ABRIU-SE,
neste Arquivo, inopinadamente, o rol das Pessoas e cousas velhas, ou
doutro tempo, com o nome
e breves tópicos do professor de latim e latinidade do
nosso liceu, Sr. Abílio César Henriques de Aguiar; mas, de certo, se notou
a pobreza do informe biográfico, e demais deficiências. Além disso não se fez prévia
apresentação da personagem.
É que o assunto vinha já emmarado das efemérides do
Arquivo: obedeceu-se ao impulso adquirido, mais nada.
Nesta idade, não se pode contar, só, com as próprias forças; tem de
aceitar-se, aproveitar-se os adminículos supervenientes, enquanto Deus
quer, e é servido.
Sem outra apresentação, pois, dada a respectiva vénia, vamos a suprir
algumas falhas, ou a encher certas lacunas, mais acento menos acento,
como dizia o outro, no seio da representação parlamentar.
Como arribara a Aveiro o professor Aguiar, sendo aqui inteiramente
desconhecido, não tendo cá relações oficiais ou de parentesco?
Parece que se pode reconstruir assim a simples história:
Falecido o professor efectivo de língua latina, de quem depois se falará, que deixara fama de grande latinista como eram
esses
antigos catedráticos, recorreu-se a uma ou mais interinidades de
eclesiásticos, pois leigos idóneos não havia; mas em breve se reconheceu
que o expediente não satisfazia, e lamentava-se a falta, ou dispersão,
da cultura clássica, na localidade e seus contornos.
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Nessa época, havia já então, aqui, certa efervescência político-social,
precursora doutras efervescências mais solertes ou adventícias.
Ao eterno movimento das correntes, conjuga-se o movimento constante das ideias,
e das conveniências. Foi sempre assim.
Nunca se fecha inteiramente a porta às mudanças: plus ça change...; chassez le
naturel, il revient au galop.. a legenda da Piscina de
Silvoé vigora ainda.
*
* *
Como geralmente se sabe, depois da morte do terceiro e último Bispo de Aveiro, o cargo ficou vago,
Sede Vacante, e a vara da
regência entregue ao Vigário Geral e Governador do Bispado; e, conforme
as praxes litúrgicas, no regímen concordatário, assim se foi praticando
pelos anos adiante.
Nesse lugar, pois, mais ou menos provisório, e precário, serviram varões
assinalados, doutos e estimáveis; lembro-me dos seguintes:
O Padre Mestre Passante, reverendo João José Marques da Silva Valente,
graduado franciscano da sua Ordem; Leitor e Mestre de Lógica e Retórica,
nas grades do convento; e que legou fama de muito hábil, sabedor, e
argumentador terrível, a exceder muito as raias de Genuense e da Arte
do Padre Pereira.
Era um homem forte, perfeito, nutrido, corado, bem posto
na sua indumentária talar; de óculos azulados, e andar rítmico; de frade
pausado, no século; cantochanista insigne, voz sonora e cheia; de
regência segura, à estante.
O apelido de
Passante vinha-lhe das funções burocráticas da secretaria
conventual, e de «Padre Mestre dos Casos».
Foi também prior da freguesia da Vera-Cruz; e professor de Ciências
Eclesiásticas, do Curso Teológico, curso que se manteve, com leves
alterações, durante todo o tempo da Sede Vacante, até ser decretada
oficialmente a extinção do Bispado, e até à sua real partilha pelas
dioceses de Coimbra, Porto e Viseu.
O Padre Mestre Passante era pessoa muito sociável, conversador, gracioso
e discreto; muito culto; e orador sagrado
característico, no púlpito.
Lembro-me também do
Dr. José Joaquim Coelho de Sequeira, literato e
publicista, muito piedoso e caritativo, varão apostólico, de carácter
integérrimo, que determinou um incidente de certa gravidade com o poder
civil, e se recusou a continuar no cargo, antes de lho darem por
expiado.
Lembro-me do
Dr. Romão, teólogo e professor,
−
de quem,
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todavia, não sei mais pormenores, mas a cujas referências simpáticas me reporto.
Lembro-me do
Dr. Damásio Jacinto Fragoso, antigo e laureado aluno da
Casa Pia, de Évora, que, depois, se doutorou
em Teologia e Direito Canónico, e foi figura preponderante
na Faculdade e na Universidade de Coimbra; professor de altos recursos
intelectuais e morais, afirmados no magistério, e na
convivência social, apaixonado cultor das línguas clássicas, e
que se dignou oferecer-me uma tradução primorosa das Odes de HORÁCIO.
