O Castelo... deve ser
a acrópole sagrada, o lugar eleito das peregrinações patrióticas.
Dr. OLIVEIRA SALAZAR − Mensagem de
26 de Março de 1938.
A
sul(1) da Vila da
Feira, mesmo em face da parte da rua que desce do edifício municipal para a
ponte, para o começo da estrada que vai à estação, e para o escadório da
igreja matriz, eleva-se no alto dum
cabeço o perfil típico e imponente do vetusto monumento.
Publicou este Arquivo, no seu volume
1º, a página 140, a vista geral do
Castelo da Feira em todo o seu comprimento voltado ao poente.
É por esse lado a entrada para a barbacã composta de dois paredões
ameados com os seus adarves e um pequeno cubelo no ângulo e outro ao
ligar com a alta muralha. Encima a porta da barbacã um escudo de granito
em alto relevo, com a cruz floreada e aberta no campo das armas dos
Pereiras e o coronel de conde, e que foi colocado num vão rectangular,
muito maior,
onde esteve uma pedra de calcário com as mesmas armas
em baixo relevo, mas sobpostas a um elmo. Na base desta pedra lê-se.
O QVARTO CÕDE DA FR.A
DÕ DI.º FROIAZ P.A MÃDOV FA
ZER ESTA E O RELOGIO DA
QVELA TORE NA ERA DE 1567
Ao nível do pátio de entrada têm os paredões quatro reentrâncias
abobadadas em arco de círculo, servindo besteiras cruciformes com
troneiras redondas.
Com a face alinhando pelo pano do paredão da entrada e à esquerda de
quem a transpõe, ergue-se um cubelo quadrado, no sopé do qual abre a
porta da vila, em ogiva e dando acesso à íngreme poterna curva que sobe
sob elevada abóbada em tijolo.
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Galgada essa subida que torce à direita, depara-se-nos a vasta esplanada
ou praça de armas e, em frente, a alterosa torre de menagem,
quadrangular e guarnecida por quatro torreões que se lhe encostam, sobem
mais alto que o eirado e são cobertos
por coruchéus cónicos de tijolo, tendo em roda nas quatro esquinas
outros pequenos cones semelhantes. Esses vinte bicos rematados todos por
florões de granito dão ao perfil do Castelo da Feira um aspecto
característico e pitoresco.
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Castelo da Feira − Barbacã e capela |
A entrada da torre é de arco redondo no estilo romano e as suas pedras
denotam grande velhice.
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Vista aérea do Castelo da Feira |
Perto está uma fonte com o tanque ao
rés do terreno e um espaldar que
foi revestido a azulejo e é sobreposto por um
escudo em granito das armas dos Pereiras com o seu coronel de conde,
muito parecido com o da porta da barbacã e com
outro que encimava a entrada do paço dos condes. Alguém chamou manuelina
a esta fonte e o dislate tem sido muito repetido. Tudo leva a crer que
seja do século XVII e os azulejos dela eram iguais aos da capela mor do
templo de S. Nicolau feita a expensas de D. Joana de Castro, neta do 4.º
conde D. Diogo(2), por começos desse século.
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Os quatro torreões ligam-se à
torre de maneira diversa.
O da esquerda, ao nordeste, faz saliência na frontaria a alguma
distância da esquina e contém na sua espessura a escada de caracol de 34
degraus que sobe do andar nobre para o eirado,
seguindo em mais 8 até ao mirante desse torreão. O da direita,
ao noroeste, salienta-se também da fachada, mas no extremo
desta segue a linha da parede do poente, e contém, quatro degraus acima
do andar nobre, um grande forno com ampla
recâmara. Os outros dois torreões saem fora de ambas as
paredes a que encostam e são maciços até ao nível do eirado.
A meio da parede sul da
torre apuseram, só até à altura
desta, um gigante que parece um quinto torreão. Foi feito por
terem quebrado todas as pedras que formavam padieira ao vão dum postigo
sobre que assentava uma das nervuras da abóbada que existe no interior
da torre e é toda construída de granito, em
ogiva, correndo de nascente a poente e com quatro nervuras de arestas
cortadas, nascendo em mísulas pontiagudas.
