SEMPRE
lembrado do favorável e obsequioso acolhimento que tem tido a minha
pobre prosa, nas páginas do culto e erudito Arquivo; e grato à honra
que, assim, se me tem dispensado, compareço novamente à chamada.
Creio que não se me aplicará o aforismo e correctivo:
ecce uterum
Crispinus... de sinistra memória; mas se assim suceder, o meu dilecto
amigo e querido parente, com os seus ilustres consócios decidirá: eu
estou por tudo: submeto-me à sentença.
*
* *
É que a breve referência que fiz ao professor Aguiar que
já dorme há muito o sono eterno, e os factos correlativos, faz lembrar
por isso outras personagens, mais ou menos exóticas, e que vão, talvez,
de todo esmaecidas ou apagadas.
Segundo as tradições, todos ou
quase todos os professores da língua
latina (os antigos; porque hoje o caso muda de figura), todos ou quase
todos deixaram do seu tirocínio escolar recordações indeléveis de terem
a sua bolha; de serem um pouco zucas
(toqués, da tradução do eminente escritor ANTERO DE FIGUEIREDO,
no Último olhar de Jesus,
− ao mesmo tempo simpáticos e
hilariantes: Lembro-me, por exemplo, agora, do mais antigo que
conheci e tratei, e se designava simplesmente por
− Germano, e
Germano, − Germano António de Pinho Ravara.
O Germano era um homem forte, baixo, atarracado, de barba toda
branca,
artisticamente aparada à tesoura do mestre Figaro; nervoso a andar, a
falar, e a gesticular, sempre de bengala em punho, servindo como que de
batuta, a reger a palavra.
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Já de idade avançada, mas vivo, expedito, típico, tinha uma caligrafia
modelar, de finos e grossos, tanto no serviço de secretário do liceu,
como somente a traçar com pausa a sua assinatura, formal, invariável
− Germano António de Pinho Ravara. Era
tio do Dr. Artur Ravara, que foi distinto médico em Lisboa, e muito
notável operador cirúrgico; deixou lá condigno sucessor.
Escrevia sempre Jermano, e não Germano; escrevia xegar, e não chegar;
caprixo, etc.; unia ortografia sui generis; não se sujeitando a
réplicas de emenda ou correcção: decidia ex-cátedra, na cadeira ou fora
dela.
Era muito sentimental e carinhoso de flores, de árvores, sobretudo das
árvores de fruto: cuidava ou mandava cuidar da sua plantação, protecção,
tratamento, e enxertia, no seu vasto
quintal da rua de Santo António; louvando a sua escolha e
selecção, mas não tolerando podas largas, nem recorte de ramos
avelhentados, dizendo sentenciosamente:
−
A natureza lá fomenta, e elimina
o que é preciso e congruente.
Era também muito afeiçoado às aves, sobretudo às que nos são mais
familiares e frequentam os nossos jardins e quintais. Os discípulos
conheciam-lhe o fraco; e naturalmente exploravam
essa corda sensível, nos dias em que, à imitação de Bocage, o viam ou
julgavam mais pachorrento. De quando em quando, disfarçadamente, com
jeito e arte, soltavam, na aula, um pardalito ou toutinegra. A ave
começava a voar, atordoada, naquele meio estranho, e ia, às bicadas,
contra os vidros da janela. Seguia-se o respectivo alvoroço; uma tragédia em miniatura, benévola, e graciosa: e o mestre, sensibilizado, comovido, a tremelicar na
voz, recomendava: − Cautela, meninos, cautela! Não maltratem
o passarinho, nem o cansem muito; deixem-no, deixem-no à
vontade.
O tempo escolar ia passando; a cabala sortindo efeito: o
sueto estava certo; até que o prisioneiro alado podia escapulir-se
para o ar livre; e os estudantes também, alegres, contentes do
sortilégio.
Lembro-me, também, a propósito, que o professor Germano
escreveu, uma vez, a meu tio, para a Oliveirinha, a pedir-lhe,
para enxertia , uns garfos de pereira Figueiroa, mas dava ao
fruto, um nome tão indecoroso que não se pode dizer aqui: de mais a mais
de... negro.
Bondoso, sentimental, ensinava com aprumo e firmeza, gozando justa fama de sabedor, tendo deixado uma tradução das
Sete palavras de Jesus Cristo na Cruz, muito gabada dos entendidos.
− Bons tempos
esses!
Na conversa usual, usava frases exóticas, originais, que nem
pareciam prosa, de sentido ambíguo, dúbio, pitoresco.
Quando emudeceu essa grande glória da tribuna parlamentar,
/ 159 / que se chamou José Estêvão, e que era justamente
admirado e querido no país, especialmente em Aveiro, Germano, encontrando na rua um amigo, e calculando que
este lhe
falaria no triste acontecimento, antecipando-se, perguntou-lhe,
todo formalizado e grave, de bengala em riste:
− E então que me dizes tu a essa
metempsicose?!...
−
Metempsicose...?
− repetiu o interpelado; e não teve fôlego
para dizer mais.
− Metempsicose!!
Doutra vez, perguntou-lhe um amigo, familiarmente:
−
Que me dás hoje de novo?
Resposta do professor de latim, em português que parece
grego ou hebraico:
− As ondulações estão subjectivamente intercaladas nos abismos!
Destas filologias, não se faz caso nos tempos modernos, mas
naturalmente abundam outras.
Enfim: como toda a gente que não goza sempre boa saúde,
Germano esteve uma vez doente. Restabeleceu-se, todavia, por felicidade
sua e dos amigos; e um amigo, encontrando-o, perguntou-Ihe:
−
Então como vais agora dessa saúde?
Resposta:
− Efémero; longitudinal e suburbano...
Estas excentricidades não obstavam a que fosse sabedor e
entendido nos segredos da língua latina, e a praticasse e ensinasse a praticar com êxito: ensinava a traduzir, palavra por
palavra, a relacionar os casos do latim, com os complementos
do português; e a conhecer cada frase, a sua índole, a sua posição, e natureza; e ao mesmo tempo, conjuntamente, ensinava o português,
a gramática portuguesa e a sintaxe, como derivada da língua latina, e
como filha de boa mãe.
Ora aqui estão, para satisfazer à benévola e judiciosa encomenda do
Sr. Dr. Ferreira Neves, Pessoas e cousas velhas, ou de
outro tempo. No número dos velhos, sem modéstia nem temor,
entro também e trago a pêlo estas cousas velhas, encerrado nelas, in extremis.
Mas falta-me falar do professor Maia Romão; do velho e
querido Romão.
Padre RODRIGUES VIEIRA
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