Esgueira,
antiga vila bem assistida de famílias de distinção e avultada fazenda,
concelho e cabeça de com arca à jurisdição da qual vinte e nove vilas se
subordinavam, com a perda da sua autonomia administrativa em 1836 e
respectiva incorporação no concelho de Aveiro, viu decair e desaparecer
a posição de relevo que até aí ocupava.
À ilharga duma cidade em manifesto desenvolvimento, perdida já a antiga
vizinhança do mar que em passados séculos lhe trouxera comércio e
movimento, a vida independente de Esgueira tornou-se artificial e
produto apenas de factores de natureza política; faltavam-lhe condições
próprias; e uma vez retirada a comparticipação do Estado na sua vida,
extinto o concelho, a vila caiu na zona de atracção de Aveiro e foi
absorvida pela cidade.
É fenómeno de observação corrente, registado há muito em tratados
de Geografia Humana. Todos nós sabemos quantos antigos concelhos e
lugares as grandes cidades de Portugal (e de todo o mundo) têm
incorporado nas suas respectivas áreas em constante movimento
expansionista!
A ironia do Destino, porém, que tanto se compraz em contrariar as
determinações dos homens, reveste uma forma curiosa no tratamento a que
sujeitou os três grandes e consagrados símbolos da autonomia
administrativa destas duas povoações vizinhas: ignora-se onde pára o
original do foral de Aveiro, desconhece-se o seu pelourinho, tampouco se
sabe da matriz do selo concelhio.
Por estas três formas se exteriorizavam as prerrogativas municipais
doutros tempos e a jurisdição dos concelhos; o foral marcava a lei
basilar, o seço autenticava as determinações locais e complementares, e
por meio do pelourinho era o povo compelido ao respeito e cumprimento da
Lei...
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Pois de Esgueira tudo felizmente se conserva: o seu elegante pelourinho,
constituído por uma coluna de fuste torcido em estilo salomónico,
barroco, que sustenta um capitel e um entablamento onde assenta um cubo
terminal historiado, de cuja base saem as quatro usuais barras de ferro,
é muito provavelmente, sucedâneo doutro e ergue-se ainda no seu lugar
próprio, fronteiro aos Paços do concelho.
O original do foral manuelino conserva-se no Arquivo Nacional da Torre
do Tombo em magnífico estado, e por intermédio da nossa Revista o seu
texto é hoje revelado aos estudiosos.
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Pelourinho de Esgueira.
Nas quatro faces laterais do cubo cimeiro estão esculpidas uma
caravela, o brasão nacional, uma esfera armilar encimada por uma
cruz de Cristo, e três setas enfeixadas em leque, com as pontas para
baixo. Não relacionado na monografia que o Sr. Luís Chaves dedicou
aos pelourinhos portugueses. |
Do selo municipal, finalmente, guarda-se no Museu de Aveiro uma matriz
antiga, de latão, que devemos considerar coeva do foral manuelino.
É uma preciosidade. Pela 1.ª vez se reproduz o seu cunho em
tamanho natural, desenhado rigorosamente sobre uma impressão obtida em
lacre.
A matriz esteve presente na Exposição distrital de Aveiro em 1882, como
se pode ver numa gravura minúscula, apenas de 9 milímetros de diâmetro,
que ilustra o álbum de fototipias organizado por MARQUES GOMES e JOAQUIM
de VASCONCELOS em 1883.
No texto desse álbum se referiram os seus organizadores à velha matriz
escrevendo:
«O sello de latão é um dos symbolos das regalias municipaes da
antiga villa de Esgueira do concelho de Aveiro. É uma preciosa relíquia,
digna do futuro museu districtal que se está organisando, porque
Esgueira, não só foi villa e concelho a que já o Conde D. Henrique deu
foral, confirmado e ampliado por D. Affonso IV e D. Manoel, mas foi
tambem cabeça de uma grande comarca, extincta ha pouco mais de um seculo.
O sello representa as armas da villa, que são um navio envergado,
/ 3I7 / nadando sobre ondas azues; em torno a legenda:
S. CONCILII * ISCARIE (AE) (Sigillum, sello do conselho −
reunião de pessoas − camara de Esgueira).»
O sello representa as armas da villa, escreveram, MARQUES GOMES e
JOAQUIM DE VASCONCELOS, e assim é de facto. É essa, de resto, a origem
dos brasões municipais; surgiu, primeiro, a necessidade do selo para
autenticar os documentos emanados do concelho; da sua generalização se
passou ao brasão e à bandeira.
