FOI
aproximadamente pelo venturoso ano de 1500 que radicou em Aveiro a
nobilíssima família dos Tavares. Nesta formosa vila, sobre as portas da
Ribeira, edificou Gonçalo de Tavares sua morada para o que lhe deu El
Rei D. Manuel, em 24 de Março de 1503, uma torre da muralha que a
circundava. É sugestiva, para quem tenha a paciência de ler estas
linhas, a gravura reproduzida neste Arquivo no vo1. 2.°, a pág. 226.
Junto a essa torre cresceu o edifício que em 1687 o beneficiado
CRISTÓVÃO DE PINHO QUEIMADO descreveu pela forma seguinte:
«Mas ainda melhores casas
pelo sitio sobre a porta da Ribeira são as dos nobres Tavares, senhores
da Villa de Mira, e n'esta moradores, pois egualando com abobadas,
muros, e ladeiras sobre a rua, á qual deram o seu apellido de Tavares,
se entra em côche até á primeira sala.. sobre outra abobada junta
da porta da Ribeira, e por cima d'esta a olhar para o
esteiro e praça tem um jardim com flores e plantas, onde está tambem uma
grandiosa estatua de pedra de figura humana(1)
com uma serpente
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enroscada em uma das pernas, a qual é antiquissima e ha quem diga que
é do tempo dos romanos...» Veja-se neste Arquivo, voI. 3.º, pág. 96.
A comparação era feita com
as moradas do Marquês de Arronches, que Tavares era também, e que a
todas se avantajavam. Eram estas e outras que a vila enobreciam,
sumptuosas e quase todas feitas de pedra que lhes veio por mar, pois não
se achavam pedreiras tão perto pela terra. Antes da sua vinda para
Aveiro, residia Gonçalo de Tavares em Portalegre onde seu pai Pedro de
Tavares, um dos principais cabos de guerra que capitaneara a frota que
foi à malograda empresa de Tânger no reinado de D. Duarte, fora
fronteiro-mor e alcaide-mor e bem assim de Alegrete, com obrigação de lá
fazer castelo.
Altas mercês foram estas,
outorgadas de juro e herdade por D. Afonso V em 13 de Abril de 1476, que
lhe vinham já de seus ascendentes desde remota era. Chamou-se a mãe de
Gonçalo D. Isabel de Sousa e era filha legitimada, em Agosto de 1460 já
depois de casada, de Gonçalo Rodrigues de Sousa, fidalgo do Conselho,
Alcaide-mor da Idanha e Niza e capitão de ginetes de El Rei D. Afonso V.
Foi havida em Catarina
Gonçalves.
Quatro bastardias não
anulavam o brilho da régia ascendência desta senhora, quinta neta pela
varonia de D. Afonso III de Portugal; e, por consequência, Gonçalo foi
na sua época um grande personagem, quer pelo seu nascimento, quer pelos
altos cargos e abundantes haveres em que viria a suceder. Mas teve a má
sina de se malquistar com D. João II, como tantos outros fidalgos e dos
melhores, cujos ânimos entraram a ter por pesado o governo de um rei
feliz que a História mais tarde denominaria e consideraria um príncipe
perfeito. Não obsta porém que para todo o sempre os espectros
ensanguentados dos duques D. Fernando II de Bragança e D. Diogo de
Viseu, clamem em voz alterosa e lúgubre, a qual jamais se abafará, que
para o primeiro se arvorou em juiz sendo parte e para o segundo se fez
carrasco sendo rei. Sem dúvida, este monarca, pensando que as mercês
amplas de seu pai o deixaram rei quase sem reino, que dele quase tão
somente herdara o título, e da soberania o nome, cassou e revogou a
muitos fidalgos, e entre eles a Pedro de Tavares as mercês feitas,
talvez como medida geral como escrevem os historiadores, talvez por
desgosto do filho Gonçalo, como escrevem os linhagistas. Não se
conformou nem se acomodou o elevado e tenacíssimo espírito de Pedro de
Tavares.
Pediu, demandou, protestou
e, perdida a cabeça, jogou-a com heroísmo em lance teatral que passou à
História.
Estava afrontado, estava
ofendido, estava esbulhado; queria desafronta, queria satisfações,
queria indemnização!
Que fez? Dêmos a palavra a
Frei LUÍS DE SOUSA, segundo
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marido que foi de sua bisneta a célebre D. Madalena de Vilhena que certa
ou falsamente se julgou viúva de D. João de Portugal, o lendário
romeiro, o «ninguém », do insigne estilista Visconde de Almeida Garrett.
