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Continuação da pág. 131
PASSEI
há dias à Rua da Sé de Aveiro... Assim a chama o povo, em geral; eu nunca a conheci por outro nome.
Rua da Sé!... Que irrisão! Que mudanças, que contradições!
Sic transit gloria mundi.
Eu não sou já do tempo em que ali funcionava a Sé Episcopal,
com Bispo, Cabido e mais dignidades congruentes: −
sou só do tempo em que, dentro do edifício, do lado do Evangelho, se via lá suspenso, dum simples tarugo, na parede lisa e
nua, um chapéu de aba rasa; simbólico em disponibilidade,
acima do estrado do dignitário; chapéu velho, desbotado, sem
uso próprio. − Há muito morrera o último Bispo, e nunca mais
outro efectivo lhe sucedera. Tinha-se malogrado a eleição e
confirmação do novo Prelado: os negócios eclesiásticos tinham
passado a correr à conta do Vigário Geral e Governador da
Diocese, Sede Vacante − e assim continuavam.
(1)
Sou do tempo em que funcionava nos anexos e dependências do edifício o curso de Ciências Eclesiásticas dos ordenandos
e aspirantes ao sacerdócio; em que, além das festividades maiores, Corpus Christi, Semana Santa, Te-Deum, do Ano Bom e da
Páscoa, aos domingos e dias santificados, no templo, havia
missa cantada, acompanhada a vozes e a órgão (a prata da
casa) sendo organista o velho Abreu, professor oficial de instrução primária, aposentado, e com a assistência dos seminaristas, nas
cadeiras da capela-mor, e demais fiéis no corpo devoluto da Igreja: −
capelão privativo e mestre de cerimónias, o P.e Domingos Lopes Afonso e Cunha, da Murtosa, professor
avulso, ad hoc, de latim e latinidade, grosso modo, residente na rua do
Vento, e hóspede, com outros académicos, dumas velhas
e respeitáveis senhoras já muito quarentonas, de nome Gamelas.
Sou desses tempos, que, bem esquadrinhados, podem ainda
dar ensanchas para algumas páginas do Arquivo do Distrito de
Aveiro, mais profundas e eruditas; a que talvez me reporte.
/ 210 /
Lembro-me...
Sacristão do culto e guarda dos paramentos e alfaias era o
João Marques − João da Sé lhe chamavam, do ofício; contínuo ou bedel,
era o vermelhusco António Paiva, vulgo o Chan-che-ran-chan; aguerrido às
funções do cargo e a outras aderentes, segundo o costume dos antigos e
dedicados sacristães − escorropicha galhetas e frisos − do ramo de
louro, pessoa de confiança, todavia, dos superiores, e dos apaniguados,
e do célebre João Duque, João Ferreira da Encarnação, algibebe, crónico, alfaiate de batinas e sub-indumentária eclesiástica, morador num
cardanho ao dobrar da Rua de Santa Catarina: Miguelista ferrenho e
incorruptível, e jogador da sueca.
Bonito isto vai! Ainda haverá algum velho, alguma relíquia desses
remotos tempos? Algum simples padre ou prior, aposentados, ou de todo
inválidos? Talvez algum exista lá por longínquas terras, escabrosas, de
penedias! Se existir algum, e se, sentir beliscado, que aceite os meus
cumprimentos, e que se acuse para as devidas rectificações: − aparent rari nantes in gurgite
vasto...
Lembro-me de se citarem, por
esses tempos, ou de se conhecerem por Vigários Gerais, os senhores:
− O Dr. Damásio Jacinto Fragoso, antigo aluno distinto da Casa Pia, de
Évora; depois, laureado académico da Faculdade de Teologia da
Universidade de Coimbra; lente da mesma
Faculdade; professor insigne de História e Hermenêutica. − Dele e doutros
darei algumas notas, se tiver tempo e fôlego para o fazer.
− Lembro-me também de ser Vigário Geral e governador
da Diocese, o Dr. Manuel Augusto de Sousa Pires de Lima,
Cónego da Sé de Évora, político de alto coturno, orador parlamentar de
vulto, par do reino, indigitado para ministro dos negócios eclesiásticos
e da justiça − que era alto, esgrouviado, majestoso e distinto, e viveu
na casa do Chorinca da Rua de José Estêvão − com quem teve um episódio
grave, sobre registo paroquial, o Rev.º prior de Oiã, o padre Joaquim
Duarte Rosa, natural de Fermentelos, colaborador da Revista das C.as
Eclesiásticas, do Cónego Sousa Monteiro, que foi depois Bispo de Beja.
