Padre Miguel A. de Oliveira, Talábriga, Vol. IV, pp. 117-120.

TALÁBRIGA

SABEMOS pelos antigos geógrafos que existiu perto do rio Vouga uma cidade com o nome de Talábriga. O texto mais explícito é o de PLÍNlO:

«A Durio Lusitania incipit : Turduli veteres, Paesuri : flumen Vacca . Oppidum Talabrica . Oppidum, et flumen Aeminium» (CAII PLlNII secundi Historiae Naturalis libri XXXVII, liv. 4.º, XXV, ed. de João Harduíno, Paris, 1723).

O ltinerarium chamado de ANTONINO menciona Talábriga na via militar de Lisboa a Braga, à distância de 40 milhas de Emínio e 18 de Langóbriga.

Com estes elementos tiveram de se contentar quantos até hoje tentaram resolver o problema da localização dessa velha cidade. Salientemos para a devida homenagem o falecido investigador Dr. FÉLIX ALVES PEREIRA e o seu consciencioso trabalho Situação conjectural de Talábriga (Lisboa, Imprensa Nacional, 1907).

E que saberemos nós da história dessa cidade? Talvez nada. Vejamos, no entanto, o famoso capítulo de APlANO ALEXANDRINO que todos têm referido à Talabriga do Vouga. Para melhor entendimento, convém começar no capítulo anterior:

«LXXII. Deinde trajecto Durio flumine, multa loca bello longe lateque pervagatus, ab omnibus, qui in deditionem veniebant, magno numero obsidum accepto, ad Oblionis, qui dicitur, fluvium perrexit Brutus, eumque Romanorum primus superavit. Inde ad Nimin [Nebin? an Minium?] aliud flumen progressus, quum commeatus, qui ei subvehebatur, esset a Bracaris direptus, adversus Bracaros duxit. Et haec gens bellicosissima est, et hi quoque mulieres armatas secum in pugnam ducebant; et adeo fortiter pugnabant omnes, ut praesentem mortem potius occumberent, quam aut terga verteret quisquam, aut vocem ullam indignam emitteret. / 118 / Quin etiam ex mulieribus, quae interceptae reducebantur, aliae sibi manus afferebant, alliae suosmet ipsae liberos jugulabant, mortemque servitio potiorem censebant. Oppida tamen aliquot in Bruti potestatem deditione venerunt : quae quidem nom multo post rursus desciscentia, ab eodem de integro sunt perdomita .

LXXIII. Inter alia Talabriga oppidum fuit, quae, saepius rebellarat. Eo veniens Brutus, supplicantes oppidanos, et sese ejus arbitrio permittentes, primum transfugas Romanorum et captivos armaque omnia, adhaec obsides, tradere jussit: deinde, ut cum uxoribus ac liberis urbe migrarent, imperavit. Quod et ipsum ubi facere sustinuerunt, circumfusis copiis eos includens, orationem habuit, qua quoties defecissent, quoties quanto conatu bellum renovassent, edisseruit . Ita metu illis injecto, atque opinione, quasi gravius in eos animadversurus esset, tamen intra objurgationes istas iram terminavit. Equis et commeatu et pecuniis publicis, cum reliquo publico apparatu, ademtis, oppidum illis praeter spem, habitandum reddidit. Post tantas res gestas Brutus Romam rediit», (APPIANI ALEXANDRINI Romanarum Historiarum quae supersunt graece et latine cum indicibus; Parisiis, Editore Ambrosio Firmin Didot, MDCCCXL; liv. VI, De Rebus Hispaniensibus).

