Padre . Rodrigues Vieira, Farrapos de memória e de história, Vol. IV, pp. 209-212.

FARRAPOS DE MEMÓRIA E DE HISTÓRIA

II

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PASSEI há dias à Rua da Sé de Aveiro... Assim a chama o povo, em geral; eu nunca a conheci por outro nome.

Rua da Sé!... Que irrisão! Que mudanças, que contradições! Sic transit gloria mundi.

Eu não sou já do tempo em que ali funcionava a Sé Episcopal, com Bispo, Cabido e mais dignidades congruentes: − sou só do tempo em que, dentro do edifício, do lado do Evangelho, se via lá suspenso, dum simples tarugo, na parede lisa e nua, um chapéu de aba rasa; simbólico em disponibilidade, acima do estrado do dignitário; chapéu velho, desbotado, sem uso próprio. − Há muito morrera o último Bispo, e nunca mais outro efectivo lhe sucedera. Tinha-se malogrado a eleição e confirmação do novo Prelado: os negócios eclesiásticos tinham passado a correr à conta do Vigário Geral e Governador da Diocese, Sede Vacante − e assim continuavam. (1)

Sou do tempo em que funcionava nos anexos e dependências do edifício o curso de Ciências Eclesiásticas dos ordenandos e aspirantes ao sacerdócio; em que, além das festividades maiores, Corpus Christi, Semana Santa, Te-Deum, do Ano Bom e da Páscoa, aos domingos e dias santificados, no templo, havia missa cantada, acompanhada a vozes e a órgão (a prata da casa) sendo organista o velho Abreu, professor oficial de instrução primária, aposentado, e com a assistência dos seminaristas, nas cadeiras da capela-mor, e demais fiéis no corpo devoluto da Igreja: − capelão privativo e mestre de cerimónias, o P.e Domingos Lopes Afonso e Cunha, da Murtosa, professor avulso, ad hoc, de latim e latinidade, grosso modo, residente na rua do Vento, e hóspede, com outros académicos, dumas velhas e respeitáveis senhoras já muito quarentonas, de nome Gamelas.

Sou desses tempos, que, bem esquadrinhados, podem ainda dar ensanchas para algumas páginas do Arquivo do Distrito de Aveiro, mais profundas e eruditas; a que talvez me reporte. / 210 /

Lembro-me...

Sacristão do culto e guarda dos paramentos e alfaias era o João Marques − João da Sé lhe chamavam, do ofício; contínuo ou bedel, era o vermelhusco António Paiva, vulgo o Chan-che-ran-chan; aguerrido às funções do cargo e a outras aderentes, segundo o costume dos antigos e dedicados sacristães − escorropicha galhetas e frisos − do ramo de louro, pessoa de confiança, todavia, dos superiores, e dos apaniguados, e do célebre João Duque, João Ferreira da Encarnação, algibebe, crónico, alfaiate de batinas e sub-indumentária eclesiástica, morador num cardanho ao dobrar da Rua de Santa Catarina: Miguelista ferrenho e incorruptível, e jogador da sueca.

Bonito isto vai! Ainda haverá algum velho, alguma relíquia desses remotos tempos? Algum simples padre ou prior, aposentados, ou de todo inválidos? Talvez algum exista lá por longínquas terras, escabrosas, de penedias! Se existir algum, e se, sentir beliscado, que aceite os meus cumprimentos, e que se acuse para as devidas rectificações: − aparent rari nantes in gurgite vasto...

Lembro-me de se citarem, por esses tempos, ou de se conhecerem por Vigários Gerais, os senhores:

− O Dr. Damásio Jacinto Fragoso, antigo aluno distinto da Casa Pia, de Évora; depois, laureado académico da Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra; lente da mesma Faculdade; professor insigne de História e Hermenêutica. − Dele e doutros darei algumas notas, se tiver tempo e fôlego para o fazer.

