Padre Miguel A. de Oliveira, A vila de Ovar. Subsídios para a sua história até ao séc. XVI. A gelfa, Vol. III, pp. 125-132.

A VILA DE OVAR

SUBSÍDIOS PARA A SUA HISTÓRIA ATÉ AO SÉCULO XVI

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A GELFA

TODA a faixa compreendida entre a ria e o mar, a norte da foz do Vouga, pertenceu desde antigos tempos ao termo de Ovar. O deslocamento gradual da barra para sul deu lugar a que se dilatasse por esse lado o senhorio administrativo e eclesiástico da vila, até entestar com Mira.

Em princípios de Dezembro de 1757, abriu-se um regueirão «pelo sítio do forte velho em direitura ao mar», «e porque poderia em algum tempo ser ou parecer Barra», houve o cuidado de exarar em documento público que o termo de Ovar ia até cerca de três léguas mais ao sul, e assinalou-se-lhe o limite com um marco de pedra de esquadria. Nesse documento, ficou também ressalvado «o direito que a todos os lavradores assiste da sua gelfa». Não tardou, porém, que fosse arrancado o padrão e que se proibisse aos lavradores de Ovar trazerem os gados da gelfa para além da ermida de Nossa Senhora do Bom Sucesso da Torreira. Eram os primeiros passos para a redução dos domínios ovarenses, castigada em duras palavras por JOÃO FREDERICO, nas Memórias e Datas.

Interessam-nos estes pormenores para a identificação da Gelfa dos antigos documentos, pois aquela faixa litoral veio a mudar de aspecto e os gados tiveram de procurar outro campo de pastagem.

Era a Gelfa propriedade reguenga que os reis aforavam a particulares. A propósito aqui vai mais um documento em latim, para desconto dos pecados de alguns leitores pouco devotos da língua-mãe. É de 4 de Fevereiro do ano de 1283 e diz, em resumo, que D. Dinis afora a Gelfa a Pedro Bermudes (ou Vermuiz) por cinco libras anuais. / 126 /

KARTA DUUM MONTE QUE IAZ EM TERMHO DE CABANÕES O QUAL CHAMAM GELFA. Nouerint uniuerssi quod ego domnus Dionisius dei gratia Rex Portugaliae et Algarbij do et concedo ad forum Petro uermudij illum meum montem qui iacet in termino de Cabanoes qui uocatur Gelfa tali pacto quod ipse teneat illum in uita sua et det mihi per montado de conelio et per pascuis de ganatis annuatim quinque libras in denario et non possit illum alienare ullo modo. ln cujus rey testimonium do ei istam cartam. Data Elbore .iiijª. die Februarii Rege mandante per domnum Nunum suum maiordomum et per cancellarium. Jacobus iohanis not. Eª. Mª.CCCª.XXlª (Livro I de Doações de D. Deniz, fl. 64)

O mosteiro de Grijó tomou depois a Gelfa pelo mesmo foro anual de cinco libras, e lá trazia a pastar numerosas cabeças de gado, éguas, bois, vacas e porcos, em que fez grosso desbaste a epidemia de 1348, chamada «a mortandade grande». Essa epidemia, que em Portugal durou uns três meses, causou grandes estragos nesta região (Arquivo do Distrito de Aveiro, tom. I, pág. 154). Em 1355, foi o mosteiro demandado por 35 libras de foros atrasados desde «o tempo da pestelensa», mas conseguiu compor-se com o almoxarife de el-rei, pagando apenas uns tantos soldos por cabeça (Tombo do Mosteiro de Grijó, I, fl. 242-245).

Já então fora a Gelfa invadida por gados não pertencentes ao mosteiro, e talvez desde aí começassem os lavradores de Ovar a considerá-la como logradouro comum. Apesar de prolixo, é extremamente curioso o «stromento» de composição entre o Prior de Grijó e o primeiro invasor, no ano de 1354.