Conta assim:
«Não lhe deferindo (D.
João II) em meses, e anos, abalançou-se, como velho que era, e confiado
em bons serviços, a hum auto de valor, e liberdade Portuguesa antiga.
Estava el Rei pera commungar em hum dia solemne, chegou-se o Vassalo à
sagrada Mesa, e com palavras claras, e distintas, requereo ao Capellão
não admitisse a ella a el Rei, sem primeiro responder com effeito, e
justiça à sua queixa. Era el Rei grande Christão, e muito valeroso: com
o valor tolerou, e digerio o que parecia e era descomedimento: com a
christandade, e amor de Deos, fallou sossegadamente a Pedro de Tavares,
dizendo; que desistisse de tal termo; e fiasse dele lhe mandaria
responder com brevidade.»
Esta foi a palavra do Rei no
dizer de Frei LUÍS DE SOUSA, mas não tinha Pedro de Tavares de ser
indemnizado neste mundo, nem era seu destino morrer tranquilamente.
Recusou a vila de Cadaval que lhe foi oferecida e, navegando em barca à
vela em uma ribeira, nela se afogou desastrosamente sem conseguir, ao
fim de tantos anos e de tantos trabalhos e serviços, a almejada
reparação. Morreu afogado e foi-se à vela; não para Castela, como seu
filho Gonçalo, mas para o seio de Deus, sumo bem e suma justiça, como
piedosamente devemos acreditar. Mas D. João II mais temido do que amado,
rei poderoso mas aborrecido, não teve também prolongada vida e faleceu
em Alvor ao pôr do sol do dia 25 de Outubro de 1495, contando pouco mais
de 40 anos de idade e 14 e meio de reinado. Conhecendo a morte,
solicitou insistentemente a presença do seu sucessor, o duque de Beja D.
Manuel, que houve por bem não corresponder ao apelo, esquivando-se como
pôde, desconfiado e temeroso ainda das garras do leão que agonizava.
Para o receio sobravam as razões. Ele bem sabia os entendimentos que
tivera com os Reis Católicos afim de lhe porem às ordens na fronteira,
para o que desse e viesse, o maior número de tropas disponíveis sob os
comandos dos duques de Alva e de Medina Sidónia. Apenas teve a certeza
do trono, logo chamou a si os seus partidários, entre os quais de certo
estaria Gonçalo de Tavares, o filho do esbulhado Pedro de Tavares que
fora alcaide-mor de Portalegre, de Alegrete e de Assumar. Foi então
compensado, ainda que mal, com o senhorio de Mira, dízimos novos do
pescado de Aveiro e Esgueira e renda do Mordomado de Coimbra. É possível
que estas doações já estivessem combinadas com seu pai, mas o certo é
que foi Gonçalo de Tavares o 1.º Senhor
/ 280 /
de Mira. Provavelmente foram os dízimos, cuja fiscalização lhe era
necessária, que levaram o donatário de Mira a trocar a residência de
Portalegre onde tinha morgado e capela em Santa Clara, pela de Aveiro
que resolveu construir. Com o decorrer dos tempos, elevou-se a uma
grossa e honrada renda a dos direitos reais do peixe que lhe foi
concedida. Gonçalo de Tavares casou, e muito bem, em 3 de Novembro de
1474. Foi sua mulher D. Catarina de Castro, filha de Diogo Lopes de
Sousa, fidalgo do Conselho de EI rei D. Afonso V e seu Mordomo-mor, XX.º
Senhor da Casa de Sousa, ou como tal contado, e das terras de Eixo e
Requeixo, alcaide-mor de Arronches, e de sua mulher D. Isabel de
Noronha. D. Catarina trouxe à Casa dos Tavares uma das mais brilhantes e
poderosas alianças que se poderiam ambicionar. Pelo seu pai pertencia a
noiva à ilustre e opulenta Casa de Sousa que os linhagistas consideram
em antiguidade a primeira e em nobreza a segunda de Portugal. Por sua
mãe, filha dos 1.os Condes de Atalaia, tinha na
ascendência os reis D. Fernando I de Portugal e D. Henrique II de
Castela. Do seu casamento teve Gonçalo de Tavares muitos filhos, sendo
conhecidos os nomes e destinos de oito. Aproximadamente por 1518 faleceu
e, como se adivinhara o que depois havia de acontecer, mandou que o
sepultassem na capela-mor do Mosteiro de Jesus. Assim se fez e nela foi
recebido por honra de tão notável personagem, sem qualquer obrigação nem
contracto. Três
de seus filhos nos interessam na continuação deste tanto quanto possível
escrupuloso, resumido e carinhoso estudo. Foram seus nomes: Simão de