Este Dr. Pires de Lima, coitado! teve morte trágica no cemitério de S.
João, em Lisboa.
Do Dr. Pires de Lima, Vigário Geral efectivo era então substituto o
professor Dr. Manuel Batista da Cunha, formado em Direito e em Teologia,
examinador pro-sinodal, grave, sábio, bondoso, muito versado em direito
paroquial e administrativo, justamente considerado e estimado como o foi
sempre em toda a sua vida: depois, Vigário Geral efectivo; arcebispo de
Mitilene, em Lisboa, e por fim Arcebispo metropolitano
em Braga.
A Diocese de Aveiro ,aproximava-se do seu termo final. Já
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então se indicava a data próxima da sua extinção; e se indigitava a partilha que depois se fez dos seus despojos territoriais,
rendimentos e regalias, para as dioceses do Porto e de Coimbra.
Aos seus últimos arrancos de vida autónoma assistiu o último
Vigário Geral, o Dr. Mendes Belo, bacharel formado em Teologia
e Direito, cónego da Sé do Funchal, governador de Pinhel, que
foi em breve nomeado Arcebispo de Mitilene, como já se disse
em breves linhas anteriores nesta revista.
...Perdão! Não era meu propósito, nesta ocasião, descer
a estas minuciosidades de pessoas e de factos; mas sim a
outras. Ia dizendo: passei na Rua da Sé... O que lá vai! o que
está! E o que será amanhã...
A Sé, o edifício a que se chamou então a Sé, não era de
modo algum uma construção arquitectónica riscada e destinada
às funções de catedral da Diocese: a Sé, ao que me consta,
fora primeiramente estabelecida na igreja da Misericórdia, convizinha do Hospital Velho e chamou-se Sé Velha, e em que
depois se fez obra importante; mais tarde, por motivos supervenientes é que se escolheu e designou por Sé a igreja do
Recolhimento e das Beatas, e convento de S. Bernardino; chamando-se a esta, Sé Nova,
− em contraposição à outra Sé, a
Sé Velha.
Na verdade, a Sé Nova, a Nova Sé, não tinha categoria
material construtora, de catedral, nem de tradição, nem de arte: − era apenas, e ainda é, um casarão, avulso, a que depois
deram certo relevo as necessidades e adaptações, − as cerimónias do culto, e as funções dos Prelados e aderentes.
Quem, hoje ainda, olhar para essa construção vulgar, cenobítica, facilmente se convencerá deste asserto: quatro paredes de
longo comprimento; a abóbada lisa, sem florões; duas colunas
de madeira, fortes, e lisas, ao lado do altar mor, formavam o Camarim
destinado à exposição do Santíssimo em dias de festa:
ao fundo do templo ligava-se o coro, estreito e esguio, onde se
alojava o órgão vulgar − frequente noutros tempos − de comunicação com outras dependências. Uma porta para a rua, sem
elegância, ou simetria, esteve por vezes 'arruinada, e obrigou
a uns consertos forçados, na cantaria, e verga superior. Todavia, o tecto era de abóbada de tijolo, e parece que bem formado,
pois que ainda subsiste sem sinal de ruína.
O Templo não ficou logo fechado ao culto; ermo; deserto:
algumas devoções ali se mantiveram; e deve lembrar-se quem
promoveu e contribuiu eficazmente para que ali se estabelecesse
a Confraria do S. C. de Jesus, cujas festas, e devoções de piedade,
chegaram a ter certa imponência e celebridade, mas que acabou
com a morte e a doença dos seus muito dedicados servidores:
a Sr.ª D. Amélia Rebocho Freire de Andrade e Albuquerque,
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da importante família dos Viscondes de Santo António, foi a alma desse
movimento religioso e dos demais devotos do culto.
