UMA referência
do Arquivo do Distrito de Aveiro à imprensa da localidade, leva-me a apresentar a seguinte
rectificação e aumento:
Dos fundadores do o semanário académico
O Tirocínio, um, foi com efeito:
−
Paulo Emílio de Almeida Mendes, estudante de preparatórios e aluno do
Colégio Aveirense, então instalado na rua do Sol, casa Duarte Silva, e
de que era director o Rv.do Dr.António José Rodrigues Soares que
fundara e dirigira o Colégio de Lousada, transferindo-se depois para Aveiro.
Teve por companheiro, colega, auxiliar e
ecónomo,
− João Bernardo Xavier
de Morais Cabral, também estudante, um tanto boémio e aventuroso,' filho
de José Maria Veríssimo de Morais, director do Correio em Valença do
Minho, proprietário e redactor de O Noticioso, ali publicado, e que
tinha parentes aqui, a cuja guarda foi submetido o estudante.
Paulo Emílio de Almeida Mendes era já rijote, ou veterano, e mais
desenvolvido. Não sei donde veio e onde começou a instruir-se.
Colaborava no
Distrito de Aveiro, publicando já esbocetos
românticos, e outros trabalhos literários.
Creio que era, por sua
mãe, das Quintãs, freguesia de Oliveirinha e parente ou aparentado com a família Queirós.
Quem estas linhas escreve, estudante do curso eclesiástico,
foi apenas colaborador da gazeta, e, aliás, até pouco assíduo.
Depois de várias emergências é que tomou conta da publicação, e da sua direcção, Marques Gomes (João Augusto), que no
Distrito
de Aveiro dava o nome aos artigos sobre monumentos
/ 228 / e
antiguidades da rainha ou princesa do Vouga; e que vieram a constituir o
volume Memórias de Aveiro.
O Tirocínio
teve vida efémera. Saíram apenas algum números. Falharam os recursos monetários, como era
de esperar e
para vaticinar logo de princípio.
Paulo Emílio seguiu, depois, sorte vária; não sei onde foi
acabar seus dias. João Bernardo de Morais Cabral foi para
Coimbra, onde seu irmão, Ladislau de Morais Cabral, estava a concluir a
formatura em Direito; e formou-se também, mas perdi-o de vista.
João Bernardo era afável, gárrulo e metidiço.
−
Foi assim que se
familiarizou, em termos hábeis, com o professor de Latim
e Latinidade (assim se dizia nesse tempo) Abílio César Henrique
de Aguiar, que não era para festas, mas nervoso e rude; hierático; algo
sugestionável. Nas aulas usava uma nomenclatura de reprimenda, severa,
insólita, e desdenhosa, fazendo o mais elevado conceito da sua sapiência da língua de Vergílio, como julgo que
faziam todos os professores, nesse tempo, porque hoje o caso é mais
fino; mas sabia, fazia estudar, e tomar sentido; aprendia-se.
Não me pode
esquecer que, quando o aluno trocava o acento
tónico da palavra de agudo para grave, ou vice-versa, logo lhe
berrava assim:
−
Olha aí, animal! queres que ponha lá esta plica?
A plica era a vara
de apontar os exercícios matemáticos
ou linguísticos na ardósia, com toques mais ou menos duros nos dedos, ou
nas orelhas.
Uma vez, muito colérico e indignado com o José Crispiniano, que não tinha vergonha de qualidade nenhuma, e não
encarreirava
as declinações já a meio do ano lectivo, dizia-lhe, irónico, a pera
lanuda a estremecer:
−
Nunca passaste à minha casa? Pois olha que lá até
os meus gatos sabem
mais latim do que tu.
O Barão de Cadoro, que se assinava ainda então, apenas,
Carlos Faria de Melo, que também era latinista e literato; e que
olhava pelos estudos do seu sobrinho, Paulo de Magalhães, filho do
distinto, ilustre, venerando professor de Francês e Inglês do Liceu,
Bernardo Xavier de Magalhães, de quem guardo a mais viva e respeitosa saudade,
−
comentava:
−
A pera e a bigodeira do Aguiar parecem mesmo um naco de pudim gelado.
É olímpico!
O certo é que o Morais Cabral caiu no goto
ao professor Aguiar, que o trazia nas palminhas, como se costuma dizer,
e não lhe denunciava a cábula. Neste termos até o afoitou a traduzir, duma edição francesa de Horácio, a biografia ou esboço
biográfico do poeta, e a publicá-la no Tirocínio, mais ou menos
emendado ou corrigido.
/ 229 /
[Vol. II - N.º 7 - 1936]
Aonde isto
vai! Coisas velhas e pessoas velhas todas desaparecidas, e envoltas na noite
umbrosa da saudade! De todos o
sobrevivente, neste conflito do tempo, sou eu; e não tenho para
quem olhar! Nem dessa roda nem na seguinte.
A memória é muitas vezes o algós da vida, mas pode ser
também o anjo tutelar da resignação e da conformidade: a ela
me reporto; que o coração ferido não tem amigo, diz o ditado,
fora do âmbito próprio.
O Sr. Dr. Ferreira Neves, que foi meu camarada (chamo-lhe
sempre assim, a ele e a outros companheiros, nos estudos do
liceu) com os seus ilustres colegas Dr. Tavares e Dr. Rocha
Madahil, apenou-me, há dias, para escrever algumas linhas sobre
coisas velhas, coisas e pessoas de Aveiro, para o Arquivo do
Distrito de Aveiro.
Não lhe prometi; mas venho à chamada desta vez: o futuro
a Deus pertence, segundo cá a minha lei.
−
Serão desse teor estes breves apontamentos, ou
outros
semelhantes? Dicant paduani.
O convite ou apelo vem de esferas superiores que eu mal
diviso de tão longe que estou, e sumido pelo peso dos anos e
pelas desilusões do mundo, e dos homens, mas vendo ainda, com
delícia, os astros que sobem e radiam, no alto, e que hão-de ter,
quanto mais tarde melhor maré, o seu declínio e o seu ocaso.
Nesta ordem de ideias lhes desejo longa vida e prosperidades; e que vão colhendo o fruto das lições passadas e dos
seus
esforços na carreira do progresso que a todos impende.
P.e R. VIEIRA
|