Tavares, que lhe sucedeu, Francisco de Sousa Tavares «o perdiz» e
Belchior de Sousa Tavares. O segundo deveu a sua alcunha ao garrido
costume de trazer quase sempre as meias encarnadas. Foi capitão valente,
e mais ilustrou o seu nome em Dabul, Calecut, Diu e Cananor. Do seu
casamento com D. Maria da Silva de Vilhena, nasceu D. Madalena de
Vilhena de quem foi segundo marido o famigerado Frei Luís de Sousa «um
dos mais perfeitos modelos de bem historiar em português ou já se atenda
à viveza das descrições e mágica dos afectos, ou já às graças e
polimento da expressão» como elegantemente sentenciou o Cónego FRANCISCO
FREIRE DE CARVALHO, do Conselho de Sua Majestade, a pág. 155 do seu
Ensaio sobre a História Literária de Portugal. Belchior, o terceiro
mencionado, tal como seu irmão, serviu brilhantemente na Índia, foi o
primeiro que com navios chegou ao rio Eufrates e ali andou com seis, de
remos, vigiando e protegendo a navegação de Baçorá para Ormuz, fortaleza
em cujo governo sucedeu por provisão do Governador Nuno da Cunha. Do seu
casamento com D. Guiomar Freire, foi uma das filhas D. Maria Madalena da
Silva, mulher de Vasco de Sousa. Foram estes os pais de Henrique de
Sousa Tavares, 1.º Conde de Miranda do Corvo.
Vai aqui mencionado por ter
sido ele o portador do apelido
/ 281 /
Tavares para a Casa de Sousa, ou seja para os seus descendentes e
representantes os Marqueses de Arronches e Duques de Lafões que com o
uso dele, honrando-o, muito se têm honrado também. A todos representa
actualmente Sua Excelência o Senhor D. Afonso de Bragança e Ligne de
Sousa Tavares Mascarenhas da Silva, 5.º Duque de Lafões, 2.º de Miranda,
7.º Marquês de Arronches, 11.º Conde de Miranda do Corvo e representante
da excelsa Casa dos Marqueses de Marialva. Tem a residência em Lisboa no
seu palácio dos Grilos.
Voltemos porém ao senhorio
de Mira que o mesmo é dizer que passemos a tratar de Simão de Tavares,
fidalgo da Casa Real, e filho primeiro de Gonçalo de Tavares. Informam
ter nascido na casa de seus pais, que ao tempo seria em Portalegre, em
1484 e consta ter sucedido nela e no senhorio de Mira pelo ano de 1518
aproximadamente. Este senhorio foi-lhe confirmado por El rei em 6 de
Julho de 1524. Serviu como Estribeiro-mor, o Cardeal Infante D. Afonso,
filho do segundo casamento de El rei D. Manuel. Este Cardeal, que o foi
de pouca idade e faleceu com 31 anos em 1540, teve a feliz lembrança de
ordenar que nas paróquias se fizessem livros para os assentos dos que se
baptizavam, casavam ou faleciam. Dizem outros que Simão serviu também o
Cardeal-rei, irmão deste D. Afonso. A ambos serviria. Casou com D.
Isabel da Fonseca, filha de D. Maria de Alcáçova e de seu marido João da
Fonseca; cavaleiro de D. João lI, escrivão da Chancelaria e Fazenda do
rei D. Manuel e senhor das ilhas de Santo Antão, Corvo e Flores. Bem
longe estava a fidalguia desta senhora de se aproximar da de sua sogra
D. Catarina de Castro. É de crer que os seus dotes físicos, morais e
económicos suprissem em parte esta deficiência. Era neta paterna de
Antão Vaz da Batalha que foi um dos veadores das obras do mosteiro deste
nome, homem, honrado, e neta materna de Pedro de Alcáçova, cavaleiro,
secretário e escrivão da Fazenda das imponentes majestades de D. Afonso
V e D. João lI. Este lhe deu armas novas em Évora, aos 4 de Janeiro de
1490, pelos serviços prestados em Alcácer-ceguer, Tânger e Arzila, as
quais ficaram sendo as do seu apelido. D. Isabel trouxe para o casal,
além de outros bens, 65$000 reais de juro que, com o Paul de Cadima, em
Mira, (aforamento do Cardeal D. Afonso) foram anexados ao morgadio dos
Tavares. Depois do nascimento e criação de vários filhos, seis lhe
apontam os nobiliários, faleceu D. Isabel pelos anos de 1543. Sessenta
contava seu marido. Foi então que desiludido dos prazeres e humanas
grandezas, ele que vivera entre príncipes e roçara pela púrpura
cardinalícia, não obstante os seus 12$000 cruzados de renda, resolveu
professar na Ordem Seráfica e no convento de Santo António de Aveiro, o
que teria feito em princípios de 1544.