Do espólio devia restar uma rica banqueta dourada do
altar-mor, que o Vigário Geral, Dr. Manuel Batista da Cunha, mandou
restaurar e que causava admiração e maravilha; alguns
paramentos de brocado de ouro; um belo tapete que foi oferta
duma senhora distinta e piedosa; algumas cortinas ou damascos, e sanefas
do arco cruzeiro e dos altares: − e uma farta colcha de cetim amarelo,
que desdobrada do coro abaixo, metia vista e realce.
Aonde pára tudo isso? Ainda que não muito fosse, agora, com a
restauração da Diocese, − de direito é que volte ao antigo poiso e uso
tradicional.
Res ubicumque est suo domino clamat.
Depois...
Depois, mutatis, mutantis, pode dizer-se: cerra-se a nebrosa
noite da Idade...
A Sé, o edifício da Sé, a igreja que veio a chamar-se Sé, e a servir de
catedral, com Bispos, embora tendo lá − do lado do
Evangelho, no transepto da capela mar, para o corpo da igreja, − tendo lá o depósito dos restos mortais do derradeiro Bispo, caiu no
abandono; passou a ser apenas depósito, por conta da
Câmara, de madeiras velhas, mutiladas, barrotes, tarugos e
outros restos de maior quantia...
Nesse estado, nesse deplorável estado aí está agora,
− com a categoria
de se ter convertido em prisões do Estado, enxovia,
segredo, oficinas, casas de malta, etc.
Esse estado brada ao céu! − implica com as recordações e sentimentos
doutros tempos, e com a das lembranças de quem por lá passou talvez os
melhores da sua vida.
Mas isto vai longo demais. E afinal fica ainda de reserva
o que intentava escrever em continuação da Sé, da Rua da Sé, das ruínas
da casa, e da sua ligação histórica, com o Palácio da
Baronesa de Almeidinha, do Visconde de Almeidinha, do largo
do Terreiro e... outras memórias.
Continuaremos, pois.
P.e M.
RODRIGUES VIEIRA
Continua na pág. 301 −
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(1) -
O chapéu do Bispo estava dependurado na pilastra correspondente ao
cruzeiro, do lado do Evangelho; e, no local próprio, do mesmo lado,
estava a cadeira episcopal, com o dossel, roxo, caído, a indicar sede
vacante. Aos domingos e dias santificados, havia missa cantada, a
cantochão, acompanhada a órgão pelo organista da Sé, António Correia de
Abreu. A missa era cantada pelo capelão-tesoureiro P.e Domingos Tavares
Afonso e Cunha, hóspede das Senhoras Regalas, na Rua do Vento. Assistiam
todos os seminaristas, acolitando e cantando no coro. Assistiam também o
professor de liturgia, mestre de cerimónias, e o professor de cantochão.
O último professor de liturgia foi o P.e Manuel Joaquim Soares, e o
último de cantochão o P.e Manuel Ferreira Pinto de Sousa. O último
sacristão da Sé chamava-se João Maria da Silva (o João da Sé), e o
contínuo das aulas António Joaquim da Silva Pádua, conhecido pelo
António Sacristão, assim denominado por ter sido sacristão, o último, da
igreja de S. Miguel e depois da freguesia da Glória e convento de Jesus,
e guarda do cemitério. − A Sé foi primitivamente estabelecida na igreja
da Misericórdia. Nunca se chamou Sé Velha, porque não havia outra mais
moderna; e, quando a houve, a igreja continuou a chamar-se Misericórdia.
A Sé foi transferida para o recolhimento de S. Bernardino no tempo do
terceiro Bispo. Era igreja sem ornatos ou obras de merecimento; mas
tinha uma tribuna na capela-mor, muito elegante e bem lançada, que se vê
hoje, muito mutilada, na igreja da Senhora da Encarnação, na Gafanha.
Tinha dois altares laterais, feitos no tempo do terceiro Bispo. A
igreja, extinto o bispado, ficou entregue à Associação do S. Coração de
Jesus, que ali continuou a exercer o culto, até que o Sr. Dr. André dos
Reis, como presidente da Comissão cultual (creio que assim se chamava) a
mandou fechar. Os altares foram: um para a capela de S. Tiago, onde,
para adaptação, foi mutilado; o outro deve estar guardado no Hospital da
Misericórdia. A colcha amarela está no Museu, e o restante foi para o
Museu, Misericórdia e outras igrejas.
[Nota
da autoria de JOSÉ FERREIRA DE SOUSA] |