As leis de D. Afonso III, por exemplo, logo no título das apelações
estabelecem que ao apelante se dê escrito pelo tabellyon ou per outro
escriuão se auer tabellion non poderem e seelado do seelo do concelho ou
doutro seelo se o concelho seelo nom poder ouuer; no título dos bens
indivisos entre pai e filhos, de novo se alude ao selo como garantia de
autoridade, estabelecendo que a partiçom... nom pode seer desfeyta
per nenhuma guyssa ainda que nom seia en scrito per tabellion e seelada
con seelo do concelho se pode per testemuynos seer prouada...
Nos casos, na verdade raros, em que o Poder central instituía povoações
arvorando-as em concelhos − e só necessidades de povoamento em regiões
pouco procuradas pelos povos determinariam os Reis a criar de raiz um
concelho, reconhecendo a insuficiência dos existentes na área
circundante − ainda nesses casos se descortina qual fosse a prática
usual: JOÃO PEDRO RI'BEIRO cita, no volume 5.º das suas Dissertações
cronológicas (pág. 374 da 2.ª edição), a seguinte expressiva
passagem da doação de D. Dinis à vila de Borba, que no livro 3.º da
respectiva chancelaria encontrou: ...E dou a esses moradores e
povoadores de Borva Sina, e Seelo, e que seja Concelho per si.
O concelho precisava pois de selo e de bandeira. Desde sempre assim terá
sido.
Mais duma dezena de selos dos primitivos municípios portugueses,
medievais, se conhece ainda; a eles se acrescenta agora a representação
gráfica do de Esgueira.
A sua mais antiga descrição é talvez a que se encontra no códice n.º 498
da Biblioteca Municipal do Porto, dos fins do século XVII, intitulado
Das Regras da Armaria e Compendio das Armas dos Reynos de Portugal E
Algarue E das Cidades E villas principaes delles.
Merece a pena registar-se o que de Esgueira o referido códice nos
transmitiu.
A villa do Esgueira tem por blazaõ huã Nao sobre Aguas E hü estrella e
hüa Lua crescente E assi andão no sello da Cambra Cõ hü letreiro ao
redor q. diz S. CONCILII ISGARIA. EIRei Dom M.el prometeo a
esta villa per hum Aluará seu q.a jurisdição della seria sempre da Coroa
em Evora a 14 de Julho de 1497. a qual merce lhe confirmou EIRei D.j.º o
3.º em Lisboa a 25 de setembro de 1528. sem embargo de tudo isto a
jurisdiçaõ
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ciuel hé da Abb.ca de Lorvão da orde de S. Br.do
Como consta da pr.ª folha do foral ã.lhe deu o d.º Rei D. Manoel em
Lisboa a 8 de Junho de 1515. E consta de outra doação q. vimos no
Cartorio da Camera q. EIRei D.A.º 5.º dera a jurisdiçaõ crime da d.ª
Villa a Joaõ de Albuquerque p.ª q elegesse Juiz do crime: E confirmou se
a seu filho Henrique de Albuquerque fidalgo da Casa delRei D.j.º o 2.º
q.pos por Ouuidor na d.ª villa a Heitor Barreto m.or em
Aueiro. A rainha D.Thereza f.ª delRei D.Sancho 1.º de Portugal e m.er
delRei D.Aº 9 de Leaõ fez doaçaõ desta Villa ao Mostr.º de Lorvão em
Março da era de 1232 a qual está no Cartorio de Lorvaõ E nella se
declara q. lhe dá esta villa para os vestidos das Freiras delle.
Acompanha esta curiosa descrição um brasão em cujo campo se apresenta
uma nau muito mais moderna que a da matriz sigilar, de três mastros,
voltada à esquerda, flâmula no mastro central que tem à direita o
crescente da Lua e do lado oposto o Sol representado por uma estrela de
seis pontas, e, num pequeno mastaréu, à ré, um pavilhão quadrado com as
quinas de Portugal
(1).
Em pormenor, evidentemente, difere muito do primitivo selo; neste, como
a nossa gravura permite observar, vê-se uma nau de tipo corrente na
marinha portuguesa do século XV, dum mastro só e aproada à direita.
Acima do cesto da gávea, uma cruz remata o mastro único; à
esquerda, o Sol; o crescente da Lua, no lado oposto, já se lhe não
distingue, a menos que deva ser considerado como tal um semi-círculo que
muito mais abaixo se nota, quase à altura da coberta.
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Selo municipal de Esgueira.
Desenho feito sobre uma modelação obtida em lacre com a matriz
quinhentista. |
Se quiséssemos fixar o tipo de nau representado na matriz
quinhentista de Esgueira, aproximá-lo-íamos talvez da carraca
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dum só mastro, se bem que advertidamente nos previne G. DEMAY contra
estas identificações excessivas escrevendo: ...les tailleurs de
sceaux ne donnent pas toujours des reproductions complètes. Surtout
lorsqu'il s'agit des vaisseaux de leurs mille détails, l'artiste se
contente de nous montrer les dispositions principales, les manoeuvres
qu'il a jugées indispensables
(2).