/ 282 /
Diz o P.e CARVALHO DA COSTA
na sua Corografia que nela deixou grandes louvores de sua
humildade e pobreza. Testifica-o, além da tradição, uma pedra que se pôs
no claustro do convento a instância de seu filho, com os seguintes
dizeres: «Lembrança aqui posta a petição e rogo de Francisco de
Tavares para seus descendentes, de como seu pay Frey Simaõ de Tavares
tomou o habito n'este convento de S. Antonio d'Aveiro, depois de viuvo,
e sessenta annos de idade; e durou mais vinte e trez na Ordem aonde
viveo e acabou religiosa e virtuosamente. jaz aqui, era de 1566.»
Neste ano faleceu em 6 de
Maio, pelas seis horas da tarde, com perto de 83 anos de idade.
Francisco de Tavares, o
referido na pedra do claustro do convento de Santo António, e filho mais
velho do matrimónio de Simão de Tavares, teria provavelmente nascido
pelos anos de 1524. Foi cavaleiro fidalgo e dos do Conselho de EI Rei, a
quem serviu em Safim e Azamor, e sucedeu a seu pai nos haveres e mercês
régias quando ele resolveu professar na Ordem Seráfica como atrás ficou
relatado. Teve o reguengo e direitos reais de Mira e Dízima Nova do
Pescado de Aveiro e Esgueira por Cartas de 10 e 12 de Novembro de 1546.
Foi pois o 3.º Senhor de Mira. Desfrutou também a comenda da Várzea de
Soure na Ordem de Cristo e a renda do Mordomado de Coimbra. Hospedou na
sua Casa de Aveiro, que por tal passou a denominar-se Paço dos Tavares,
o infeliz príncipe D. António, Prior do Crato, rei de tão efémero quanto
popular reinado, que a escolheu para, residência durante o tempo que se
demorou naquela vila depois de ter estado três dias no convento de São
Domingos. Este facto não impediu que Francisco de Tavares recebesse em
1585 a nomeação de Capitão-mor de Aveiro como consta de carta assinada
pelo Cardeal Alberto Arquiduque da Áustria e Governador de Portugal com
data de 25 de Outubro daquele ano. Francisco de Tavares, tendo residido
em Lisboa, onde foi vereador da Câmara, recolheu-se à vila de Aveiro no
cabo da idade, trazendo consigo sua 2.ª mulher e família e contratou com
as freiras do Convento de Jesus darem-lhe a capela-mor da sua igreja
(onde já fora sepultado seu avô Gonçalo de Tavares como atrás se
referiu) para seu jazigo e de seus sucessores com missa quotidiana.
Pagou com um padrão de juro
de 25$000 reis que logo deu ao mosteiro, e demais reparou de novo o
edifício da mesma capela, pôs-lhe suas armas, letreiro e carneiro em que
jaz, depois de largos e pacíficos anos que gozou de vida. Faleceu em 14
de Agosto de 1595, o que se declara na Carta de Padrão de 75$000 reis de
tença de juro passada a seu filho e sucessor
/ 283 /
Pedro de Tavares. O letreiro na parede do lado do evangelho na
capela-mor do Convento de Jesus reza assim:
FRANCISCO DE TAVARES .
E . DONA JOANA
DE TAVORA SVA MOLHER . NO . ANNO . M. D.
LXXXXIl . REDIFICARÃO ESTA CAPELA . DO
TARÃO DE XXV . MIL RS . DE IVRO PERA HVÃ
MlSA QOTIDIANA . POLO . QVALSELHES DEV P
ERA SVA SEPVLTVRA . E . DE SEVS DENCENDE
NTES.
