MUITAS cousas que parecem de
todo humildes, obscuras, insignificantes, podem, todavia, ter
importância apreciável na vida: − a vida das grandes cidades, a vida dos
povos, a vida famosa dos homens ilustres,
tudo pode ter começado, começa quase sempre por obscuros e humildes
lineamentos. Si vis esse magnus, a minimo incipe...
Nas notas já descritas ou esboçadas, apenas,
sobre a Granja da
Oliveirinha, e sobre esta localidade, fez-se breve referência ao
santuário do lugar, à capela e orago de Nossa Senhora da Guia. − É um templozinho pequeno, modesto, mas alegre, iluminado todo de sol; e bem
posto no sítio. Conheci-o, eu, muito mais acanhado, e despretensioso. −
Vi-o, depois, reconstruído, e alargado; e mais recentemente muito
melhorado: mais ancho, mais gracioso, mais conforme às novas aspirações
e recursos da população, que tem também progredido e melhorado
consideravelmente.
Qual seria, qual foi a origem e começo dessa capelinha, desse marco
miliário da religião e da sociabilidade?
Tenho feito esta pergunta, várias vezes, a mim mesmo; e, assim, por
vezes, interroguei pessoas antigas do lugar, do meu conhecimento, e
amizade de família, já falecidas; ouvindo os seus contos; os seus juízos e tradições locais; revivendo a memória e a imaginação, que são
elementos populares psicológicos de toda a gente, e de todos os tempos,
de todos os recantos do mundo.
Coligindo, pois, e recolhendo migalhas da tradição, e lembranças de
palavras ouvidas aos velhos do lugar, com os quais
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ainda tratei nos meus anos juvenis, e depois na mocidade; o tio
Joaquim Pereira, que foi serviçal do P.e Joaquim na Perajorge,
e casou com a Rosa da Josefa do Areal, estabelecendo-se no
lugar do Picoto; − o António Caetana, ou António Dias Lopes,
da Granja, que esteve amesentado em casa rica, da Vila de
Eixo; os irmãos, o Manuel; e o Francisco; o José de Oliveira, o
Cabreiro; o José Valente, velho, e a sua consorte, a Anastácia
do Valente, moleiros dos principais, no tempo; o António
Vareiro, que não sei donde lhe vem o apelido; o António Ferreira; o Francisco Marques, o do Fles-Plães-Tate-Bitate; e a sua
mãe, a velha Maria Manca... − Aonde isso vai! E quem mais,
de tanto se lembrará ainda?!
Lembrando essas migalhas, ou migalhinhas; relacionando-as com outros
elementos de observação própria, e informação
congruente, pode, discretamente, estabelecer-se como verídico e
fundamental, o seguinte:
Em tempos remotos, dando de barato à «tenebrosa noite
da Idade-Média» (sic)...; − a Granja, (ou as Granjas), foi, decerto,
caracterizada, no fundo, por uma espécie de braço de rio, ou antes, de
vazadouro considerável das escorrências dos vales circunvizinhos: − uma
grande lagoa longitudinal, de águas correntes, e
manentes; extensa; considerável; prolongada ao viez do leito do Vouga;
desde os Vales do Braçal, do Sobreirinho, dos Covões,
dos Rasos, da Cavadinha, da Covoada, etc., até aos pauis da
Carrajoa, do Camarnal, do Picoto; da Horta, etc.; a despejar,
por fim, na margem esquerda do Vouga, a montante do Eixo, − a jusante da Ponte da Rata.
Curioso, interessante, pitoresco, seria fixar ou definir as fases da
vida vegetal, e animal, humana, da região, nesses remotos tempos; − e a
sua evolução...
Mas a tanto não me proponho agora; a tanto não me aventuro.
Vamos aos poucos: paulatim deambulando,
longum conficitur iter: de vagar se vai ao longe.
II
Os detritos, o desgaste e arraste das terras e águas convergentes, foram pejando o fundo da lagoa: foram sobrepondo
camadas sucessivas; foram libertando, nas margens, as encostas mais
altas e duras; deixando-as aptas à cultura dos cereais,
milho, feijão, arroz; e ao pascigo dos gados. Ao centro predominava a corrente forte; mas aos lados formaram-se escoadoiros menos
volumosos e menos impetuosos; valas de descarga parcial, que permitiam açudes, presas e represas temporárias, e no
declive a montagem de engenhos vulgares, a presa, o quebradouro, o tubo
com seu espiche, sobre o rodízio de madeira
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aparelhada do moinho que rodava célere, em baixo, fazia rodar, em cima,
a mó de pedra dura, granítica, para farinar milho e trigo, e descascar
arroz que ali muito se cultivava.
Não é preciso ter a imaginação muito espevitada para figurar e como que
estar a ver essas evoluções e mudanças, até à «vala veia», até à «vala
real», que ainda hoje conserva o nome e a categoria, e vestígios.
O maior volume da água da Lagoa e a sua corrente ficava, de certo, ao
centro; e na parte mais funda do Vale, continuava a vigorar, e a receber
as sobras laterais dos quebradouros rústicos ou engendrados conforme as
conveniências dos citados remocráticos e exóticos.