«Sabham todos quantos este stromento virem que demandas e contendas heram e esperavam aa ser perante Affonço Domingues Juis de Cabanões antre Dom Domingos Bertollameu Priol do Moesteiro de Igrijoo por si e pello dito seu Moesteiro da huma parte e Roy Coelho escudeiro morador em Rollaães dapar de affeira terra de Santa Maria da outra parte por razam que ho dito Priol dizia que el e o dito sseu Moesteiro haviam e pessuhiam pouzadas e companhas degoas e de poldras que el e o dito sseu Moesteiro tragiam e que pessuhiam todalas que andavam nos lugares que chamam a Reelva e Estromeira e Porrida e Vimas e em todolos outros lugares delafos de Vouga ataa ho Huradoiro que hera no julgado de Cabanães que passava por des e vinte e quarenta e secenta annos estes mais chegados chamadas e havudas e nomeadas por do dito Moesteiro andando por ssuas e dizendo ho dito Priol que hora novamente o dito Roy Coelho per sa outoridade em este anno que hora anda da era de mil trezentos e noventa e dous annos ffora correr por si com seus homeins e amigos aas ditas gelfas as ditas Egoas e Poldras e as correra e enserrara e tomara ende e mandara ende thomar / 127 / dellas tres Poldras e as ouvera em si. E o dito Roy Coelho dizia que verdade hera que el por si e com seus homens e amigos fora aas ditas gelfas hu as ditas Egoas e Poldras andavam e que correra e mandara correr as ditas egoas e poldras que nas ditas gelfas andavam e que tomara as ditas poldras mais dizia que as correra e tomara ende as ditas tres poldras porque dizia que as ditas Egoas e poldras heram suas e havia em ellas direito e tinha a posse dellas e outras muitas rezois que por cada huma das ditas partes heram rezoadas e as ditas partes por partirem dante si muitos preitos e demandas e perdas e damnos que se pellas ditas rezois se poderiam recrecer vieram aa tal avença e amigavel compoziçom que ho dito Priol e o dito seu Moesteiro hajam pera todo sempre a ameatade das ditas egoas e poldras que hora nas ditas gelfas andam e que hi Deos der daqui em diante sem embargo nenhum e que outro si o dito Roy Coelho e todos seus sucessores hajam pera todo sempre ha outra meatade das ditas egoas e poldras que hora nas ditas gelfas andam e Deos hi der daqui em diente e demais as sobreditas partes quizeram e outorgaram que quando cada huma das ditas partes por si ou por seus mandados certos e sucessores adiante quizerem correr ou tomar as ditas egoas e poldras ou alguma parte dellas que o fezecem saber ante aa outra parte e que a tomada e custa das ditas egoas e poldras foce de permeyo e acontecendo que cada huma das ditas partes quizece correr e tomar as ditas egoas e poldras ou parte dellas e a outra parte nom quizece alIo hir que a parte que as quizece correr e thomar que vaa e corra e tome por tal giza que fique igualdade aa outra parte doutro tanto que quando as quizer thomar que haja igualdade e entrega doutro tanto. E outro si as ditas partes quizeram e outorgaram que se pella ventura em algum tempo algumas pessoas quais quer ffaçam ou queiram fazer algumas demandas pera haverem as ditas egoas e poldras ou parte dellas por qual razam quer que seja que ambalas partes ou seus sucessores sse pararem aas ditas demandas e as defendam aas custas dambalas partes e de permeyo e se algumas pessoas vencerem alguma parte das ditas egoas e poldras que ho que vencerem que ho aja tambem da huma parte come da outra, e de permeyo asi como as ambalas partes partem e as ditas partes e cada huma dellas prometerom a teer e a guardar estas coussas sobreditas e a cada huma dellas e a nom hirem contra ellas em parte nem em todo so pea de quinhentas libras de dinheiros portuguezes em nome de pea que aquel que as nom tever nem guardar as peite aaquel que as tever e aguardar a qual pea pagada ou nom todavia este stromento estar em sa firmidom como de susso dito he e pera esto o dito Roy Coelho por si e por todos seus sucessores obrigou todos seus beês movis e rais havidos e por haver e o dito Priol por si e pello dito seu Moesteiro pera esta obrigou todos seus beês movís e rais e os do dito seu Moesteiro / 128 / tambem movís come rais havudos e por haver e as ditas partes e cada uma dellas pediram ao dito Affonço Domingues Juis que a esto prezente estava que por sentença julgace e afirmace estas coussas sobreditas e cada uma dellas e o dito Juis de prazer das ditas partes asi o julgou como de susso dito he conteudo: feito foi esto em Cabanões sinque dias de Dezembro era de mil e trezentos e noventa e dous annos testemunhas Joam Martins Abbade do dito logo, Fernam Paes cavalleiro, Nicollaao Ramos do Porto, Francisco Pires doVar, Bertollameu Affonço, e Martim Annes homens do dito Priol, Gonçalo Pires vestiairo do dito Moesteiro e outros e eu Francisco Annes taballiam de nosso Senhor EIRey no dito logo que a esto prezente fui e por mandado e outorgamento e requerimento dos ditos Priol e Roy Coelho este stromento e outro de tal theor escrevy pera cada huma das ditas partes e aqui meu sinal fis que tal he // Lugar do sinal publico // Pagou des soldos com seu registo» (Tombo do Mosteiro de Grijó, III, fls. 94 v. a 96).