Sobre a letra, uma formosa
pedra de armas de grande relevo, mostra as dos Tavares, em chefe, sem
indicação de cores ou metais, armas estas que heraldicamente se
descrevem pela forma seguinte:
«De oiro com cinco estrelas
de vermelho, de seis raios cada uma, postas em santor. Elmo de prata
aberto guarnecido de oiro e por timbre um cavalo sainte de vermelho
selado e enfreado de oiro. Paquife do metal e cor das armas». Sobre o
elmo já não existe o timbre por lho tirarem quando fizeram os ornatos e
pinturas: Assim o diz BRAANCAMP FREIRE no L.º 1.º dos Brasões da Sala
de Sintra a pág. 428.
Casou Francisco de Tavares
duas vezes, sendo as suas mulheres primas direitas uma da outra. Foi a
primeira D. Joana da Silva, filha de Francisco de Sá e Menezes, veador
da Fazenda do Porto e senhor de Aguiar, e de sua mulher D. Isabel da
Silva, filha de Álvaro Pires de Távora, fidalgo, XII.º Senhor da Casa de
Távora e das comendas de Mogadouro, Bemposta e Penarroias e de sua
mulher D. Joana da Silva. Deste primeiro enlace teve um filho de nome
Pedro que morreu criança e uma filha D. Joana de Távora que casou com
Manuel Correia Baharem com nobilíssima geração.
A segunda mulher de
Francisco de Tavares chamou-se D. Joana de Távora, e a esta se refere o
letreiro da capela-mor do Convento de Jesus. Foram seus pais Bernardim
de Távora, fidalgo do Conselho e Reposteiro-mor e sua mulher D. Luísa de
Alcáçova, sendo Bernardim filho de Álvaro Pires de Távora e de D. Joana
da Silva, atrás mencionados, os quais foram também os ascendentes dos
condes de São João da Pesqueira e marqueses de Távora seus
representantes opulentíssimos.
Deste segundo matrimónio
teve Francisco de Tavares o número bonito de dezasseis filhos: sete
varões e nove fêmeas. Destas só casou D. Luísa de Távora com Pedro
Guedes, 8.º Senhor de Murça; as restantes foram freiras em diferentes
conventos. Dos varões não precisamos para este estudo citar mais do que
três. São eles: Pedro de Tavares, o sucessor, Bernardim de Tavares e
Távora, fronteiro em Ceuta, e o cónego da Sé de Lisboa, António de
Tavares e Távora. Se Francisco de Tavares se não mostrou um grande
entusiasta pelo Prior do
/ 284 /
Crato que em sua casa hospedou, se transigiu com o 1.º dos Filipes,
humilhando-se até ao ponto de pedir que lhe perdoasse ter hospedado o
pretendente D. António, aclamado rei em Santarém, se até, como
escreveram FERNANDES TOMAZ e MARQUES GOMES, ele e Rui Pereira, senhor de
Ílhavo, concorreram poderosissimamente «embora tão ocultamente que
ninguém deu por tal» para que a, aclamação de Felipe I se
realizasse, a verdade é que seu filho, o cónego António de Tavares,
desenxovalhou, se enxovalho houve, o sangue nobilíssimo dos Tavares que
nas veias lhe corria. Encontra-se que este faleceu de provecta idade em
16 de Fevereiro de 1642 (História Genealógica da Casa Real, Tomo
VIII, pág. 5 das Advertências e Adições). Aceitemos como provável para
seu nascimento o ano de 1562, apenas para fixar ideias. Sabe-se que foi
prior das Astureiras. Por morte de EI rei D. Henrique seguiu (porque
naturalmente foy mui Portuguez, comenta D. ANTÓNIO CAETANO DE SOUSA na
História Genealógica da Casa Real) o partido de D. António, Prior
do Crato. Acarretou-lhe esta decisão trabalhos e sofrimentos.