Vêem-se os buracos e cachorros das traves dos pavimentos, um dos quais
−
o andar nobre − assentava ao norte sobre
sapata formada pela maior grossura da parede. Há vestígios
duma sobreloja para servir seteiras.
Sobe do pavimento térreo para o andar nobre uma escada
direita de 18 degraus cavada na parede ao leste, perto do postigo ou porta lateral da
torre. Dentro e em frente desta há outra porta a
isolar o pavimento térreo. Ambas são em ogiva aguda, mas a do fundo dos
degraus é lanceolada e a do alto
deles de verga recta. Todas as ombreiras têm os ângulos
chanfrados. Por cima desta escada há um nicho, altar, oratório ou
armário, com degraus e guarnecido por delgadas colunas de granito com
capiteis lavrados em calcário branco e mole. Perto deste nicho abre uma
portinha a dar acesso a outra escada, mas de caracol, com 23 degraus e
que sobe do andar nobre ao superior.
Há no andar nobre três chaminés, ao norte, ao poente e ao sul, e quatro
janelas, duas ao cimo da escada abertas ao norte e ao leste, outra ao
leste perto do outro canto e uma ao sul.
O pavimento superior tinha duas janelas, ao leste e ao poente
e uma chaminé ao leste. Todas as chaminés têm as lareiras
cavadas na parede e vão abrir no eirado rodeadas de parapeitos de palmo.
O pavimento superior interceptou as nervuras
da abóbada que estão
escalavradas para dar passagem às traves desse soalho.
As pedras das fiadas, em que se meteram estas traves, foram
desviadas, coincidindo o seu corte com o das de baixo ou de cima, em vez
de contrafiarem. Prova isto que os construtores da abóbada não previram
esse segundo andar. Mas deve ter
sido feito ao mesmo tempo que o resto da torre; porque, tanto
na chaminé dele como nos degraus da escada de caracol entre
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os dois pavimentos, existem siglas iguais às que se vêem nas
paredes, abaixo do nascimento da abóbada, no eirado e em
outras partes das construções coevas em redor da torre.
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Castelo da Feira − Recanto e ameia anteriores à fundação de Portugal |
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Encostam ao torreão do nordeste uns muros com seteiras
sobrepostas, uma porta ogival e uns merlões cortados obliquamente para
diante e servidos por um adarve sobre abobadilhas
de tijolo e por uma escada encostando à saliência do torreão.
Tudo isto mostra ser postiço, sem préstimo nem motivo militar,
aproveitando porta e seteiras de partes demolidas e arranjado
para embelezar a frente da porta principal do paço dos condes.
Liga este muro de enfeite, em ângulo, com as paredes arruinadas da antiga alcáçova coeva da
torre de menagem, às quais
sobrepuseram um fingimento dos mesmos merlões de tijolo,
mas só a meia espessura. Forma este recanto um largo patim
para que sobem compridos degraus de granito com bucel e
pouco altos, a evidenciar serem muito posteriores à construção ogival.
Encostada à face do outro torreão do noroeste sobe uma
larga escada direita ao patamar que se prolonga rente à parede, com
portas para o terreiro ao poente da torre e para uma
saliência assente em cachorrada contendo as sentinas e, por
cima, um cubelo com o seu adarve pela banda do sul. Deste
patamar descem dois degraus para o largo adarve que limita a
esplanada ou praça de armas ao poente, tem cavadas quatro
besteiras cruciformes abrindo sobre troneiras redondas e serve a alta
muralha amerloada onde encosta um dos lanços da barbacã. Ao princípio
deste adarve ergue-se um cubelo saído e
pousado no declive que cobre a casamata destinada à defesa da
porta da vila, antes da existência da barbacã.
Fronteiro, ao leste da praça de armas, há um parapeito
posto só para resguardo no sítio onde corria grossa muralha
com o seu adarve e besteiras cavadas sob este, conforme se viu nas
escavações aí praticadas para pesquisas.
Por fora, a uns quatro metros desta, existem restos de
outra muralha quase paralela que devia subir a meia altura da
interior. Não se encontraram ainda vestígios da comunicação para
serventia do adarve da muralha exterior.