Lembro-me do virtuoso, do santo, do
Dr. José António Pereira Bilhano, de Ílhavo, prior de S. Salvador da Vila, depois
elevado a Arcebispo de Évora; que não só conheci
−
mas que me tratou
afectuosamente desde que, em 1848, organizou a paróquia de Santo António da Oliveirinha, onde foi o 1.º pároco; exercendo
o magistério voluntário de Humanidades e deixando
venerandas e saudosas recordações.
Lembro-me do Reverendo
Dr. Sousa Janeiro, professor do
Seminário e Prior da freguesia da Glória, que proferiu o elogio
fúnebre de José Estêvão, nas exéquias que se celebraram na Igreja da
Misericórdia, e era das relações da «gente da Praça»
e amigo íntimo do ilustre aveirense Agostinho Duarte Pinheiro
e Silva.
Lembro-me do Reverendo José Cândido Gomes de Oliveira Vidal, de
Ílhavo, que acompanhou o virtuoso e santo Dr. José
António Pereira Bilhano, quando elevado a Arcebispo de Évora: que foi secretário da Cúria e Câmara Eclesiástica daquela
sede metropolita; e mais tarde, de regresso, foi pároco da freguesia da Glória e Reitor do Liceu Nacional de Aveiro.
Lembro-me do
Dr. Manuel Augusto de Sousa Pires de Lima, Cónego prebendado da Sé de
Évora, deputado às Cortes, e
grande orador parlamentar que morreu tragicamente num dos
cemitérios de Lisboa. Teve este um conflito grave, de jurisdição eclesiástico-civil, com o pároco colado de Cacia, Francisco
Luís de Seabra, filho do sábio Visconde de Seabra; tradutor de
várias obras de instrução moral, muito vulgarizadas e conhecidas.
O referido pároco levou recurso à Coroa da determinação
do vigário geral, e o prelado deu resposta pública ao recurso, em termos hábeis, provocando, depois, uma réplica incisiva e
contundente, que me foi dado ver e ler em casa do prior de Esgueira, Reverendo
João Francisco das Neves, que acompanhava
a causa do prior de Cacia.
Esses incidentes foram então muito conhecidos, e comentados,
/ 282 / não deixando de notar-se, por
eles, as afinidades políticas
dos contendores.
Lembro-me ainda, e bem, do
dr. Manuel Baptista da
Cunha, Bacharel em Direito, e em Teologia, de Paradela (Águeda), advogado de gabinete, eminente, que foi meu professor de
Hermenêutica, no Curso Eclesiástico, depois Vigário Geral do
Patriarcado e Arcebispo de Mitilene, e em seguida elevado a
Arcebispo-Metropolitano de Braga.
Posso citar ainda o
Dr. José Alves de Maris, professor do
Seminário, depois Bispo de Bragança.
Estas nomeações, mais ou menos fortuitas ou ocasionais,
conforme os costumes da época, flutuavam com a feição dos
governos, sem prejuízo decerto, ou ofensa dos interesses religiosos e sociais; mas punham sempre certa
contensão nos espíritos...
Liga-se a esse
modus vivendi também a apresentação, pelo
Governo, do Dr. Aires de Gouveia, Lente de Direito da Universidade de Coimbra, para Bispo do Algarve, e que a Santa Sé
não confirmou nunca, estando o caso empatado catorze anos.
Numa destas emergências ou abertas, e como que para distrair, foi
nomeado Vigário Geral e Governador do Bispado de
Aveiro, o Dr. António Mendes Belo, bacharel em Direito e Teologia, que era já Cónego da Sé do Funchal, e fora Vigário Geral
de Pinhel, pessoa muito considerada desde os bancos da Universidade, de reconhecida e louvada autoridade e ortodoxia, que
muito se salientara em Coimbra em polémicas com o Dr. Júlio
de Vilhena, e sua entourage, antes deste tomar ascendente na
política Fontista.
Do Dr. Mendes
Belo foi condiscípulo, e era amigo, o Dr.
João Eduardo Nogueira e Melo, de Alquerubim, que se afirmou
uma das primeiras figuras da sua terra e concelho; deste concelho de Aveiro, e deste distrito; e que deixou da sua individualidade
gratos monumentos e recordações.