DIVERSAS PROPRIEDADES DE GRIJÓ

Pelos documentos anteriormente publicados, vê-se que era o mosteiro de Grijó um dos que possuíam mais extensas propriedades no termo de Ovar. O cuidado que seus cónegos tiveram de lhes guardar o registo, se já hoje não aproveita ao mosteiro, volveu-se para os investigadores de antiguidades em preciosa colaboração. Percorrendo os livros agora guardados no Arquivo Nacional, encontrei mais alguns elementos sobre pessoas e lugares, de que vou dar sumária nota, por ordem cronológica, porque podem ser úteis a quem se proponha fazer a monografia da vila de Ovar, para a qual são apenas contributo estes «subsídios».

Ano de 1143 «Uniscu menendiz» doa ao mosteiro metade duma herdade que tinha ganhado com seu filho «Garsia pelaiz», «in uilla cabanones subtus mons recarei discurrente riuulo Ouar territorio portugalensi», «et sexta de ipsa uinea de illo auteiro».

Era de 1181, mês de abril (Baio Ferrado, fI. 28).

 «Gunsaluus pelaiz et uxor mea bona pelaiz» doam ao mosteiro metade «de hereditate quam habenus in uilla cabanones de parte auorum parentumque nostrorum seu de gaantia».  Era de 1181, mês de maio (Baio Ferrado, fI. 28 v.).

Ano de 1147. −  «Fernandus pelaiz» faz doação a Grijó «de omni illa mea hereditate quam habeo in ouar et de mea parte illius ecclesie sancti christofori de cabanoes».  −  Era de 1185, mês de abril (Baio Ferrado, fI. 24 v.).

 «Eluira pelaiz» faz idêntica doação, na mesma data (Baio Ferrado, fI. 22).

Ano de 1240.  −  «Jullianus Juliani et uxor mea Donna Sancia» / 129 / vendem a D. Pedro, prior de Grijó, a herdade que possuem «in terra Sanctae Mariae in uilla quam uocitant Cabanões in loco qui dicitur Sandi», «et illam leiram quae uocatur de Bernalda pro precio quod a uobis accepimus scilicet qúinque libras et dimidiam denariorum portugalensis monete».  Era de 1278, mês de janeiro (Tombo do Mosteiro de Grijó, I, fl. 261).