Ao norte, sobre a poterna, seguem os parapeitos amerloados,
depois de um terraço cobrindo o cubelo da porta da vila, que foi
decapitado, substituindo os seus merlões um parapeito
assente num rebordo inexplicável em fortaleza daquelas épocas. Desse
terraço até à saída da poterna prolonga-se o chão empedrado a findar no patim por cima do arco da poterna, donde
descem, por ambos os lados, escadas desiguais para a praça de armas.
Enfrentando com a linda
torre de menagem, no outro
extremo da esplanada, avança para o norte uma ponta da muralha, na qual, a 8 de Julho de 1938, se descobriu uma velha
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ameia terminada em quina aguda, como as dos castelos de
Guimarães, Lanhoso, Penedono e tantos outros dos séculos X
a XII existentes no nosso país. Apresenta, porém, a especialidade de ter ao meio uma seteira rectangular. Junto desta ameia
desobstruiu-se um pedaço de adarve antigo feito a pedras mais miúdas e três degraus toscos e altos, subindo da esplanada. São restos
evidentes dum castelejo amoiriscado, que estavam
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envoltos num maciço feito para amparar o extremo dos paços dos condes.
Logo ao pé erguia-se um miradoiro sobre três cachorradas aterrado para
servir de minúsculo jardinzito, que se esboroara como toda essa parte da
muralha.
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Castelo da Feira − Tenalha |
Para o sul da praça de armas, prolongam-se aos lados da
torre de menagem estreitos terreiros que foram ambos alpendrados. O do poente tem a meio a entrada da rampa para a
casamata e corre a par do parapeito da muralha coroado de
merlões onde vinha assentar o telheiro. O do nascente tem ao
fundo a porta ogivada do caminho coberto, que desce para o
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pátio da traição, e junto dela o postigo lateral da torre já referido.
O telheiro pendia duma ranhura cavada na parede da torre a pousar em pilares assentes num pequeno muro paralelo
ao cubelo saliente para leste, onde existe um profundo poço
servido por escada de caracol de 141 degraus. Abrem da
escada para o poço oito altas janelas de arco redondo sobrepostas umas às outras. A escada e a parede das janelas pesam
sobre um arco abatido, de granito, firme na rocha nativa a mais
de trinta e três metros do nível do cubelo, escavando-se, portanto, mais de vinte metros abaixo do solo adjacente. Entre
dois dos pilares do alpendre começa o patim da escada que
comunica com o adarve vindo do sul pelo nascente e com o cubelo do poço,
subindo para o terrapleno ao leste e sul da torre, que vai ligar ao terreiro do poente e é fechado em toda
a volta pelo adarve, recto ao leste e curvo ao sul, que, em dez
socalcos, sobe e desce sempre coroado de merlões com besteiras
cruciformes e respectivas troneiras circulares.
O caminho coberto desce em escada com sucessivas besteiras cavadas no paredão do nascente em diversas direcções e
por fim em rampa com as besteiras abertas na parede do pátio
da traição até à porta para este, no baixo de cujas ombreiras
ficaram gravadas as duas firmas dos mestres da obra.
O pátio tem três saídas: a porta da traição ao leste, outra
ao poente ainda entulhada, onde há terceira firma, e a última
em frente da do caminho coberto, ao fim duma poterna baixa
perfurada sob o primeiro terraço da tenalha, no qual existe
outra pequena porta entaipada. Trepa uma estreita escada,
assente na rocha nativa, do pátio para este terraço e outras
sobem para o segundo e para os adarves em anfiteatro.
Ladeiam estes os paredões amerloados, circundantes de todas
as bandas até à muralha curva que limita, lá no alto, o terrapleno
ao sul da torre de menagem, na base da qual liga os adarves
um estreito passadiço lajeado e tendo a meio o portal da mina
que vai abrir no interior da torre. Deste passadiço até ao pátio
da traição um rude rampeado tapa o caminho coberto.
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A via militar romana de Lisboa a Braga, segundo o itinerário de Antonino, passava em Lancóbriga que uns dizem ter sido
na Feira, outros em Fiães (freguesia próxima), como há quem
a localize em Ovil (Esmoriz) e até em Lações (Oliveira de
Azeméis). A tradição reza que a Feira é a reedificação de
Lancóbriga pelos condes Mem Guterres e Mem Lucídio auxiliados pelos senhores do MarneI. Ora Mem Guterres, duque,
aparece, como pai de D. Enderquina Pala, num documento de 897 e o conde
de Santa Maria − Mem Lucídio − figura em
documentos de 1014 a 1050. Impossível se torna que cometessem
/ 267 / juntos qualquer empreendimento. Haveria duas reedificações confundidas na tradição?