Emigrando para Roma, aí foi
preso por ordem papal a instâncias do Embaixador de Espanha, e enviado
para São Lucar de Barramêda onde na prisão permaneceu até 1613. Neste
ano foi solto e declarado inocente por um breve pontifício. Para obter a
sua libertação apareceu sua mãe D. Joana de Távora em Valhadolid no ano
de 1604 diante de EI rei, matrona já no cabo da vida. Durou pois o
cativeiro de seu filho pelo menos nove anos; de 1604 a 1613. Depois de
solto, com boa diplomacia, lhe fez Felipe II grandes mercês e lhe deu o
cargo de Esmoler-mor deste Reino, que exercitou muitos anos. Pelo mesmo
tempo teria a mercê de cónego da Sé de Lisboa, na cadeira de Mafra que
era da apresentação da Casa de Penela da qual descendia porque sua
visavó D. Joana da Silva era filha dos primeiros Condes de Penela, da
família Vasconcelos. Nestes elevados cargos deve ter sucedido a seu tio
materno Pedro Lourenço de Távora, doutor em Teologia e o primeiro
Porcionista do Colégio Real de Coimbra, em que entrou em 2 de Maio ele
1563, e já havia sido colegial em um dos colégios de SaIamanca. Este
Pedrp Lourenço, além de cónego e Esmoler-mór de Felipe II, foi deputado
da Mesa da Consciência e Ordens e Prelado de Tomar. EI rei D. João IV,
operada a restauração, encheu de recompensas ao cónego António de
Tavares, veterano da independência, que morreu eleito Bispo depois de
uma vida cheia de virtudes, tendo sido homem de grandes letras,
autoridade e estimação, grande investigador de antiguidades, escrevendo,
entre outras obras, uns excelentes comentários ao Nobiliário do Conde
D. Pedro. Voltemos a D. Joana de Távora que deixámos em Valhadolid.
Se foram anos longos e pacíficos aqueles que Francisco
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de Tavares gozou de vida, não foram tais os de D. Joana sua mulher, «querendo
Deus assignalar assim, diz FREI LUÍS DE SOUSA, uma virtude
mocissa com montes de trabalhos angustias e desconsolaçães, e em fim
permittindo que acabasse seus dias por terras alheyas.» Matriarca de
tão grande família, por morte de seu marido e acomodação de seus filhos
e filhas, ficou apenas acompanhada e servida pelo seu último filho
António de Tavares, que pouco depois foi perseguido e encarcerado em
Castela como atrás ficou referido. Pôs-se a caminho de Valhadolid, onde
fez lástima a toda a Corte esta matrona gravíssima, desterrada no cabo
da vida. Liam-se-lhe no rosto as dores cruciantes motivadas pela longa
viagem precedida e acompanhada de tantas lágrimas, sobressaltos e
aflições. E tanto cresceram que em poucos dias lhe tiraram a vida,
falecendo dentro de um mês depois da chegada. Seria pois pelo ano de
1604 ou princípio de 1605. Amortalhada no hábito franciscano, puseram-na
em um grande caixão que atestaram de terra, porque acertou de faltar
cal, pois tudo falta a um desterrado como filosoficamente observa o
mesmo FREI LUÍS DE SOUSA que tudo sugestivamente nos relata. Foi
depositada no Capítulo dos frades de S. Francisco de Valhadolid,
pertencente aos Duques de Sessa.
E continua assim: «Foy
grão caso que acabou Dona Joana morta o que porventura não acabaria
viva.......... Isto experimentou bem Antonio de Tavares na morte de sua
mãy, tendo na terra tudo contra sy: em fim sahio com honrada sentença,
solto, e livre.» Foi isto em 1613, como atrás ficou indicado, e logo
por 1614 tratou o bom filho de se mostrar agradecido a tal mãe,
ordenando que viessem seus ossos descansar em terra de Portugal. Não
alteremos porém uma só palavra, ou uma só vírgula, do relato que segue
copiado da «Segunda parte da Historia de S. Domingos reformada em
estilo e ordem, e amplificada por Fr. LUlZ DE SOUZA».
Entendamos reverentemente e
comovidamente:
«Mandou criados,
dezenterrou-se o caixão com hum solemne officio de defunctos. Descuberto,
onde esperavão achar ossos secos, e mirrados de dez annos, achouse hum
corpo inteiro, não gastado, nem comido em parte nenhuma: sem apparecer
rasto, nem sinal do habito, e mortalhas em que fora enterrada, que tudo
estava consumido. Chamarãose por honestidade duas Freiras terceiras, que
a portas fechadas alimparão da terra, e vestirão de camiza, e habito, e
o passarão a hum Baul, em que havia de caminhar. Neste estado o vio
Communidade dos Frades, dando graças ao Senhor por tão grande maravilha.
