada a fortuna de possuir dois fontenários, pois foi por 1889 que Joaquim António de Vasconcelos, pouco antes chegado do Brasil, generosamente ofereceu à Câmara Municipal de Águeda a quantia de 300$000 reis, como auxílio, para que dotada de água potável fosse a mais populosa das aldeias do concelho. Oferta aceite, como se vê do ofício de que a seguir damos cópia.

«Ill.mo e Ex.mo Snr.

A camara municipal d'este concelho, à qual, na sessão ordinaria de 13 do corrente, foi presente um requerimento em nome de V. Ex.ª, offerecendo ao municipio, para a construção de uma fonte n'esse logar d'Arrancada, a quantia de 300$000 reis, de que já dispendeu na pesquisa d'aguas, a de 130$000 reis; e aprontando-se a entrar no cofre municipal com a restante quantia: deliberou definitivamente aceitar esta doação, e consignar na acta d'aquella sessão um voto de louvor a V. Ex.ª pela sua generosidade auxiliando a realisação d'um importante melhoramento na povoação q lhe foi berço.

Deus Guarde a V. Ex.ª

Ill.mo e Ex.mo Snr. Joaquim Antonio de Vasconcelos

             Águeda, 27 de fevereiro de 1889

O Presidente da camara
                               Albano de Mello»

/ 220 /

Certa ou em posse já do donativo em referência, resolveu a Câmara encarregar o prestimoso cidadão José Xavier Pereira Simões, filho do mencionado requerente Dr. António Pereira Simões, de proceder aos trabalhos que se fazia preciso realizar para aproveitamento da água da fonte do Castanheiro ou do Toural, a mesma que pretendeu vedar o aludido Dr. Simões, afim de alimentar dois fontenários na povoação: um Junto à morada do Sr. Xavier Pereira Simões, outro em face à do Sr. Vasconcelos.

Pertença eram as sobras da água em apreço, dos herdeiros do Dr. Simões e outros, que gratuitamente as cederam. Ora, para evitar a contaminação da ali aflorante pelas do córrego, houve necessidade de mudar o leito a este, em pequeno trecho, de modo a isolar aquela quanto possível. Infelizmente, a total exploração do manancial levou a profundidade que não mais permitia o encaminhamento da água respectiva para a povoação, a não ser com sacrifício de alguns prédios urbanos sob despesa incompatível com as disponibilidades havidas. Assim, nenhum outro recurso sendo encontrado − pois que a mina aberta no morro da Eira nada dera − foi a nascente abandonada e utilizada a água corrente no córrego, trazendo-a a pia filtrante com derivação para o encanamento.

A mais antiga fonte de Arrancada

Durante o Verão, todavia; nenhuma água desce naquele, da oriunda dos mananciais de seu curso médio, os mais fortes e persistentes, que toda ela é desviada para rega pelos proprietários ribeirinhos. De tal forma, no decorrer do Estio, os fontenários apenas são alimentados pela água brotada logo a montante da pia receptora, onde chamam as Grades, a qual desaparece integralmente no fluir dos meses de Agosto e Setembro, criando semelhante realidade / 221 / grande embaraço à população. Por outro lado, se abundante se mostra o precioso líquido na estação invernosa, não deixa ele de então vir inquinado, pois a estrutura filtrante da pia não se revela capaz de suficientemente o purificar.

A sobra do fontenário cimeiro foi concedida à família do Sr. Xavier Pereira Simões, não só como compensação pela desistência do seu direito ao excedente do consumo público na antiga fonte do Castanheiro, embora não fosse aproveitada a água desta, mas sobretudo em testemunho de gratidão pelo interesse com que se houve o mesmo Sr. na execução de tão meritório melhoramento.

Quanto ao sobejo do segundo, requereu-o o Sr. Vasconcelos, o qual lhe foi conferido pela Câmara, não chegando, porém, o mesmo Sr. a utilizá-lo. Adquiriu-o, há poucos anos em praça, o seu sobrinho Eduardo de Vasconcelos Soares.

Verificada a insuficiência e mesmo a falta completa de elemento tão indispensável à vida justamente quando seu gasto é maior, seja durante o Verão, e sua menor salubridade no escoar do Inverno, imperiosa se tornara a captação de novo caudal que viesse melhorar e completar o abastecimento de água à população. Bastante já se conseguiu ultimamente neste sentido, mas não ainda o satisfatório, que poderá, todavia, ser alcançado desde que a tal fim a boa vontade não seja alheia. A solução integral, contudo, só terá lugar com o aproveitamento das águas do MarneI, que possibilitaria o estabelecimento de rede de esgoto, sem a qual Arrancada jamais conquistará conforto bastante para seus filhos e a salubridade a que seu vulto populacional faz jus.

JOAQUIM SOARES DE SOUSA BAPTISTA

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