No Castelo da Feira apareceram três aras romanas:
−
a 1.ª em Junho de 1912, na muralha do nascente e é consagrada
ao deus Tueraeus por Arcio, filho de Epeico, brácaro de nação;
− a 2.ª, em 1917, no recheio do torreão do sudoeste e foi Lúcio Látrio
Bleso quem voluntariamente cumpriu esse voto a Bandevelugo Toiraeco; − a 3.ª, em 1937, no torreão ao sudoeste,
mas está por tal forma mutilada que só duas ou três letras se
podem ler. Disto e do aspecto e vetustez das pedras da entrada
principal da torre de menagem se deve inferir que houve ali
um castro romano.
A mais antiga referência a
este castelo é da Chronica Gothorum, ao
referir a batalha na vila de Cesar no território do Castelo de Santa
Maria, na qual Bermudo III venceu um rei moiro, a 10 de
Abril de 1045. É de notar que a data está errada, porque Bermudo III
morreu em 1037.
O castelo devia ser já antigo, visto datar de 773 um documento
que fala nas Terras de Santa Maria das quais ele era cabeça.
Ao passo que às Terras de Santa Maria se acrescenta a
designação «da feira», passa o Castelo de Santa Maria a ser
chamado Castelo da Feira. O mais antigo documento onde surge o nome
«Feira» é a carta de couto de Osseloa, em que Portugal pela primeira vez se chama reino, e foi dada por D. Teresa,
em Novembro de 1117, na Terra de Santa Maria «ubi vocant
feira».
De documentos históricos resulta que em 1093 era alcaide
deste castelo
Flacêncio e em 1102 era seu tenens Venegas Joannis.
Foi um dos dois que D. Afonso Henriques, em
1128, furtou à sua mãe,
sendo senhor das Terras de Santa Maria Hermígio
Monis, um dos caudilhos do futuro rei de Portugal e seu primeiro mordomo mor.
Ao Castelo da Feira se refere o testamento feito por
D. Sancho I, provavelmente na era de 1226, como próprio para
habitação da rainha e das infantas.
Em 1300 faz parte do dote e arras da rainha Santa Isabel
que o visitou.
Tomou-o o infante D. Afonso (depois IV) em 1323, sendo
alcaide mor Gonçalo Rodrigues de Freitas.
D. Pedro I em 29 de Junho de 1357 deu-o a Gonçalo Garcia de Figueiredo, aio do infante D. João, seu filho e de D.
Inês
de Castro.
Vinte e cinco anos depois (30 de Junho de 1382) manda
D. Fernando I ao alcaide Diogo Gonçalves que entregue o Castelo da
Feira ao seu cunhado D. João Afonso Telo, conde de Barcelos e senhor
das Terras de Santa Maria da Feira
(Arquivo, volume 1º, a pág. 138). Por isso em 1383, sendo alcaide
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Martim Correia, este tomou voz por D. Beatriz, rainha de Castela, e em 1385 veio Gonçalo Vaz Coutinho (pai do primeiro
conde de Marialva), com os homens da beetria do Porto, tomá-lo
para o Mestre de Avis, pelo que «recebeu mil livras de affonsys porque
doutra guisa ho não quisera fazer.»
D. João I deu a alcaidaria do Castelo da Feira, separada do
senhorio das Terras de Santa Maria da Feira, ao seu camareiro
mor o heróico João Rodrigues de Sá, o das Galés. Ainda nesse tempo este
castelo tinha, portanto, valor militar e era honroso ser seu alcaide.
Ainda em vida do filho do das Galés, Fernão de Sá, a quem
a doação da alcaidaria fora confirmada, pediu o castelo Fernão
Pereira que herdava do seu pai João Alvares Pereira e do seu
avô o marechal Álvaro Pereira o senhorio das Terras da Feira.