O Dr. J. E. Nogueira e Melo, condiscípulo e companheiro de
casa, em Coimbra, do Dr. Mendes Belo, certamente não foi estranho ao
despacho deste para Vigário Geral e Governador do
Bispado de Aveiro, ainda Sede Vacante; e até ao seu nome, e
nessas relações se conjugam várias hipóteses de reforma administrativa e civil, e inclusive a da restauração da diocese, aliás
malograda.
Foi como que a última nota, esvaída, do canto do cisne.
Deus super
omnia!
O Dr. Mendes Belo era natural de Gouveia. Foi académico
distinto, bacharel em Direito e Teologia da Universidade, pessoa
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multo considerada no meio académico, e na sua província; muito relacionado nas altas regiões governamentais, e indigitado
para elevados cargos da hierarquia eclesiástica, a que sem demora ascendeu.
Não admira, pois, que por
esses motivos, e pela sua amizade com o Dr.
Nogueira MeLo, e nas graças e entendimentos dos
influentes da mesma feição, sob seu nome, e sua égide, se chegasse a pensar e a falar na restauração do Bispado.
Nestas condições e nas mais de Direito é que apareceu
Aguiar nomeado professor do liceu, e logo veio tomar posse.
Não sei se...
Aguiar era da mesma região do
Dr. Mendes Belo, natural
do lugar de Sobreira, estudioso e assíduo a acompanhar os estudos mais ou menos regulares das escolas e professores da
região.
Naturalmente, o
Dr. Nogueira Melo, encontrava-se em casa
do Dr. Mendes Belo, com Aguiar, e daí ocorreram ou se estreitaram as relações amistosas do grupo, de harmonia com outras influências
da política geral e da localidade e do tempo.
Eis como se deu, sem mais retaliações, a nomeação e a vinda de Aguiar para Aveiro.
Sem intuito reservado de qualquer espécie, apenas por homenagem à verdade, e gratidão a quem a devo, seja-me lícito
acrescentar o seguinte:
O Dr. José Pereira de Carvalho e Costa, de Eixo, escrivão
ou secretário da Câmara Eclesiástica de Aveiro, e advogado
de grande séquito e influência, parente e íntimo amigo de meu
pai José Rodrigues Madahil, indicou-me espontaneamente para
secretário, ao Vigário Geral, Mendes Belo; e, com efeito, entrei
logo na prática de serviços que visavam a estatística e a reforma de
disciplina.
Assim, assíduo e meticuloso nesses
trabalhos, e na convivência selecta da casa, facilitaram-se as minhas relações com
essas, e com outras personagens mais graduadas. Assim fui animado, e
afoitado a prosseguir na carreira do ensino secundário
particular, que já exercia desde os tempos, e sob as vistas, do
saudoso e admirável professor do liceu Dr. Bernardo Xavier de
Magalhães, modelo exemplar de professor culto, bondoso e solícito.
Entretanto, dava-se a extinção formal da diocese de Aveiro,
e a sua partilha pela de Coimbra, Porto e Viseu. Mendes Belo
era nomeado Vigário Geral do Patriarcado, e Arcebispo de Mitilene; pouco depois Bispo do Algarve, sanando-se definitivamente o conflito da nomeação do
Dr. Aires de Gouveia. Na
reforma que empreendeu e realizou esse ilustre Prelado, S. E.
chamou-me para o serviço do Seminário algarvio; e fui apresentado e
nomeado oficialmente professor, sendo Ministro dos
/ 284 / Negócios Eclesiásticos e de Justiça, o
Dr. Manuel de Assunção,
diploma que ainda conservo, em homenagem a Pessoas velhas e
a cousas de outros tempos.
Depois de alguns anos, abriram-se concursos por provas
públicas para professores dos Liceus, nas sedes das três circunscrições
escolares, Lisboa, Coimbra e Porto. Concorri à de
Coimbra, ao 3.º grupo, Geografia, História e Filosofia; sendo
aprovado em todas as provas, escritas e orais, com os Drs.
Francisco dos Prazeres, da Guarda; Francisco David Caldas, de
Lamego; e João António Correia Mateus, de Leiria; desejando
cada um desses concorrentes ser provido no Liceu da sua localidade, nenhum embaraço tive em ser despachado para Aveiro,
sendo ministro da Instrução Pública, o Dr. João Marcelino Arroio.
Tratando-se de
pessoas velhas, e de cousas de outro tempo, não será inteiramente de estranhar que assim mesmo, de passagem, a
mim mesmo me refira, pois velho sou também; e de todos aqueles de
quem falo já nenhum existe nesta terra dos vivos.
RODRIGUES VIEIRA
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