Nota-se, que palpado por sima do habito, se sentia a carne muy cheya, e
solida, e dura: e da mesma sorte estava a que se descobria em mãos, e
pés, e não espantava menos, que estava tão mocisso, e forte, que se
mudava, como se fosse de madeira, e de huma só peça: e juntamente tão
leve, que não deixava fazer juizo se havia alli carne, e osso: porque
totalmente parecia de pena, ou de cana, e
/ 286 /
com estas qualidades lançava de sy hum agradavel cheiro. Estava nesta
conjunção o Conego seu filho em Madrid: e alegre de se ver filho de mây
sancta; mas temeroso de algum vento de vamgloria fez segredo do que fora
rezão se publicara, e authorizara com escrituras, e testemunhos de
muitos olhos: contentouse com lhe fazer novo caixão, forrado por dentro
de setim branco, e cuberto de veludo azul, atravessado de cruz branca,
cravasão, e fechaduras douradas, pera o trazer á sua Capella com toda a
veneração devida. Ao trocar dos caixoens, quiz o Senhor mostrar nova
maravilha: permittio que ouvesse engano na medida do ultimo; de que
nasceo, que ao recolher do corpo se lhe quebrarão alguns dedos dos pés,
nos quais se enxergava huma côr vermelha de carne, ou sangue descorado.
Mas porque não ouvesse duvida, em ser sangue puro, e liquido, succedendo
com as mudanças dividirse a cabeça do corpo, ficou junto do peito tinta
a camisa de muitas manchas de hum sangue deslavado, mas claro, e com
huma viveza de grande espanto. N'esta fórma, e estado, foy levado a
Aveiro por seu filho, que de caminho o mostrou em Cabeça de Vide a Dona
Joanna de Tavora, néta da Sancta, e mulher de Luis de Miranda Henriques
Estribeiro mór d'el Rey em Portugal, e a toda sua familia, e em Coimbra
a muitas parentas, que tinha no Mosteiro de Cellas. E ultimamente foy
visto, e considerado com muito vagar, e admiração, por toda a
Communidade das Religiosas de Jesu de Aveiro, e muitas pessoas
seculares, que se juntarão. E porque não era rezão juntar-se com outros
corpos hum, em que Deos tinha feito tamanha differença, ficou com bom
conselho collocado dentro do presbiterio da parte do Evangelho. Quando o
Ceo testemunha, offensa fará a terra em querer tambem dar seu voto.
Muito poderamos dizer da rara bondade, e vida inculpavel d 'esta
Matrona. De tudo nos desobriga o prodigio referido.»
Repousará ainda esta
nobilíssima senhora, fidalga e santa, no seu caixão de veludo azul
forrado a setim branco, mantendo perene o milagre do sangue vivo e o
corpo inteiro, leve como pena, com essa leveza, integridade e viveza que
assombrou os fidalgos, os religiosos, e o povo de há mais de três
séculos?
Velariam os anjos até hoje
por essas fechaduras douradas com que a piedade filial de António de
Tavares quis proteger o tesoiro do cadáver de sua mãe sob a cruz branca
com que de certo quis simbolizar a sua vida de pureza, de bondade
extrema, e de sacrifício? Assunto é para averiguar.
Tratei do cónego António de
Tavares; agora escreverei acerca de Pedro de Tavares, seu irmão mais
velho. Pelos dados conhecidos das vidas de seus pais e da sua própria,
pode colocar-se a época do seu nascimento, sem receio de grande erro, no
ano de 1558. Na lista dos Moços Fidalgos de EI rei D. Sebastião
referente ao ano de 1576, figura como tal Pedro de Tavares com 1$000
reis de moradia por mês e
/ 287 /
um alqueire de cevada por dia, como pode ver-se no «Tomo VI das
Provas da História Genealógica da Casa Real, a pág. 141.»
Ainda em vida de seu pai,
houve este fidalgo ilustríssimo o senhorio de Mira que o mesmo lhe
dispensou. Teve dele confirmação por carta de 4 de Dezembro de 1596. Foi
assim o 4.º Senhor de Mira e herdeiro da casa de seus antepassados, à
excepção do Mordomado de Coimbra, que se deu à Casa ducal de Aveiro.
Passou à Índia em 1576 com seu tio Rui Lourenço de Távora, irmão de sua
mãe; quando este para lá foi nomeado Vice-rei, elevadíssimo cargo que
não desempenhou por ter falecido em viagem junto a Moçambique, onde teve
sepultura. Pedro de Tavares casou na Índia, e teria sido por este tempo,
com D. Adriana de Sousa já viúva de Jorge da Silva Pereira, filha de
Francisco da Silva e Sousa Corte-Real e de sua mulher D. Maria de Abreu.