Ano de 1312.   «Eu Joham Vermois doVar conosco e confesso que deve aaver ho Moesteiro de Grijoo do Moyo (moinho) doVar sinco soldos cada anno e de toda a vinha de so esse Moyo e da almoya e de toda essa cortia o dito Joham Vermois dice que era ende o quarto do dito Moesteiro». Feito o documento «na Eigreja de Cabanois», a 5 de setembro da era de 1350. Entre as testemunhas, «Lourensi Annes Abbade da dita Eigreja» (Tombo ref., I, fl. 235).

Ano de 1317.  −  Gomes Peres escudeiro e sua mulher desistem duma demanda que traziam com o mosteiro por bens herdados de Martim Rodrigues cavaleiro da Torre. Fala «no logar que chamam Cortegassa, e no Logar que chamam Cabanães e no logar que chamam Ovar e no Logar que chamam o cazal e gondezinde e a mamoa».  −  Era de 1355, 3 de junho (Tombo ref., I, fls. 237-239 v.).

Ano de 1324.  −  «Domingos Johanes dito cego vezinho de Cabanões emsembra com mha mulher Maria Peres» fazem doação a Grijó «do nosso terreyo que jas no cortinhal que trage o gago em sauia da villa de Cabanões». «Feita foi esta carta em Cabanões na estrada», 9 de julho da era de 1362 (Tombo ref., I, fl. 246).

Ano de 1327.  −  «Sentença porque consta que Martim Nogueira cavalleiro e seu Irmão Gonçallo Gonçalves demandaram ao Mosteiro por huns serviços que lhe tinha deixado Martim Rodrigues da Torre e o Mosteiro lhe largou os de Ovar e de outros lugares».  −  Era de 1365, a 30 de janeiro (Tombo ref., I, fls. 235-237).

Ano de 1368.  −  «Sentenças por onde forão condemnados Francisco Arrigo a que pagace ao Mosteiro hum dia de geira cada anno porque trazia huma herdade chamada a cortinha morta no Lugar da Arruela e outros três homens a que tambem pagacem geiras na marinha do Mosteiro ou thomacem as Egoas». Na referida herdade morava Stevam Caambres, e os três homens chamavam-se Joam de Silvalde, Domingos de Parada e Christovo doVar.   Era de 1406, a 2 de fevereiro (Tombo ref., I, fls. 240-241).

  «Sentença porque se mandou thirar humas tapaduras com que se empedião as entradas e sahidas de dous cazais do Mosteiro no lugar da Arruela». Foi o caso de Stevam Caambrees ter mandado «fazer hum emcortinhado» para semear cebolas, tapando a entrada aos casais de outros foreiros do mosteiro.  −  Era de 1406, a 10 de fevereiro (Tombo ref., I, fls. 241-242). / 130 /

Ano de 1444, a 14 de Maio.  −  «Sentença sobre as tapagens da Agra e Lavoura de Cabanões em demanda que houve entre o vestiairo deste Mosteiro e hum homem que trazia cazais delle. Julgouce que os ditos cazais e não a pitansa focem obrigados às ditas tapagens». O homem era um tal Rodrigo Ayres ou Ayrras e recusava-se a tapar com sebes terras do mosteiro e a roçar os matos (Tombo ref., I, fls. 246-248).

Ano de 1458, a 15 de novembro.    «Sentença que o Mosteiro alcansou contra o concelho de Cabanões pera que este fizesse tapar as herdades do Mosteiro como antigamente se tapavão». Foi o caso de alguns moradores de Cabanões mudarem as tapagens das terras do mosteiro, que antes eram «per hu chamam a do Rebollo casi a redor», e as fazerem mais pequenas «per hu chamam a correga que parte pella carreira como vai ataa Sande», deixando algumas terras de fora (Tombo ref., I, fls. 248-250 v.).