− Lembro-me também de ser Vigário Geral e governador da Diocese, o Dr. Manuel Augusto de Sousa Pires de Lima, Cónego da Sé de Évora, político de alto coturno, orador parlamentar de vulto, par do reino, indigitado para ministro dos negócios eclesiásticos e da justiça − que era alto, esgrouviado, majestoso e distinto, e viveu na casa do Chorinca da Rua de José Estêvão − com quem teve um episódio grave, sobre registo paroquial, o Rev.º prior de Oiã, o padre Joaquim Duarte Rosa, natural de Fermentelos, colaborador da Revista das C.as Eclesiásticas, do Cónego Sousa Monteiro, que foi depois Bispo de Beja.

Este Dr. Pires de Lima, coitado! teve morte trágica no cemitério de S. João, em Lisboa.

Do Dr. Pires de Lima, Vigário Geral efectivo era então substituto o professor Dr. Manuel Batista da Cunha, formado em Direito e em Teologia, examinador pro-sinodal, grave, sábio, bondoso, muito versado em direito paroquial e administrativo, justamente considerado e estimado como o foi sempre em toda a sua vida: depois, Vigário Geral efectivo; arcebispo de Mitilene, em Lisboa, e por fim Arcebispo metropolitano em Braga.

A Diocese de Aveiro ,aproximava-se do seu termo final. Já / 211 / então se indicava a data próxima da sua extinção; e se indigitava a partilha que depois se fez dos seus despojos territoriais, rendimentos e regalias, para as dioceses do Porto e de Coimbra. Aos seus últimos arrancos de vida autónoma assistiu o último Vigário Geral, o Dr. Mendes Belo, bacharel formado em Teologia e Direito, cónego da Sé do Funchal, governador de Pinhel, que foi em breve nomeado Arcebispo de Mitilene, como já se disse em breves linhas anteriores nesta revista.

 

...Perdão! Não era meu propósito, nesta ocasião, descer a estas minuciosidades de pessoas e de factos; mas sim a outras. Ia dizendo: passei na Rua da Sé... O que lá vai! o que está! E o que será amanhã...

A Sé, o edifício a que se chamou então a Sé, não era de modo algum uma construção arquitectónica riscada e destinada às funções de catedral da Diocese: a Sé, ao que me consta, fora primeiramente estabelecida na igreja da Misericórdia, convizinha do Hospital Velho e chamou-se Sé Velha, e em que depois se fez obra importante; mais tarde, por motivos supervenientes é que se escolheu e designou por Sé a igreja do Recolhimento e das Beatas, e convento de S. Bernardino; chamando-se a esta, Sé Nova, − em contraposição à outra Sé, a Sé Velha.

Na verdade, a Sé Nova, a Nova Sé, não tinha categoria material construtora, de catedral, nem de tradição, nem de arte: − era apenas, e ainda é, um casarão, avulso, a que depois deram certo relevo as necessidades e adaptações, − as cerimónias do culto, e as funções dos Prelados e aderentes.

Quem, hoje ainda, olhar para essa construção vulgar, cenobítica, facilmente se convencerá deste asserto: quatro paredes de longo comprimento; a abóbada lisa, sem florões; duas colunas de madeira, fortes, e lisas, ao lado do altar mor, formavam o Camarim destinado à exposição do Santíssimo em dias de festa: ao fundo do templo ligava-se o coro, estreito e esguio, onde se alojava o órgão vulgar − frequente noutros tempos − de comunicação com outras dependências. Uma porta para a rua, sem elegância, ou simetria, esteve por vezes 'arruinada, e obrigou a uns consertos forçados, na cantaria, e verga superior. Todavia, o tecto era de abóbada de tijolo, e parece que bem formado, pois que ainda subsiste sem sinal de ruína.


O Templo não ficou logo fechado ao culto; ermo; deserto: algumas devoções ali se mantiveram; e deve lembrar-se quem promoveu e contribuiu eficazmente para que ali se estabelecesse a Confraria do S. C. de Jesus, cujas festas, e devoções de piedade, chegaram a ter certa imponência e celebridade, mas que acabou com a morte e a doença dos seus muito dedicados servidores: a Sr.ª D. Amélia Rebocho Freire de Andrade e Albuquerque,
/ 212 / da importante família dos Viscondes de Santo António, foi a alma desse movimento religioso e dos demais devotos do culto.