Foi-lhe dado, de juro e herdade, em 19 de Novembro de 1448,
obrigando-se a refazer, correger e reparar os muros, paredes
e coisas que para a sua fortaleza e boa defensão fôssem necessárias. A Fernão Pereira sucedeu em 1467 o seu filho Rui Vaz
Pereira que veio a chamar-se D. Rodrigo Pereira, quando foi primeiro
conde da Feira. Temos, pois, datada a reconstrução
ogival do Castelo da Feira entre 1448 e 1467.
Em 25 de Outubro de 1502 D. Manuel I, o venturoso, aposentou-se
no castelo, de passagem para Compostela.
Posteriormente o 4.º conde da Feira, D. Diogo, acrescenta,
antes da porta da vila, a barbacã, em 1567, encimando a entrada
com as armas da sua família.
A 10 de Setembro de 1580 o infeliz D. António, prior do
Crato, serviu-se, para o assalto a Aveiro, da artilharia que se
guardava no Castelo da Feira e ele próprio cedera para defesa
do Porto, quando fora aclamado rei em Santarém.
Desde a reconstrução do século
XV começou o Castelo da
Feira a converter-se, de baluarte da defesa nacional, em padrão do
poderio e valimento da família dos Pereiras, de que passara
a ser apanágio, ficando logo por cortar rochas que contrariavam
objectivos militares em frente da casamata. A alcáçova ou
dependências coevas da torre de menagem iam-se transformando em paço solarengo e, por fim, o último conde da Feira,
D. Fernando, entre 4 de Junho de 1660 e 15 de Janeiro de 1700,
sacrifica a parte militar das muralhas ao embelezamento do seu palácio e
dos seus jardins.
De então para diante não mais se reparou o castelo até
1905. Dois séculos de abandono.
Aos 19 de Maio de 1708 toma posse do castelo, por seu
procurador, o infante D. Francisco, irmão de D. João V; visto
os bens da Casa da Feira terem sido incorporados na do
Infantado.
Um incêndio, de 15 para 16 de Janeiro de 1722, arruína o
palácio, diz-se que para o tornar inabitável.
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Em 13 de Setembro de 1839 foram vendidas a um particular as casas do palácio dos condes e dos celeiros que lhe
ficavam em frente e reduziam a vasta esplanada ou praça de armas a uma
rua de oito metros de largo. As pedras esboroadas serviam para obras particulares, se é que não se iam, para
isso, aluindo muralhas.
Alexandre Herculano censurava na sessão da Câmara dos
Deputados de 8 de Outubro de 1840 o abandono do Castelo da
Feira que se estava arruinando e deitando abaixo.
Passaram em 1852 pelo Castelo da Feira D. Fernando II e
os seus filhos D. Pedro V e D. Luís I, sendo tosquiadas as eras
que em tufos cobriam os muros e talvez limpos uns dez metros
do poço.
A Câmara Municipal de 1877, por proposta do
Dr. António
Augusto de Araújo e Melo, mandou desentulhar o poço. Foi a
primeira tentativa de ressurreição do velho castelo que, em 19 de Março
de 1881, foi incluído na lista dos Monumentos Nacionais, sendo considerado monumento militar na nova classificação
do decreto de 16 de Junho de 1910.
Afonso Alfredo Teixeira Couto, dono da Hospedaria Topa
(hoje Pensão Carneiro) iniciou em 1905, por subscrições entre
feirenses, a limpeza e vedação do monumento. Deve-se-lhe a
justiça de rememorar o seu nome como precursor dos carolas
pelo lindo castelo. Quis secundá-lo e redigi os estatutos da
«Sociedade Castelo da Feira» que foram votados, elegendo-se
os corpos gerentes em 28 de Agosto de 1905. Mas... não consegui mais. Dos então eleitos existimos dois: D. FERNANDO DE
TAVARES E TÁVORA, autor da bela monografia O Castelo da Feira
(Porto, 1917) e o rabiscador destes apontamentos.
Em 1907 as Obras Públicas gastaram 200$000 réis em portas e reparação da muralha do norte e ainda outro tanto em reparar a
muralha do poente.