  Sentença de el-rei D. Afonso V, da qual consta que o mosteiro de Grijó tinha «na freiguezia de Cabanões quatorze casaais isentos e hum alfouve de terra, e huma vinha e duas leiras de lavrar pam e hum chaão e na dita freiguezia na aldea da Arruela tres cassaais isentos e em os ditos cassaais avia pescadores que pagavam a nos (ao Rei) nossos direitos e aviam de pagar de cada barca hum cambo de peixe ora trouxecem pouco hora muito» (Tombo ref., I, fls. 374-379 v,).

Ano de 1598.   «Carta de rematação de hum meyo cazal que rematou Diogo Vallente por divida que Catharina Antonia devia ao Mosteiro e este o thomou pera si tanto por tanto». Este casal era «no lugar da Granja termo da vila doVar».  −  Outra semelhante, no mesmo lugar, por dívida de Isabel Fernandes (Tombo ref., I, fls. 250 v.  260 v.).

Ano de 1634.   «Sentença dada entre o Mosteiro e os cazeiros dos seos cazaes de Ações sobre huns montados que elles tinhão tomado e os lavravão sem delles pagarem foros e se compozerão e o Mosteiro thomou posse daquellas tomadias» (Tombo ref., I, fls. 261 v.-267 v.).


OVAR NOS SÉCULOS XII A XIV

Os elementos até agora reunidos permitem bosquejar, a traços embora largos, o quadro da vida ovarense nos séculos XII a XIV.

A freguesia e o julgado chamam-se ainda de Cabanões, designação que só no séc. XV começará a ser substituída pela de Ovar. Tirante a redução da Gelfa, a área da freguesia corresponde à actual. Além da igreja paroquial, dedicada a S. Cristóvão (doc. de 1147), há, pelo menos, duas capelas: a de S. Donato, cuja origem é licito atribuir aos primeiros séculos cristãos, e a de S, Miguel, Conhecemos os nomes de dois abades: Lourenço / 131 / Anes (doc. de 1299 e 1312) e João Martins (1354); menciona-se também um Afonso Pires, capelão (1251). Veremos, porém, mais adiante, os documentos que especialmente respeitam à igreja e à vida religiosa da freguesia.

Dos juízes da terra, estão documentados os seguintes nomes: D. Bermudo (1251), falecido antes de 1260; João Juiães, falecido cerca de 1257, decerto aquele que, com sua mulher D. Sancha, vendeu propriedades a Grijó em 1240; Pedro Domingues (1260); João Pires Leigado (antes de 1284), que fez uma marinha em Matelas; Estêvão Pires (1284), que ainda vivia em 1292; Afonso Domingues (1354). Na inquirição de 1284, mencionam-se três mordomos: Domingos Ferreiro, Pedro Martins e João Vermuiz (este ainda vivia em 1312); e um almoxarife: Tomé Fernandes. Afora aquele D. Bermudo, só nos aparece um D. Tomé (1284), um D. Nicolau e um D. Estêvão Furtado (1260). Os outros não usam senhoria, e a repetição de muitos nomes entre os jurados de diversas inquirições mostra a crise de «homens bons». Convém fixar os apelidos da gente desta época, para os confrontar com os do Foral, no séc. XVI. Certas minúcias, ao parecer insignificantes, também servem para a história. Não deixa de ser curioso saber-se, por exemplo, que na Arruela moravam pescadores, e que lá se semeavam cebolas no séc. XIV, e que por esse mesmo tempo havia em Ovar um moinho e uma vinha, e que na Gelfa pastavam as éguas e poldras de Grijó...

Nos documentos deste período aparecem já os lugares mais importantes da freguesia: Cabanões, Ovar, Sande, Ações, Granja de Ações, S. Donato, Guilhovai, Arruela, Figueira, UIvar (Olival ?), Furadouro.

