A freguesia de
S. Miguel da Mata, fértil e bem situada, possui uma inesquecível página
na sua história antiga, riquíssima em vetustas preciosidades.
Em épocas
remotas, foi intensamente povoada; e pelas relíquias iconográficas e
arqueológicas que de tempos a tempos se vão descobrindo, pode-se
afirmar que esta terra abençoada é um tesouro inesgotável de curiosas
velharias.
Definir categoricamente a sua
origem e linhagem sem pergaminhos, será
andar em mar revolto, sem remo nem leme, à mercê dos ventos e das
ondas... Há dois ou três anos, procedendo-se à reconstrução da igreja
matriz, sob a orientação dos conjugados esforços do pároco rev. Manuel
de Oliveira, desencantou-se, a dois metros aproximadamente de
profundidade, esta formosa imagem da capela-mor, presumível a do seu orago
S. Miguel.
Pela fotografia vê-se que é digna da melhor conservação, sendo
objecto
de museu.
No meu humilde entender, a imagem é uma escultura da transição do
gótico para o manuelino; portanto, dos fins do século quinze, ou
princípios do século dezasseis (1480 a 1520). Em Portugal o gótico transitou para
o manuelino. Caracteriza-a a cruz do escudo, que não é
a cruz dos Pereiras, Condes da Feira, donatários, mas a cruz manuelina,
floreada, distinguindo-se sobretudo pela prega, isto é, pelo centro,
que, sendo aberto, só é usado no estilo manuelino.
Quanto ao traje guerreiro, é
o representado pelas esculturas da época.
Mas, para melhor história desta veneranda relíquia, vamos
ouvir o parecer que oportunamente me enviou, em 15 de Setembro, o eminente
sábio e distintíssimo arqueólogo Abade de Baçal.
Ouçamo-lo:
/ 134 /
«A estátua é interessantíssima e de boa escola. Porque a enterraram?
Não sei, mas lanço a seguinte conjectura: as leis canónicas e litúrgicas mandam enterrar ou queimar os Santos e alfaias
sagradas inutilizadas para o culto ou impróprias, por inestéticas ou outro motivo, para
ele.
«É certo que na fotografia nada vejo neste sentido, mas bem podia ser
que algum purista, destes que querem ser mais papistas que o papa, visse
na estátua apenas um guerreiro com todos os aprestes e indumentária
impróprios de um anjo (S. Miguel) que, por fim, como tal deve ser manso,
embora os textos o apresentem como batalhador, e... terra com ele.
«Na verdade, tirando-lhe a cruz da extremidade da clava que, a julgar
pela fotografia, me parece aditamento, pois não guarda rigoroso
prolongamento, antes fica torta e desequilibrada e a outra cruz do
escudo, que rigorosamente não é a dos Pereiras, e também podia ser
aberta depois, fica-nos uma estátua de guerreiro puro, pois a asa, tanto
pode ser de anjo S. Miguel (no presente caso), como de génio romano ou
assírio, que também assim as usavam, bem como o capacete.
«Seja porém o que for, é certo que mais parece guerreiro façanhudo do
que anjo inculcado de piedade cristã e, nestes termos, bem pôde algum devocionário dos preciosismos adocicados, substituir uma coisa do real
valor por algum pechisbeque bonitinho, amaneiradinho efectivado noutro
S. Miguel.
/ 135 /
«A estátua tem valor e deve ser estimada, ainda que não seja senão uma
documentação indumentária mavórtica, e não admira que lho
desconhecessem, enterrando-a, porque todos os dias a cultura moderna
está descobrindo verdadeiras preciosidades arquitectónicas mascaradas com cataplasmas
de preciosismos bonitinhos
−
Santa Cruz de Coimbra, Tomar, Cête, Lourosa,
etc.»
Esta escultura legítima de pedra de Ançã, com altura aproximada de metro e meio, encontra-se, presentemente, na mesma igreja,
exposta à piedade dos fieis, encerrando uma admirável lição para a
história desta localidade e para os que estudam com amor as coisas do
passado.
Consagrando
este breve artigo, já muito antecipadamente, às «Memórias
do ex-concelho de Fermedo» que há muito tempo ando a organizar, não o
quero terminar sem manifestar o meu profundo e perdurável agradecimento
ao Sr. Abade de Baçal, por todas as atenções que sempre me tem
dispensado.
Vila de Cabeçais, Janeiro de 1937.
A. G. SOARES
DE AZEVEDO
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