Padre R. Vieira, Pessoas e cousas velhas ou doutro tempo I, Vol. II, pp. 227-229.

PESSOAS E COUSAS VELHAS

OU DOUTRO TEMPO I

UMA referência do Arquivo do Distrito de Aveiro à imprensa da localidade, leva-me a apresentar a seguinte rectificação e aumento:

Dos fundadores do o semanário académico O Tirocínio, um, foi com efeito:

Paulo Emílio de Almeida Mendes, estudante de preparatórios e aluno do Colégio Aveirense, então instalado na rua do Sol, casa Duarte Silva, e de que era director o Rv.do Dr.António José Rodrigues Soares que fundara e dirigira o Colégio de Lousada, transferindo-se depois para Aveiro.

Teve por companheiro, colega, auxiliar e ecónomo, João Bernardo Xavier de Morais Cabral, também estudante, um tanto boémio e aventuroso,' filho de José Maria Veríssimo de Morais, director do Correio em Valença do Minho, proprietário e redactor de O Noticioso, ali publicado, e que tinha parentes aqui, a cuja guarda foi submetido o estudante.

Paulo Emílio de Almeida Mendes era já rijote, ou veterano, e mais desenvolvido. Não sei donde veio e onde começou a instruir-se.

Colaborava no Distrito de Aveiro, publicando já esbocetos românticos, e outros trabalhos literários.

Creio que era, por sua mãe, das Quintãs, freguesia de Oliveirinha e parente ou aparentado com a família Queirós.

Quem estas linhas escreve, estudante do curso eclesiástico, foi apenas colaborador da gazeta, e, aliás, até pouco assíduo.

Depois de várias emergências é que tomou conta da publicação, e da sua direcção, Marques Gomes (João Augusto), que no Distrito de Aveiro dava o nome aos artigos sobre monumentos  / 228 / e antiguidades da rainha ou princesa do Vouga; e que vieram a constituir o volume Memórias de Aveiro.

O Tirocínio teve vida efémera. Saíram apenas algum números. Falharam os recursos monetários, como era de esperar e para vaticinar logo de princípio.

Paulo Emílio seguiu, depois, sorte vária; não sei onde foi acabar seus dias. João Bernardo de Morais Cabral foi para Coimbra, onde seu irmão, Ladislau de Morais Cabral, estava a concluir a formatura em Direito; e formou-se também, mas perdi-o de vista.

João Bernardo era afável, gárrulo e metidiço. Foi assim que se familiarizou, em termos hábeis, com o professor de Latim e Latinidade (assim se dizia nesse tempo) Abílio César Henrique de Aguiar, que não era para festas, mas nervoso e rude; hierático; algo sugestionável. Nas aulas usava uma nomenclatura de reprimenda, severa, insólita, e desdenhosa, fazendo o mais elevado conceito da sua sapiência da língua de Vergílio, como julgo que faziam todos os professores, nesse tempo, porque hoje o caso é mais fino; mas sabia, fazia estudar, e tomar sentido; aprendia-se.

Não me pode esquecer que, quando o aluno trocava o acento tónico da palavra de agudo para grave, ou vice-versa, logo lhe berrava assim:

Olha aí, animal! queres que ponha lá esta plica?

A plica era a vara de apontar os exercícios matemáticos ou linguísticos na ardósia, com toques mais ou menos duros nos dedos, ou nas orelhas.

Uma vez, muito colérico e indignado com o José Crispiniano, que não tinha vergonha de qualidade nenhuma, e não encarreirava as declinações já a meio do ano lectivo, dizia-lhe, irónico, a pera lanuda a estremecer:

Nunca passaste à minha casa? Pois olha que lá até os meus gatos sabem mais latim do que tu.

O Barão de Cadoro, que se assinava ainda então, apenas, Carlos Faria de Melo, que também era latinista e literato; e que olhava pelos estudos do seu sobrinho, Paulo de Magalhães, filho do distinto, ilustre, venerando professor de Francês e Inglês do Liceu, Bernardo Xavier de Magalhães, de quem guardo a mais viva e respeitosa saudade, comentava:
A pera e a bigodeira do Aguiar parecem mesmo um naco de pudim gelado. É olímpico!

 

O certo é que o Morais Cabral caiu no goto ao professor Aguiar, que o trazia nas palminhas, como se costuma dizer, e não lhe denunciava a cábula. Neste termos até o afoitou a traduzir, duma edição francesa de Horácio, a biografia ou esboço biográfico do poeta, e a publicá-la no Tirocínio, mais ou menos emendado ou corrigido.
/ 229 /  [Vol. II - N.º 7 - 1936]

Aonde isto vai! Coisas velhas e pessoas velhas todas desaparecidas, e envoltas na noite umbrosa da saudade! De todos o sobrevivente, neste conflito do tempo, sou eu; e não tenho para quem olhar! Nem dessa roda nem na seguinte.

A memória é muitas vezes o algós da vida, mas pode ser também o anjo tutelar da resignação e da conformidade: a ela me reporto; que o coração ferido não tem amigo, diz o ditado, fora do âmbito próprio.

O Sr. Dr. Ferreira Neves, que foi meu camarada (chamo-lhe sempre assim, a ele e a outros companheiros, nos estudos do liceu) com os seus ilustres colegas Dr. Tavares e Dr. Rocha Madahil, apenou-me, há dias, para escrever algumas linhas sobre coisas velhas, coisas e pessoas de Aveiro, para o Arquivo do Distrito de Aveiro.

Não lhe prometi; mas venho à chamada desta vez: o futuro a Deus pertence, segundo cá a minha lei.

Serão desse teor estes breves apontamentos, ou outros semelhantes? Dicant paduani.

O convite ou apelo vem de esferas superiores que eu mal diviso de tão longe que estou, e sumido pelo peso dos anos e pelas desilusões do mundo, e dos homens, mas vendo ainda, com delícia, os astros que sobem e radiam, no alto, e que hão-de ter, quanto mais tarde melhor maré, o seu declínio e o seu ocaso.

Nesta ordem de ideias lhes desejo longa vida e prosperidades; e que vão colhendo o fruto das lições passadas e dos seus esforços na carreira do progresso que a todos impende.

P.e R. VIEIRA

Continuação da pág. 279►►►

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