A circunstância do selo de Esgueira apresentar única e exclusivamente
uma embarcação do alto, faz remontar a sua organização a um período mais
recuado do que o século XVI. Deve tratar-se dum selo primitivo, de
quando Esgueira ocupava ainda uma posição nitidamente marítima, e datar,
portanto, da primeira fase deste município. Esta matriz quinhentista não
será, pois, senão uma nova gravura da antiga insígnia medieval.
Que essa posição marítima existiu, sabemo-lo bem pelos documentos; em
1103, por exemplo, (era M.ª C.ª XXXX.ª, 1.ª) se lavrou uma doação cujo
registo no Livro Preto da Sé de Coimbra (cópia do Arquivo da
Universidade) diz assim:
ln Dei nomine. Ego Suarius Presbyter Scripturam testamenti facio vobis
Domno Mauricio Pontifici de haereditate mea propria quam habeo in villa
quam appellantur Esgueira quae habet jacentiae secus foce Vauci propre
litura maris...
As alterações do litoral neste ponto da costa, apontadas já pelo Prof.
Dr. AMORIM GIRÃO (Bacia do Vouga, 58), e a formação da Ria,
reclamam de há muito um estudo metódico dos documentos, na grande
maioria inéditos. Os historiadores têm trabalhado com os documentos dos
Portugaliae Monumenta Historica e pouco mais. Investigação
própria em arquivos ninguém tem feito, a bem dizer. Como nota a
propósito, acrescentaremos que não era apenas Esgueira que no século XII
ficava... propre litura maris; S. João de Loure, do outro lado do
Vouga, ficava igualmente... propre litus maris discurrente rivulo
Vauca subtus castro marnele (Livro Preto, em data de 1108).
Em oito séculos mudou por completo o aspecto geográfico do litoral;
lugares outrora ribeirinhos são hoje de interior, afastados da costa.
Ora o distintivo dos lugares marítimos é por excelência uma embarcação;
em Portugal têm barcos nas suas armas, se nos limitarmos às povoações
com brasão conhecido anteriormente à moderna reconstituição desses
emblemas, Alcácer do Sal, Buarcos, Esgueira, Lisboa, Peniche, Setúbal,
Tavira, Viana do Castelo e Vila do Conde.
Se compararmos a representação portuguesa com as armas de domínio
estrangeiras, encontramos, por exemplo, embarcações a representar os
antigos concelhos de Amsterdam (1529), Boston (séc.
XVI), Calais (1228), Damme (1309), Douvres (1284), La Rochelle (1308),
Nieuport (1307), Paris (1412), Poole (1325),
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Saint-Sébastien (1335), Sandwich (1238), Southampton (1588), Yarmouth
(séc.
XIII), etc.
Era a simbólica corrente em matéria de heráldica de domínio;
avisadamente, portanto, as povoações ribeirinhas portuguesas que têm
reconstituído os seus perdidos selos adoptam de novo embarcações antigas
para emblema municipal; assim se fez para Ílhavo, por exemplo, de cujo
selo não havia já memória, e assim se praticou para a Figueira da Foz,
posto que em selo heraldicamente mal ordenado.
S. CONClLII * ISGARIE., diz a legenda que rodeia a nau quinhentista;
como s(igillum) concilii Isgari(ae) a devemos entender, querendo-se
significar por concilii o município e não, como pretendiam os
organizadores do álbum de fototipias acima referido, o conselho (reunião
de pessoas). Vimos já como as leis de Afonso III mandavam aplicar o selo
do concelho e conhecemos também as legendas doutros selos municipais
portugueses da Idade Média. Até no Estrangeiro, onde o termo concelho
propriamente dito não era corrente, o seu significado, no entanto, se
empregava:
SIGILLVM :
COMMVNE : BARONVM.;. DE : DOVORIA. ,+SIGILLVM * COMMVNE : DE : LAPOLE, +
SIGILLVM : COMMVNE : VILLAE : SOVTHAMTONlAE, SIGILLVM TOCIVS VILLAIE DE
KALEIS; por sua vez, consilii, muito claramente, no SIGILL' *
CONSILII " BARONVM * DE * SANDWICO *
(3) de diferente significado, etc.
(4)
Eram, evidentemente, termos diversos.
Para o estudo da heráldica portuguesa de domínio, tão grato
presentemente aos nossos investigadores, e ainda como subsídio para o
melhor conhecimento do distrito de Aveiro neste especial e
interessantíssimo capítulo, reunimos estas breves notas que ilustram o
passado honroso duma das mais antigas vilas da nossa região, a respeito
da qual os arquivos portugueses conservam avultado número de documentos,
inéditos como a grande maioria dos que ao distrito pertencem...
A. G. DA ROCHA MADAHIL
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