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− Continuação da pág. 209
FALANDO
ou escrevendo de pessoas e coisas de Aveiro,
mais ou menos antigas, com intuito de encadeá-las por ordem lógica ou cronológica, mal parecia que não se desse o devido lugar ao
edifício dos Paços do Concelho.
− Com efeito,
se não é esse − um edifício grandioso e imponente de arquitectura e arte arrebicada, é, todavia, uma obra de
certa marca e categoria, e assim se pode considerar: − Situado
na parte alta e central da cidade, dá logo na vista; domina sobre
o casaria e arredores; atrai as atenções logo, pelo seu vulto
regular e harmónico, e pelas funções que à sua beira se têm
desenrolado; o seu aspecto definido;. a sua torre senhorial; o dobre
simbólico; as badaladas do sino da ronda; os repiques hilariantes dos
dias festivos e de todas as situações políticas,
que induziram a crítica popular a dizer daqueles que não têm
fixidez de sentimentos e de opiniões: «são como os sinos da
Câmara, que tocam com todos os ventos e com todos os partidos...» Tudo isto é curioso e interessante, tudo desperta a
atenção, curiosidade aos menos avisados. Não desço a mais
minúcias e particularidades: deixo esse cargo ou encargo à
conta dos eruditos e especialistas; e fica naturalmente bem entregue e
confiado.
Desde rapazinho, pois, me anda impresso na mente, grosso
modo, −− o edifício dos Paços do Concelho.
Vejamos: Dantes designava-se só pelo nome de Cadeia, ou Cadeias, e já
então se aplicava a várias funções da vida social e
colectiva.
É uma construção quadrangular, maciça; de paredes sólidas, de quina a
quina, ou de cunhal a cunhal, sem anexos ou contrafortes enxertados;
quatro faces desafogadas, livres; janelas de vário teor e amplidão,
franqueadas à luz e ao ar; e o portão
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de entrada rasgado através dos encontros da torre de menagem, encimada pelo escudo nobiliárquico estilizado, dando para
a escadaria primeira, e dali para o interior da casa: − três
pavimentos; o 1.º, baixo, térreo, com prisões, e grades, enxovias,
portas e janelas defendidas por fortes gradeamentos de
ferro forjado, à prova de toda a suspeita e de toda a ganância
antiga; o 2.º andar, o médio, com as salas chamadas livres, compartimentos burocráticos, administração, fiscalização, guarda;
e a residência qualificada do carcereiro-mor, etc.; e o 3.º pavimento, o andar nobre, de altas janelas e sacadas, dando vista
ao longe e ao largo, para campos, salinas, ria, Gafanha, mar;
e daí às salas e gabinetes privativos do tribunal judicial; e da
Câmara Municipal, do povo e dos seus eleitos, com o seu mobiliário de
aparato, e de luxo, gabinetes, etc.; e defronte, a sala
do tribunal judicial, advogados, escrivães, e sub-dependências.
Dantes, toda a obra se designava severa e lugubremente
por Cadeia, ou Cadeias, sem sub-distinções ou categorias.
Longos tempos assim foi, e ali figuraram e passaram presidentes da
Câmara, e seus vereadores; magistrados, juízes,
escrivães, meirinhos e oficiais de diligências; todo o regimento
de vária ordem e categoria.
Considerando agora, hoje em dia, essa obra em globo e por partes e comparando-a com a que está na actualidade e
em movimento, não se pode deixar de notar a diferença: o balanço é
considerável para melhor; e de justiça e verdade se
há-de notar e anotar.
De justiça, também, e de verdade, é de notar que, agora
em vez da designação mais ou menos deprimente e obnóxia de
Cadeia, ou Cadeias, se tem de aplicar ao caso uma qualificação
superior, sub-apropriada e distinta, como já se lhe vai dando: Casa da Câmara,
Domus municipalis, Palácio da Justiça, etc.
BRITO CAMACHO, escritor e crítico de renome do seu tempo, disse, a
respeito do novo regímen, em contraposição ao antigo
e à sua insuficiência, e à proficiência do novo: − «Isto agora é
outra cousa».
