P. Rodrigues Vieira, Farrapos de memória e história, Vol. IV, pp. 301-304.

FARRAPOS DE MEMÓRIA E HISTÓRIA

III

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FALANDO ou escrevendo de pessoas e coisas de Aveiro, mais ou menos antigas, com intuito de encadeá-las por ordem lógica ou cronológica, mal parecia que não se desse o devido lugar ao edifício dos Paços do Concelho. − Com efeito, se não é esse − um edifício grandioso e imponente de arquitectura e arte arrebicada, é, todavia, uma obra de certa marca e categoria, e assim se pode considerar: − Situado na parte alta e central da cidade, dá logo na vista; domina sobre o casaria e arredores; atrai as atenções logo, pelo seu vulto regular e harmónico, e pelas funções que à sua beira se têm desenrolado; o seu aspecto definido;. a sua torre senhorial; o dobre simbólico; as badaladas do sino da ronda; os repiques hilariantes dos dias festivos e de todas as situações políticas, que induziram a crítica popular a dizer daqueles que não têm fixidez de sentimentos e de opiniões: «são como os sinos da Câmara, que tocam com todos os ventos e com todos os partidos...» Tudo isto é curioso e interessante, tudo desperta a atenção, curiosidade aos menos avisados. Não desço a mais minúcias e particularidades: deixo esse cargo ou encargo à conta dos eruditos e especialistas; e fica naturalmente bem entregue e confiado.

Desde rapazinho, pois, me anda impresso na mente, grosso modo, −− o edifício dos Paços do Concelho.

Vejamos: Dantes designava-se só pelo nome de Cadeia, ou Cadeias, e já então se aplicava a várias funções da vida social e colectiva.

É uma construção quadrangular, maciça; de paredes sólidas, de quina a quina, ou de cunhal a cunhal, sem anexos ou contrafortes enxertados; quatro faces desafogadas, livres; janelas de vário teor e amplidão, franqueadas à luz e ao ar; e o portão / 302 / de entrada rasgado através dos encontros da torre de menagem, encimada pelo escudo nobiliárquico estilizado, dando para a escadaria primeira, e dali para o interior da casa: − três pavimentos; o 1.º, baixo, térreo, com prisões, e grades, enxovias, portas e janelas defendidas por fortes gradeamentos de ferro forjado, à prova de toda a suspeita e de toda a ganância antiga; o 2.º andar, o médio, com as salas chamadas livres, compartimentos burocráticos, administração, fiscalização, guarda; e a residência qualificada do carcereiro-mor, etc.; e o 3.º pavimento, o andar nobre, de altas janelas e sacadas, dando vista ao longe e ao largo, para campos, salinas, ria, Gafanha, mar;  e daí às salas e gabinetes privativos do tribunal judicial; e da Câmara Municipal, do povo e dos seus eleitos, com o seu mobiliário de aparato, e de luxo, gabinetes, etc.; e defronte, a sala do tribunal judicial, advogados, escrivães, e sub-dependências.

Dantes, toda a obra se designava severa e lugubremente por Cadeia, ou Cadeias, sem sub-distinções ou categorias.

Longos tempos assim foi, e ali figuraram e passaram presidentes da Câmara, e seus vereadores; magistrados, juízes, escrivães, meirinhos e oficiais de diligências; todo o regimento de vária ordem e categoria.

Considerando agora, hoje em dia, essa obra em globo e por partes e comparando-a com a que está na actualidade e em movimento, não se pode deixar de notar a diferença: o balanço é considerável para melhor; e de justiça e verdade se há-de notar e anotar.

De justiça, também, e de verdade, é de notar que, agora em vez da designação mais ou menos deprimente e obnóxia de Cadeia, ou Cadeias, se tem de aplicar ao caso uma qualificação superior, sub-apropriada e distinta, como já se lhe vai dando:  Casa da Câmara, Domus municipalis, Palácio da Justiça, etc.

BRITO CAMACHO, escritor e crítico de renome do seu tempo, disse, a respeito do novo regímen, em contraposição ao antigo e à sua insuficiência, e à proficiência do novo: − «Isto agora é outra cousa».