Já então por ali se cruzavam os viandantes; e atravessavam as águas,
naturalmente em barcos rudimentares, simplistas, jangadas, canoas − duas
ou três tábuas ou pranchas mal ajuntadas, com outras perpendiculares
servindo de resguardo ou de bordo.
Assim foi decorrendo a vida,
− até que a concorrência tornou-se mais
considerável, e o respeitável público reclamou a ponte com passagem mais
segura, permanente; ou os maiorais da região e vizinhanças a reclamaram
e as autoridades concorreram para se fazer a obra.
Assim se explica a construção da velha Ponte da Granja, que apesar da
sua rusticidade e em lugar quase ermo, revela certa importância e arte.
Procurando sinais ou indícios da época em que foi construída, nada mais
pude obter de elucidativo, nem no arco, nem nos encontros, de pedra
vermelha, vulgarmente conhecida pelo nome de pedra de Eirol: só da
tradição colhi que a ponte actual fora construída sobre outra mais
antiga, já soterrada nas areias que as águas transportam, e que deviam
ser muito consideráveis em tempos mais afastados e distantes.
A ponte da Granja! Lá está ela, regular, bem conservada desde a
primitiva, mas de areias farta, e de arbustos e ervanços que ameaçam a
sua conservação e desafogo; e, no inverno, com as cheias das águas
pluviais, aproximam as margens de modo a, por vezes, confundi-las.
III
Anteriormente, pois, a estes
tempos e suas mudanças, todavia, quando os transeuntes já vinham das margens do Cértima e do
Águeda,
através de matos, tojos e pinheirais, vencendo barrancos e barrocos, em
noites escuras, tenebrosas, cortadas com ventanias e aguaceiros, − o
caminho, sem piso regular,
devia ser medonho e arriscado passar por ali, de cajado na mão, ou de
fardos insignificantes aos ombros. Silêncio, escuridão, o
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horizonte cerrado, − não tendo para quem apelar nos momentos
de susto e perigo! − Sem sol, sem lua, sem luz!
Foi, porventura, nestas tristes circunstâncias, que algum
viandante se lembrou de acender a lumeira de caruma, ou de carqueja,
para animar os passos mais incertos. Foi porventura assim que alguém se
lembrou de munir-se da lanterna salvadora, bruxuleante, mas acolhedora
quando a escuridão fosse mais cerrada; mais espesso o matagal; mais de
assustar e temer a travessia.
Foi, de certo, assim, que a lumeira ou a lanterna foi pendurada na
estaca ou tronco do vaIado ou muro tosco, para servir de farol, − e de
guia aos retardatários e menos animosos, de sinal a todos.
A luz era assim guia!
A guia divisava-se através do arvoredo e do pinheiral.
A guia animava até ao poiso de descanso, no recanto do
terreno e do olhão de água lisa, potável, antes da ponte, que ainda hoje
ali borbulha, à farta, de afamada abundância.
Naturalmente, da lanterna passou-se ao quadro, ao retábulo, ao painel,
com a pintura da Cruz e da Virgem, como era uso nos primórdios da arte
decorativa e tradicional.
Depois, veio a construção do edículo, do nicho; do minúsculo santuário, em pedra e cal; e, enfim, da capela, da capela
primitiva; a capela da luz, da guia; o sobrenatural impôs-se, personalizou-se; sinalou-o Nossa Senhora da Guia, cuja invocação é
Luz, foi e é glória, conforto, da população, há séculos, e cuja
devoção tem ido aumentando, engrandecendo, até ao presente, com a
manutenção da lâmpada preciosa, e alimentada a azeite
das ofertas espontâneas; e a festa anual de Setembro, mais
ou menos estrondosa.
A história, pois, é despretensiosa e modesta, mas é de
todo o ponto verosímil, mimosa, acolhedora.
A essas tradições várias vezes reporto; e agora mais
intimamente, estando ainda como que ouvindo os foguetes da
festa, a música popular da aldeia em dia solene, e pressentindo
o murmúrio da devoção dos fiéis, que acorrem ao templo, e
dos mordomos que enfeitam a capela, o altar, o terraço fronteiro,
e especialmente a imagem da virgem Nossa Senhora da Guia,
com o seu manto azul bordado a ouro, e, o rosto prazenteiro de mãe benigna, que a todos acolhe, com a mesma graça e sorriso.
E conjuntamente à relIgiosa, a festa da casa da família; o desbaste na capoeira, e a prova do vinho palhête do parreiral e das
encostas adjacentes.
Ultimamente, a devoção do povo do lugar manifestou-se
mais íntima e intensa no desejo de fazer a aquisição duma imagem digna, e testemunho de dedicação à santíssima Virgem, a N.
Senhora da Guia, e realizou-se há pouco, condignamente. A
imagem, que saiu das oficinas do grande artista que é há muito
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Teixeira Lopes, significou, e significa, um dia de festa, de festa
permanente para o povo do lugar, e para os devotos das cercanias, de
perto e ao longe, e sobretudo para as famílias da terra e para a
educação das novas gerações.
Mas este assunto relaciona-se com outros que se irão desenvolvendo se
não nos faltar saúde e vida.
P.e M.
RODRIGUES VIEIRA
Continua na pág. 209 −
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