Em 1909 um benemérito feirense custeou reparações no eirado e cunhais da
torre, renascendo disso a ideia de se coordenarem esses esforços e
assim, em 29 de Outubro de 1909, o
Dr. António Augusto de Aguiar Cardoso organizou a Comissão de
Vigilância pela Guarda e Conservação do Castelo da Feira com
quinze subscritores, dando-lhe vida e efectividade durante vinte e
seis anos, devotada e incansavelmente. Fui o sétimo dos quinze.
Seguiram então as reparações.
Em 1910 consertaram-se coruchéus e um grande rombo na
muralha sudoeste.
Em 1912 ficou o monumento absolutamente vedado, fazendo-se muros nos sítios de muralhas aluídas; mas o torreão do sudoeste
fende e ameaça ruir.
Em 1914 dedicados amigos do castelo adquirem os celeiros,
que foram demolidos, e as ruínas do palácio dos condes, doadas
em seguida à Câmara Municipal.
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Em 1915, ao fim de três anos de alarme, reclamações e
pedidos, foi amarrada a torre de menagem com cabos de arame
para segurar o torreão, que só em 1919 foi apeado e reconstruído pelas Obras Públicas, depois de novas instâncias e solicitações.
Em 1917 tinha a Comissão de Vigilância desobstruído e
refeito a tenalha, com a ajuda da Inspecção da 5.ª Circunscrição
Militar de Coimbra, desaterrara a casamata, compusera a muralha do poente e três dos merlões ao oeste da muralha curva ao sul da
torre.
Em 1920 repara-se a muralha norte perto da capela, conserta-se o largo adarve do poente da praça de armas, desentulha-se esta ao norte-nascente, repara-se o parapeito do cubelo
do poço, consolida-se dentro da torre a escada do andar nobre para o
segundo pavimento e completam-se os merlões do eirado.
Tudo isto é feito pela Comissão de Vigilância auxiliada por
alguns pequenos subsídios alcançados a poder de esforços e
reiteradas instâncias.
Em 1929 foram demolidos os restos do paço dos condes e
com eles os vestígios de construções do século XV, ficando livre
a praça de armas e quase desafrontada a torre de menagem.
As arcarias, varandas e porta ornamentais do paço estão reerguidas, à
custa da Comissão de Vigilância, desde 1934, no outro extremo da vila, e
destinam-se a fachada do corpo principal do
edifício da Biblioteca e Museu Municipais.
Por fim, a 28 de Julho de 1935 começaram as obras da
Direcção dos Monumentos Nacionais até 19 de Janeiro de 1937,
com ligeira interrupção em Outubro de 1936. Principia o restauro com a superintendência do distinto arquitecto Baltazar de Castro.
Refez-se a parede com adarve estreito
sobre a porta da
traição até ligar a tenalha com o alto da rampa que tapa o
caminho coberto, avançaram mais cinco merlões da muralha
curva coroando essa rampa ao sul da torre de menagem, levantou-se o paredão ao nascente do caminho coberto e parte da
abóbada ao cimo deste e foi reconstruído o torreão do sudoeste
até quase à altura do eirado.
Em 7 de Dezembro de 1937 recomeçaram os trabalhos
pela demolição dos feiíssimos muros que prolongavam a saída
da poterna, para nivelar por cima da abóbada desta um jardinzinho parapeitado, entre as últimas varandas do palácio e o
miradoiro que decapitou o cubelo da porta da vila. Pararam as obras a 26
de Fevereiro de 1938 para recomeçarem em 1
de Junho, concluindo-se a muralha curva e trazendo-a com o
seu adarve pelo nascente até ao cubelo do poço, coroada por mais nove
merlões, terraplanou-se o terreiro ao sul da torre,
regularizando-se todos os adarves em redor, refez-se a escada
que desce para o terreiro do leste, ficando tudo concluído para
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o sul da torre de menagem. Ao norte fez-se um merlão sobranceiro à capela e que faltava, e foram demolidos os restos do
palácio engastados na muralha.
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Castelo da Feira − Planta panorâmica |
Aí surgiu a velha ameia e o seu adarve que vieram modificar e desenvolver a traça do restauro do imponente monumento. Não se
trata só de refazer e compor uma obra ogival do século XV. Há trechos
subsistentes de épocas anteriores cuja conservação se impõe.