Com efeito, isto agora é outra cousa; outra louça; mutatis mutandis, ou servatis servandis, para temperar a prosa com alguma dose de sal ático, ou sal de outra composição. − Outra. cousa, sem dúvida, em relação à forma, ao recheio e ao saber: é preciso sermos do nosso tempo, e prestar a devota homenagem às luzes do progresso e às maravilhas da civilização hodierna: uma cousa era a casa da Câmara, scilicet os Paços do Concelho, Cadeia, grosso modo, de antes; e outra coisa é hoje: o conjunto e o recheio da obra em referência: as mesmas paredes grossas, sim, ligadas, em esquadria; as mesmas janelas, em número, com novos detalhes de ornamentação, talvez mais de harmonia, diz-se, com a planta primitiva da obra; − e em suma a torre senhorial, que continua a campear, com a ponta esguia / 303 / do pára-raios das modernas instalações: sim; mas, no interior, a diferença é sensível, é grandiosa.

Não é meu intento, como já disse, descer a mais minúcias e particularidades: basta dizer, ampliando a frase conceituosa e histórica de BRITO CAMACHO, − que na realidade, isto agora é outra cousa: felizmente. Se os Paços do Concelho dantes encerravam, em globo, destinos vários e mal definidos, mal enquadrados, hoje, com a transformação operada, parecem arremedar um palácio das Mil e Uma Noites; lavados são como novos; − é uma obra, que de sólida e simples, de paredes grossas, hoje está embelezada, embonecada, modernizada.

A mudança, os melhoramentos têm sido operados sob a inspiração, influência e requinte do Sr. Dr. Lourenço Peixinho, − que há mais de dezoito anos está à testa dos negócios municipais, − e bem haja; nós que o vejamos e vamos, aplaudindo; − não se tem perdido o tempo.

De passagem, porém, e mais ou menos a propósito, seja-me permitido notar agora estes pormenores, mais ou menos pitorescos:

Em tempos idos, e agora ainda, chega à nossa memória, e à dalguns contemporâneos: no ângulo noroeste dos Paços do Concelho tinha a sua instalação permanente, e honorífica, o carcereiro-mor; o sr. Carvalho e sua família.

O Sr. Carvalho era um homem baixo, grosso, atarracado; barba crespa e russa, curta; homem delicado, bem falante, amorável, apesar da gravidade e rigidez das suas funções difíceis e nem sempre simpáticas. Tinha também uma filha esbelta, já a estremar, que cantava muito e bem, a ouvir-se e apreciar-se na rua; e à janela que dava para a entrada do Largo do Caneiro − quantum mutatis ab illo! − e para a Rua de Santa Catarina, ali figurou, durante muito tempo, do lado peitoril, uma bonita e considerável gaiola artística, engenhosa, de vimes descascados, branca e basta, de vários compartimentos e alçapões. Era uma prisão, mas podia lembrar um palácio, o palácio encantado, e lá dominava um melro de bico amarelo, esperto e buliçoso, negro, vibrante e luzidio, talvez inspirador dos versos de GUERRA JUNQUEIRO: − «O melro, eu conheci-o; era negro, vibrante, luzidio...»,. versos que tiveram grande fama e nomeada nesse tempo.

O melro acostumou-se tanto à sua prisão, que cantava, assobiava, livremente, ao desafio coma filha do carcereiro; e fazia as delicias do rapazio e do público, que lhe falava alegremente e o ia desafiando a assobiar e a cantar. Salvo o devido respeito, era uma das maravilhas da cidade; um dos seus melhores atractivos. Nos domingos e dias de festa, sobretudo nos dias de grande festa, de Santa Joana e da procissão de Corpus Christi, Corpo de Deus Real, que tanta concorrência e animação dava à cidade, com suas danças, descantes e correrias, − o melro do Sr. Carvalho(1) empolgava grande parte do entusiasmo popular. / 304 /

Até se dizia que a famosa avezinha, apesar de encarcerada, mas de muita nomeada, se tinha acostumado, na convivência familiar, a cantar o Prim e a Maria Cachucha, cantigas muito em voga nesse tempo.

Da minha parte, mal posso dar testemunha da figura, cantadoria e mais partes que tinha o melro do Sr. Carvalho carcereiro, e dos mimos que lhe prestava a família e de que cantava à desgarrada; sim, é possível que cantasse o Prim e a Maria Cachucha; com certo reforço de imaginação e bom gosto, é possível; mas de tanto não posso dar testemunho.

Mas... abissus abissum invocat: este episódio traz outros à colecção: e se jam satis prata biberunt, dicant paduani... debruados de enfado ou tolerância dos leitores: e depois se verá.

P. RODRIGUES VIEIRA

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(1) − O carcereiro chamava-se António José de Carvalho, e o melro cantava as primeiras notas de um coro da ópera Favorita, de Donizetti. Não cantava o Prim, nem a Maria Cachucha. [Nota de JOSÉ FERREIRA DE SOUSA]

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