Com efeito, isto agora é outra cousa; outra louça;
mutatis
mutandis, ou servatis servandis, para temperar a prosa com alguma dose
de sal ático, ou sal de outra composição. − Outra.
cousa, sem dúvida, em relação à forma, ao recheio e ao saber:
é preciso sermos do nosso tempo, e prestar a devota homenagem às luzes do progresso e às maravilhas da civilização hodierna: uma
cousa era a casa da Câmara, scilicet os Paços do
Concelho, Cadeia, grosso modo, de antes; e outra coisa é hoje:
o conjunto e o recheio da obra em referência: as mesmas paredes grossas, sim, ligadas, em esquadria; as
mesmas janelas,
em número, com novos detalhes de ornamentação, talvez mais de harmonia,
diz-se, com a planta primitiva da obra; − e em suma
a torre senhorial, que continua a campear, com a ponta esguia
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do pára-raios das modernas instalações: sim; mas, no interior,
a diferença é sensível, é grandiosa.
Não é meu intento, como já disse, descer a mais minúcias
e particularidades: basta dizer, ampliando a frase conceituosa e
histórica de BRITO CAMACHO, − que na realidade, isto agora é outra cousa:
felizmente. Se os Paços do Concelho dantes encerravam, em globo, destinos vários e mal definidos, mal enquadrados, hoje, com a transformação operada, parecem arremedar
um palácio das Mil e Uma Noites; lavados são como novos; − é
uma obra, que de sólida e simples, de paredes grossas, hoje está
embelezada, embonecada, modernizada.
A mudança, os melhoramentos têm sido operados sob a
inspiração, influência e requinte do Sr. Dr. Lourenço Peixinho, − que há mais de dezoito anos está à testa dos negócios municipais,
− e
bem haja; nós que o vejamos e vamos, aplaudindo; − não se tem perdido o tempo.
De passagem, porém, e mais ou menos a propósito, seja-me
permitido notar agora estes pormenores, mais ou menos pitorescos:
Em tempos idos, e agora ainda, chega à nossa memória, e
à dalguns contemporâneos: no ângulo noroeste dos Paços do Concelho tinha a sua instalação permanente, e honorífica,
o carcereiro-mor;
o sr. Carvalho e sua família.
O Sr. Carvalho era um homem baixo, grosso, atarracado;
barba crespa e russa, curta; homem delicado, bem falante,
amorável, apesar da gravidade e rigidez das suas funções
difíceis e nem sempre simpáticas. Tinha também uma filha
esbelta, já a estremar, que cantava muito e bem, a ouvir-se e
apreciar-se na rua; e à janela que dava para a entrada do Largo do
Caneiro − quantum mutatis ab illo! − e para a Rua de
Santa Catarina, ali figurou, durante muito tempo, do lado peitoril, uma
bonita e considerável gaiola artística, engenhosa, de
vimes descascados, branca e basta, de vários compartimentos
e alçapões. Era uma prisão, mas podia lembrar um palácio, o
palácio encantado, e lá dominava um melro de bico amarelo,
esperto e buliçoso, negro, vibrante e luzidio, talvez inspirador
dos versos de GUERRA JUNQUEIRO: − «O melro, eu conheci-o;
era negro, vibrante, luzidio...»,. versos que tiveram grande fama
e nomeada nesse tempo.
O melro acostumou-se tanto à sua prisão, que cantava, assobiava, livremente, ao desafio coma filha do carcereiro; e fazia
as delicias do rapazio e do público, que lhe falava alegremente e o ia
desafiando a assobiar e a cantar. Salvo o devido respeito, era uma das maravilhas da cidade; um dos seus melhores
atractivos. Nos domingos e dias de festa, sobretudo nos dias
de grande festa, de Santa Joana e da procissão de Corpus Christi, Corpo
de Deus Real, que tanta concorrência e animação dava à
cidade, com suas danças, descantes e correrias, − o melro do Sr.
Carvalho(1) empolgava grande parte do entusiasmo popular.
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Até se dizia que a famosa avezinha, apesar de encarcerada, mas de muita
nomeada, se tinha acostumado, na convivência familiar, a cantar o Prim
e a Maria Cachucha, cantigas muito em voga nesse tempo.
Da minha parte, mal posso dar testemunha da figura, cantadoria e mais
partes que tinha o melro do Sr. Carvalho carcereiro, e dos mimos que lhe
prestava a família e de que cantava à desgarrada; sim, é possível que
cantasse o Prim e a Maria Cachucha; com certo reforço de
imaginação e bom gosto, é possível; mas de tanto não posso dar testemunho.
Mas... abissus abissum invocat:
este episódio traz outros à
colecção: e se jam satis prata biberunt, dicant paduani... debruados de enfado ou tolerância dos leitores: e depois se verá.
P. RODRIGUES VIEIRA
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