APlANO fala das guerrilhas que se formaram na Lusitânia depois da morte de Viriato e conta como Roma enviou contra elas o cônsul Décimo Júnio Bruto. Descritas as campanhas da Lusitânia, entre o Tejo e o Douro (cap. 71), narra o que se passou ao norte deste rio:

«72. Depois, atravessado o rio Douro, tendo passeado as suas armas por muitos lugares distantes e recebido grande número de reféns de todos os que se rendiam, Bruto encaminhou-se para o rio chamado do Esquecimento(1) e foi o primeiro dos Romanos a transpô-lo. Avançando dali para outro rio, o Minho(2), como os Brácaros lhe roubassem os mantimentos que consigo transportava, marchou contra os Brácaros. São estes um povo belicosíssimo, e até levavam consigo a combater mulheres armadas; e todos lutavam com tal intrepidez, que preferiam arrostar a morte a volver costas ou soltar um grito de covardia. Mais ainda: algumas das mulheres que eram apanhadas matavam-se por suas mãos, outras assassinavam os próprios filhos e julgavam preferível a morte à servidão. Alguns ópidos vieram, todavia, a submeter-se ao poder de Bruto e, embora se / 119 / rebelassem pouco depois, foram por ele inteiramente dominados.

73. Foi o ópido de Talábriga um dos que mais vezes se rebelaram. Vindo lá, como os habitantes lhe implorassem clemência e oferecessem submissão, Bruto começou por mandar que lhe entregassem, além dos reféns, os Romanos trânsfugas, os cativos e todas as armas: depois ordenou que saíssem da cidade com as mulheres e os filhos. Apenas eles se dispuseram a cumprir essa ordem, cercou-os de tropas e dirigiu-lhes um discurso em que os advertiu de que as suas rebeliões só poderiam reacender a guerra e cada vez mais violenta. Tendo-lhes assim incutido temor e a ideia de mais séria revindita, descarregou no entanto a sua ira nestas objurgatórias. Tirou-lhes os cavalos, os mantimentos, os dinheiros públicos e os restantes apetrechos, mas deixou-lhes para moradia o ópido com que já não contavam. Depois de tantos feitos, Bruto regressou a Roma».


«Quando li este trecho de APlANO − diz F. ALVES PEREIRA − Confesso que senti amargura por não podermos ainda ir conversar na região do Vouga com as ruínas da cidade onde estes sucessos cruéis se desfiaram, e segredar às cinzas daquele abrasado patriotismo que o mesmo sentimento, que chamejou nesses lusitanos insofridos, ainda se não arrefentara com o soprar sobre elas de vinte vezes cem invernos, e em mais de um dia, já da nossa existência nacional, ele se tem ateado em protestos bem túmidos de calor».

Sob o aspecto patriótico, tanto importa que tais factos ocorressem na região do Lima como na do Vouga. Parece, todavia, um pouco estranho que o erudito investigador se lembrasse de consultar APlANO a propósito de uma ara encontrada na região do Lima e não visse que o texto do historiador o encaminhava igualmente para lá.

«N um dos primeiros anos do século actual apareceu na igreja de Estorãos, concelho de Ponte do Lima, ao fazerem-se obras no altar-mor, uma ara granítica [...] cuja inscrição diz: Camala! Arqui f (ilia), Talabrigensis, Génio Tiavranceaico (vel Tiaurauceaico) v (otum) s (olvit) l (ibens) m (erito), em português: «Camala, filha de Arquio, de Talábriga, cumpriu de boa vontade e com razão o voto que havia feito ao Génio Tiauranceaico (vel Tiaurauceaico»(3) / 120 /


Bastava o texto de APlANO para concluirmos que a sua Talábriga era um ópido dos Brácaros. O capítulo 73 é uma continuação do anterior, cuja acção decorre no Alto Minho. Se nessa região aparece a relíquia arqueológica da piedade de uma talabrigense, mais um motivo para não procurarmos em outra parte essa Talábriga; não era, aliás, muito natural, que nesses tempos se expatriasse para as margens do Lima uma família pertencente a um ópido do Vouga.

Temos, pois, em meu entender, duas Talábrigas: a de PLÍNIO e do Itinerarium, na região do Vouga; a de APlANO e da ara, na região do Lima.

P.e MIGUEL A. DE OLIVEIRA

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(1) −  Léthen no texto grego ao lado; trata-se do do rio Lima  

(2)Nímios no texto grego; os críticos propõem a emenda para Miniou

(3) −  J. LEITE DE VASCONCELOS, Religiões da Lusitânia, III, 199.

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