Do espólio devia restar uma rica banqueta dourada do altar-mor, que o Vigário Geral, Dr. Manuel Batista da Cunha, mandou restaurar e que causava admiração e maravilha; alguns paramentos de brocado de ouro; um belo tapete que foi oferta duma senhora distinta e piedosa; algumas cortinas ou damascos, e sanefas do arco cruzeiro e dos altares: − e uma farta colcha de cetim amarelo, que desdobrada do coro abaixo, metia vista e realce.

Aonde pára tudo isso? Ainda que não muito fosse, agora, com a restauração da Diocese, − de direito é que volte ao antigo poiso e uso tradicional.

Res ubicumque est suo domino clamat.

Depois...

Depois, mutatis, mutantis, pode dizer-se: cerra-se a nebrosa noite da Idade...

A Sé, o edifício da Sé, a igreja que veio a chamar-se Sé, e a servir de catedral, com Bispos, embora tendo lá − do lado do Evangelho, no transepto da capela mar, para o corpo da igreja, − tendo lá o depósito dos restos mortais do derradeiro Bispo, caiu no abandono; passou a ser apenas depósito, por conta da Câmara, de madeiras velhas, mutiladas, barrotes, tarugos e outros restos de maior quantia...

Nesse estado, nesse deplorável estado aí está agora, − com a categoria de se ter convertido em prisões do Estado, enxovia, segredo, oficinas, casas de malta, etc.

Esse estado brada ao céu! − implica com as recordações e sentimentos doutros tempos, e com a das lembranças de quem por lá passou talvez os melhores da sua vida.

Mas isto vai longo demais. E afinal fica ainda de reserva o que intentava escrever em continuação da Sé, da Rua da Sé, das ruínas da casa, e da sua ligação histórica, com o Palácio da Baronesa de Almeidinha, do Visconde de Almeidinha, do largo do Terreiro e... outras memórias.

Continuaremos, pois.

P.e M. RODRIGUES VIEIRA

Continua na pág. 301 − ►►►

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(1) - O chapéu do Bispo estava dependurado na pilastra correspondente ao cruzeiro, do lado do Evangelho; e, no local próprio, do mesmo lado, estava a cadeira episcopal, com o dossel, roxo, caído, a indicar sede vacante. Aos domingos e dias santificados, havia missa cantada, a cantochão, acompanhada a órgão pelo organista da Sé, António Correia de Abreu. A missa era cantada pelo capelão-tesoureiro P.e Domingos Tavares Afonso e Cunha, hóspede das Senhoras Regalas, na Rua do Vento. Assistiam todos os seminaristas, acolitando e cantando no coro. Assistiam também o professor de liturgia, mestre de cerimónias, e o professor de cantochão. O último professor de liturgia foi o P.e Manuel Joaquim Soares, e o último de cantochão o P.e Manuel Ferreira Pinto de Sousa. O último sacristão da Sé chamava-se João Maria da Silva (o João da Sé), e o contínuo das aulas António Joaquim da Silva Pádua, conhecido pelo António Sacristão, assim denominado por ter sido sacristão, o último, da igreja de S. Miguel e depois da freguesia da Glória e convento de Jesus, e guarda do cemitério. − A Sé foi primitivamente estabelecida na igreja da Misericórdia. Nunca se chamou Sé Velha, porque não havia outra mais moderna; e, quando a houve, a igreja continuou a chamar-se Misericórdia.

 

A Sé foi transferida para o recolhimento de S. Bernardino no tempo do terceiro Bispo. Era igreja sem ornatos ou obras de merecimento; mas tinha uma tribuna na capela-mor, muito elegante e bem lançada, que se vê hoje, muito mutilada, na igreja da Senhora da Encarnação, na Gafanha. Tinha dois altares laterais, feitos no tempo do terceiro Bispo. A igreja, extinto o bispado, ficou entregue à Associação do S. Coração de Jesus, que ali continuou a exercer o culto, até que o Sr. Dr. André dos Reis, como presidente da Comissão cultual (creio que assim se chamava) a mandou fechar. Os altares foram: um para a capela de S. Tiago, onde, para adaptação, foi mutilado; o outro deve estar guardado no Hospital da Misericórdia. A colcha amarela está no Museu, e o restante foi para o Museu, Misericórdia e outras igrejas. [Nota da autoria de JOSÉ FERREIRA DE SOUSA]

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