Padre R. Vieira, Pessoas e cousas velhas ou doutro tempo III, Vol. III, pp. 157-159.

PESSOAS E COUSAS VELHAS

OU DOUTRO TEMPO III

◄◄◄ Continuação do vol. II, pág. 279.

SEMPRE lembrado do favorável e obsequioso acolhimento que tem tido a minha pobre prosa, nas páginas do culto e erudito Arquivo; e grato à honra que, assim, se me tem dispensado, compareço novamente à chamada.

Creio que não se me aplicará o aforismo e correctivo: ecce uterum Crispinus... de sinistra memória; mas se assim suceder, o meu dilecto amigo e querido parente, com os seus ilustres consócios decidirá: eu estou por tudo: submeto-me à sentença.

*
*       *

É que a breve referência que fiz ao professor Aguiar que já dorme há muito o sono eterno, e os factos correlativos, faz lembrar por isso outras personagens, mais ou menos exóticas, e que vão, talvez, de todo esmaecidas ou apagadas.

Segundo as tradições, todos ou quase todos os professores da língua latina (os antigos; porque hoje o caso muda de figura), todos ou quase todos deixaram do seu tirocínio escolar recordações indeléveis de terem a sua bolha; de serem um pouco zucas (toqués, da tradução do eminente escritor ANTERO DE FIGUEIREDO, no Último olhar de Jesus, ao mesmo tempo simpáticos e hilariantes: Lembro-me, por exemplo, agora, do mais antigo que conheci e tratei, e se designava simplesmente por Germano, e Germano, Germano António de Pinho Ravara.

O Germano era um homem forte, baixo, atarracado, de barba toda branca, artisticamente aparada à tesoura do mestre Figaro; nervoso a andar, a falar, e a gesticular, sempre de bengala em punho, servindo como que de batuta, a reger a palavra. / 158 /

Já de idade avançada, mas vivo, expedito, típico, tinha uma caligrafia modelar, de finos e grossos, tanto no serviço de secretário do liceu, como somente a traçar com pausa a sua assinatura, formal, invariável Germano António de Pinho Ravara. Era tio do Dr. Artur Ravara, que foi distinto médico em Lisboa, e muito notável operador cirúrgico; deixou lá condigno sucessor.

Escrevia sempre Jermano, e não Germano; escrevia xegar, e não chegar; caprixo, etc.; unia ortografia sui generis; não se sujeitando a réplicas de emenda ou correcção: decidia ex-cátedra, na cadeira ou fora dela.

Era muito sentimental e carinhoso de flores, de árvores, sobretudo das árvores de fruto: cuidava ou mandava cuidar da sua plantação, protecção, tratamento, e enxertia, no seu vasto quintal da rua de Santo António; louvando a sua escolha e selecção, mas não tolerando podas largas, nem recorte de ramos avelhentados, dizendo sentenciosamente: A natureza lá fomenta, e elimina o que é preciso e congruente.

Era também muito afeiçoado às aves, sobretudo às que nos são mais familiares e frequentam os nossos jardins e quintais. Os discípulos conheciam-lhe o fraco; e naturalmente exploravam essa corda sensível, nos dias em que, à imitação de Bocage, o viam ou julgavam mais pachorrento. De quando em quando, disfarçadamente, com jeito e arte, soltavam, na aula, um pardalito ou toutinegra. A ave começava a voar, atordoada, naquele meio estranho, e ia, às bicadas, contra os vidros da janela. Seguia-se o respectivo alvoroço; uma tragédia em miniatura, benévola, e graciosa: e o mestre, sensibilizado, comovido, a tremelicar na voz, recomendava: Cautela, meninos, cautela! Não maltratem o passarinho, nem o cansem muito; deixem-no, deixem-no à vontade.

O tempo escolar ia passando; a cabala sortindo efeito: o sueto estava certo; até que o prisioneiro alado podia escapulir-se para o ar livre; e os estudantes também, alegres, contentes do sortilégio.


Lembro-me, também, a propósito, que o professor Germano escreveu, uma vez, a meu tio, para a Oliveirinha, a pedir-lhe, para enxertia , uns garfos de pereira Figueiroa, mas dava ao fruto, um nome tão indecoroso que não se pode dizer aqui: de mais a mais de... negro.

Bondoso, sentimental, ensinava com aprumo e firmeza, gozando justa fama de sabedor, tendo deixado uma tradução das Sete palavras de Jesus Cristo na Cruz, muito gabada dos entendidos. Bons tempos esses!


Na conversa usual, usava frases exóticas, originais, que nem pareciam prosa, de sentido ambíguo, dúbio, pitoresco.

Quando emudeceu essa grande glória da tribuna parlamentar, / 159 / que se chamou José Estêvão, e que era justamente admirado e querido no país, especialmente em Aveiro, Germano, encontrando na rua um amigo, e calculando que este lhe falaria no triste acontecimento, antecipando-se, perguntou-lhe, todo formalizado e grave, de bengala em riste:

E então que me dizes tu a essa metempsicose?!...

Metempsicose...? repetiu o interpelado; e não teve fôlego para dizer mais.

Metempsicose!!


Doutra vez, perguntou-lhe um amigo, familiarmente:

Que me dás hoje de novo?

Resposta do professor de latim, em português que parece grego ou hebraico:

As ondulações estão subjectivamente intercaladas nos abismos!

Destas filologias, não se faz caso nos tempos modernos, mas naturalmente abundam outras.

Enfim: como toda a gente que não goza sempre boa saúde,

Germano esteve uma vez doente. Restabeleceu-se, todavia, por felicidade sua e dos amigos; e um amigo, encontrando-o, perguntou-Ihe:

Então como vais agora dessa saúde?

Resposta:

Efémero; longitudinal e suburbano...


Estas excentricidades não obstavam a que fosse sabedor e entendido nos segredos da língua latina, e a praticasse e ensinasse a praticar com êxito: ensinava a traduzir, palavra por palavra, a relacionar os casos do latim, com os complementos do português; e a conhecer cada frase, a sua índole, a sua posição, e natureza; e ao mesmo tempo, conjuntamente, ensinava o português, a gramática portuguesa e a sintaxe, como derivada da língua latina, e como filha de boa mãe.

 

Ora aqui estão, para satisfazer à benévola e judiciosa encomenda do Sr. Dr. Ferreira Neves, Pessoas e cousas velhas, ou de outro tempo. No número dos velhos, sem modéstia nem temor, entro também e trago a pêlo estas cousas velhas, encerrado nelas, in extremis.

Mas falta-me falar do professor Maia Romão; do velho e querido Romão.

Padre RODRIGUES VIEIRA

Continua na pág. 293 ►►►

 

Página anterior

Índice

Página seguinte