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Tem de consolidar-se, mas mantendo-se na sua feição primitiva,
esse recanto mais velho quatro ou cinco séculos que o restante.
Tudo leva a crer que poço, escada de caracol a servi-lo e
cubelo envolvente sejam anteriores ao período ogival. As
grossas paredes são de silharia com regulares fiadas de pedras
picadas, avultando de onde a onde os topos toscos dos juntouros.
As oito janelas, abrindo da escada para o poço, fecham em arco
de círculo. Não há as mesmas siglas. Cortam a espessura frestas compridas, simples, rectas, uma ao sul e três ao nascente.
Nenhuma aresta é chanfrada. Os degraus embutidos dum lado
na parede circular, sobrepõem-se no escaparate e numa nesga,
formando o seu leito a espiral do tecto. Essa saliência avançada
da linha das muralhas, erguida numa depressão da rocha, onde
todas elas se alicerçam e que só a vai encontrar lá muito em baixo
onde uma veia de água a rompe, nasceu em época posterior ao
castelejo amoiriscado do norte, mas antes da invasão do estilo gótico
no nosso país pelo século XIII. Deve ter menos cem ou
duzentos anos que a velha ameia agora posta à vista e mais
uns trezentos que a torre de menagem. A boca do poço, aberto
verticalmente num quadrilátero irregular, aparecia-nos sem resguardo num piso tosco
em que o cubelo estava truncado, chão provisório,
cimo de derrocada, para onde se subia por esboroamentos e por uma rampa
talhada modernamente. O redondo
da saída da escada fora alargado para a esquadria, seguindo a
padieira duma fresta e recuando uma das pedras em aduela.
Em redor do cubelo ajeitara-se um parapeito exíguo, evidentemente postiço, reparado em 1919 e aproveitando pedras trabalhadas por todos os lados, sem argamassa e
que quase todas
coincidiam com a espessura da parede ao poente do poço, a
qual, de certa altura para cima, estreitava paramentada em
ambas as faces, deixando de ter pedregulhos salientes. Sobre
ela se puseram agora a completá-la, voltando ao seu lugar primitivo. Desde que se revestisse de qualquer guarda o poço e
o vão da escada e se refizesse o parapeito em torno do cubelo,
para lhe dar préstimo militar e defesa conveniente, não ficava
passagem para o sul do poço nem entre este e a escada. No
entanto era pelo sul a única entrada, ligando com o adarve
vindo desse lado e com os degraus a subir para ele do terreiro
do nascente da torre. Nos outros dois lados, poente e norte, não existia
vestígio algum de acesso que seria dificultado pela
maior diferença de nível. Por tudo isto e pelo que se vê em
outros castelos da mesma época, deduziu-se que o poço era
estreitado em cima por meio de cachorros sobrepostos crescendo das três paredes; porque (singularidade especial do
Castelo da Feira) a parede do poente os não comportava por
ser estreita e facetada exteriormente a fim de deixar intervalo
suficiente até aos sustentáculos do alpendre, não só para este ter
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[Vol. IV - N.º 16 - 1938]
ar e luz, mas para seguir a comunicação entre os adarves ao sul e
nascente e os que seguiam ao longo da praça de armas.
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Castelo da Feira − Cubêlo do poço visto do eirado em 1909. |
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Estão já feitos esses tríplices cachorros, alteia-se o cubelo, já se
completou a escada de caracol e vão pôr-se as guardas no
poço e em volta da escada, para em seguida se refazer o parapeito
coroado de ameias como a que se descobriu ao norte, marcando assim esse
pedaço das fortificações uma época aproximada do século XII. Como este
cubelo do poço fica na parte do monumento sobranceira à vila, dar-lhe-á
um aspecto interessante
/ 274 / e característico, a marcar um estilo diferente do da
torre onde
se projecta, atestando logo que naquele complexo de muralhas se cumulam
memórias de diversas eras e que as várias idades daquelas pedras se
medem por séculos e até por milénios.
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Castelo da Feira, visto do ponte. |
Cinco ciclos distintos ficarão assinalados visivelmente no
Castelo da Feira, depois do seu restauro:
− os vestígios romanos (três séculos antes a três séculos
depois de Cristo) na entrada da torre e nas aras encontradas;
− os restos anteriores à
fundação de Portugal (séculos X
ou XI) no castelejo ao norte com a velha ameia.