Sem dúvida com sua esposa viveu, pelo menos temporariamente, em Mira,
como se depreende de um manuscrito coevo existente na Biblioteca do
Porto (Ms. n.º 262, 2.ª parte, fl. 205). No ano de 1608 sofreram Pedro
de Tavares e sua esposa uma importante quebra nos seus rendimentos com
uma sentença lavrada a favor de El Rei em 20 de Junho daquele ano,
julgando-lhe a dízima do bacalhau que entrasse na vila de Aveiro e em
Esgueira. Seria interessante o estudo deste documento existente no
Arquivo da Torre do Tombo, pelo qual ficou excluída a dízima do bacalhau
do dizimo do pescado pertencente aos de Tavares como atrás ficou
declarado.
Pedro de Tavares que como o
seu irmão o cónego António de Tavares devia ter sido aplicado à
Genealogia (assim o entende D. ANTÓNIO CAETANO DE SOUSA, no Aparato
da sua História Genealógica da Casa Real) teve do seu casamento duas
filhas que se chamaram D. Leonarda e D. Joana. Já devia tê-las quando em
1596 se lhe confirmou o senhorio de Mira, e já deveria pensar que do
matrimónio não teria mais descendência, porque, de certo a seu pedido, a
mercê lhe foi feita de juro e herdade com duas vidas fora da Lei Mental.
Em Arões, do concelho de Cambra, de uma sua parente afastada, teve um
filho bastardo, Pedro também, que foi Moço da Câmara Real e dos 40 do
serviço do Paço, e depois Escudeiro e Cavaleiro Fidalgo com 1:100 reis
de moradia e um alqueire de cevada por dia, o qual prestou em Angola
valiosos serviços e foi o chefe dos Tavares de Arões com nobilíssima
descendência. Encontro a noticia de que Pedro de Tavares, 4.º Senhor de
Mira, faleceu em Março de 1626. Sua filha D. Leonarda casou duas vezes:
a 1.ª com seu primo direito António de Tavares, filho de seu tio
Bernardim de Tavares e Távora, o fronteiro em Ceuta que atrás ficou
memorado e de sua mulher D. Mécia de Mascarenhas. Creio que D. Leonarda
e marido foram os 5.os Senhores de Mira, e este
casamento de certo visaria a manter na Casa
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de Mira a varonia dos Tavares. Viuvando D. Leonarda sem 'descendência,
teve a má sorte de casar segunda vez com D. Jorge de Meneses, 6.º filho
de D. Diogo de Meneses, morgado da Fonte Santa e comendador de Santa
Maria de VaIada, Governador e Capitão General do Brasil. Também não
ficou descendência deste matrimónio, tão infeliz que D. Jorge matou sua
mulher sem causa, fugindo para Castela onde morreu frade de S.
Francisco. Assim o conta MANSO DE LIMA no seu Nobiliário, Título
de Meneses.
Sucedeu sua irmã D. Joana de
Távora que não casou. Teria sido esta a 6.ª donatária do Senhorio de
Mira, e assim se teria verificado a 2.ª vida mencionada na dispensa da
Lei Mental. Por sua morte, tenho por certo que o senhorio reverteu para
a Coroa.
Aqui termina a 1.ª dinastia
dos Senhores de Mira que prendeu a minha atenção e o meu tão demorado
como acurado estudo, para a organização deste trabalho.
A 2.ª dinastia, de certo por
nova doação régia, teve início em Bernardim de Sousa Tavares, filho de
Luís Freire de Sousa e de sua mulher D. Joana de Távora, natural de
Lagos, e neto por esta de Bernardim de Tavares, o fronteiro de Ceuta, e
de sua mulher D. Mécia de Mascarenhas, que em Lagos viveram também.
Bernardim de Sousa Tavares, que assim teve o Senhorio de Mira que fora
de seu bisavô Francisco de Tavares, residia em Lisboa no Campo Grande e
foi Governador de Mazagão, e familiar do Santo Ofício por carta de 6 de
Junho de 1679. Nobilíssima e preclaríssima foi e continua sendo, a
descendência dos Senhores de Mira, e especialmente a de Bernardim de
Sousa Tavares, actualmente representado por Sua Excelência o Senhor D.
Duarte Bernardo Baltasar Manuel, 7.º Marquês de Tancos e 13.º Conde de
Atalaia. Para outra vez ficará o relatá-lo. Hoje por aqui me quedarei,
relembrando satisfeito a consoladora e piedosa quadra que tanto eleva e
tranquiliza o meu espírito, e da qual tirei a minha divisa:
E as estrelas cintilantes
Dos Tavares, na terra e céus,
Brilham sempre como d'antes,
Entregues «nas mãos de Deus!»
Casa de Ramalde, Julho de
1938.
D. FERNANDO DE TAVARES E
TÁVORA
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