Ao lado dos reguengos, há numerosas propriedades eclesiásticas e de ordens religiosas: os bispos do Porto têm o couto de S. Donato, com a capela e vários casais; Grijó é grande proprietário de casais; campos e marinhas; a Ordem do Hospital e a de Avis, o mosteiro de Pedroso e o de S. João de Tarouca marcam também a sua presença. Outros se fariam representar: sabemos, por exemplo, que João Guilherme, cónego da Sé de Coimbra, em princípios do séc. XIV legou ao cabido conimbricense uma herdade «in cabanões e en ouar», com a obrigação dum aniversário em dia de Santa Maria de Março (Livro das Calendas, «VI cal. decembris»).

Temos ainda as quintas honradas por pessoas nobres ou ricas: a quinta de Guilhovai, adquirida por Fernão Fernandes Cogominho e sua mulher D. Joana Dias, a qual, junta às de Pereira Jusã e S. Vicente de Pereira, veio a dar origem ao concelho de Pereira Jusã, como se verá em outro estudo; a quinta do Paço, pertencente a Fernão Gonçalves e a Rui Gonçalves Bifardel; a quinta da Arruela, de Rodrigo Afonso da Torre, cavaleiro, talvez residente em Esmoriz. Algumas propriedades pagam foros a fidalgos de Dagarei (Válega) e de Tonce (Loureiro). / 132 / O povo a custo suporta ver-se na dependência de cavaleiros e homens poderosos; prefere pagar os costumados foros ao mordomo de el-rei.

As marinhas parecem estender-se desde perto da capela de S. Miguel para sul e poente até à Ria. Alguns topónimos dificilmente se poderão hoje identificar: onde ficariam as marinhas de Longara, Vermuim, Talhadoiro, Toussa, Ermelo e Sapa? Esta última pertenceu a Pedroso e era privilegiada por haver sido de Paio Airas; origem deste privilégio? Há em Válega, perto da Ria, uns pinhais ainda chamados de Matelas; herdaram talvez o nome das marinhas de João Pires Leigado e do mosteiro de Tarouca.

Os documentos especificam os foros das marinhas e os direitos de pescado, e aludem também à caça de coelhos.

A inquirição de 1260 cita os sucessivos donatários da Terra de Cabanões: rainha D. Mafalda, D. Martinho Afonso e Nuno Peres; a de 1284 diz que «essa terra anda de rico-homem por 200 libras»; não sei bem o que deva compreender-se na posse dos primeiros e no contrato do último.

Na inquirição de 1284 vem, enfim, um pormenor importantíssimo, relativo a Ovar: o dos cabaneiros que dão «por Razom das casaryas» cinco soldos cada ano a el-rei. Temos aqui nada menos que a origem do núcleo urbano de Ovar. A essas «casaryas» do séc. XIII foram-se juntando muitas outras, de modo que no séc. XVI já nos aparece no Foral um «titollo dos portados das casas douar», com a designação dos respectivos possuidores. Os cinco «soldos» de 1284 encontram-se em 1514 traduzidos em «reais» geralmente 9 ou múltiplo de 9: 18, 27, 36. E lá vêm também no Foral as nossas conhecidas vinhas e alfobres e cebolas, e até o moinho de João Vermuiz...

Para que não reste dúvida de que o direito dos portados, sucessor do das casarias, incidia apenas no núcleo urbano da vila, temos no Tombo da Casa da Feira a «Sentença dos Portados da vila de Ovar», grosso volume em que se mencionam e descrevem todas as casas existentes em 1768, com os nomes dos seus moradores, medição da frente, número de janelas e andares, e foro, devidamente actualizado, que são obrigadas a pagar. Ovar tinha então 1762 casas, quase todas térreas. A Sentença dos Portados é, para o séc. XVIII, o mais minucioso roteiro da vila, que se podia desejar ou imaginar.

As Inquirições, o Foral e o Tombo da Casa da Feira dão-nos, pois, três panoramas da terra ovarense, distanciados uns dos outros pouco mais de 200 anos. Vimos agora o primeiro que, por mais antigo, é naturalmente o menos nítido.

Padre MIGUEL A. DE OLIVEIRA

Continua no vol. IV, pág. 61  ►►►

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