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− a feição ainda românica (século XII) no cubelo do poço;,
− o estilo
ogival (século XV) na torre de menagem e em
todo o grande restauro de Fernão Pereira;
− e a maneira da renascença (1567) na barbacã.
Restam ainda vestígios dum sexto ciclo (século
XVII) nos
merlões e adarve de tijolo encimando uma porta ogivada e seteiras
disparatadamente sobrepostas, trazidas de outros sítios. Ainda se
encostam ao torreão da escada, prejudicando a imponência da torre e
encobrindo o seu único ângulo livre e o cubelo do poço, a quem entre na
vasta praça de armas. Devem
desaparecer, como aconteceu às ruínas do paço solarengo e a outras
monstruosidades enxertadas dentro do formoso monumento.
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Resta mencionar, embora esteja fora e destacada do castelo, a capela de
Nossa Senhora da Encarnação ou Senhora de Março, como o povo lhe chama,
que a condessa D. Joana Pereira fez construir próximo do cubelo da porta
da vila, em 1656. É hexagonal, com a cimalha e os cunhais em cantaria de
granito, rematados estes por esbeltas pirâmides, e está coberta com uma
cúpula de cimento para vedação, que deve ser sobposta ao telhado
amoiriscado, como teve. Ladeiam a porta lindas pilastras lavradas
semelhantes às de talha branca e dourada que guarnecem, no interior, os
altares. Desenvolvem-se em duas volutas, partindo-se entre elas o perfil
com graciosa reentrância e prolongando-se na face pendente da de cima o
relevo duma folha de acanto. Parecem-se muito com as que existem na
sacristia da igreja de S. Francisco em Guimarães. Sobre o entablamento
da porta outras iguais pilastras, sobrepujadas por frontão curvo
interrompido, enquadram o octógono da rosácea que foi, este ano,
guarnecida com um vitral representando a cruz branca floreada e aberta
no campo vermelho dos Pereiras, a expensas da Comissão de Vigilância,
que também
reparou o altar de Nossa Senhora, o púlpito e todas as balaustradas de
pau preto. Os outros altares laterais são ambos devotados a Santa Luzia.
Uma das imagens desta veio da antiga capela dessa invocação que existiu
mais além, pela altura da
tenalha, e deve ter ruído entre 1697, em que o padre FRANCISCO
DE SANTA MARIA a menciona no Ceo aberto na terra, e 1758, em que já a
não cita no seu relatório o vigário JOÃO DE S. PEDRO QUINTELA.
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Eis o esboço, a rápidos e mal alinhavados traços, do Castelo da Feira,
onde, em 1128, Hermígio Monis, senhor das Terras de Santa Maria, primitivo dapífer da cúria (mordomo-mor)
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do então infante D. Afonso Henriques e irmão do célebre Aio, ergueu o
primeiro brado da rebelião contra o predomínio galego e leonês, da qual
havia de resultar, onze anos depois, a fundação e independência de
Portugal, cujo oitavo centenário vai em breve comemorar-se.
Nas velhas crónicas ficou registado
este facto, concordes todas em se
terem dois castelos pronunciado, nos primeiros meses de 1128, por D.
Afonso Henriques contra D. Teresa, sendo um o da Feira. Como Ermígio
Monis foi o personagem mais influente desse movimento e foi preferido
pelo infante ao irmão, o leal Egas Monis, para o cargo de seu
inordomo-mor, forçoso é deduzir que foi ele quem, no seu castelo da
Feira, cabeça das suas Terras de Santa Maria, iniciou a revolta que
conduziu aos campos de S. Mamede o filho do conde Henrique, como
instrumento do espírito autonomista dos barões portucalenses e não por
instigador deles.
Em S. Mamede cortou D. Afonso Henriques o vínculo de
suzerania a Leão e depois de Ourique foi solenemente baptizada a nossa
nacionalidade; mas antes disso vira o vetusto castelo arvorar a signa do
infante na aspiração de independência, pelo que pode afirmar-se ter sido
no Castelo da Feira onde nasceu Portugal.
Feira, Dezembro de 1938.
VAZ FERREIRA
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