João Domingues Arede, O Museu Regional de Cucujães, Vol. 1, pp. 309-314.

O MUSEU REGIONAL DE CUCUJÃES

E A ACÇÃO DO REVERENDO JOÃO DOMINGUES AREDE

Na progressiva e risonha vila do Couto de Cucujães inaugurou-se em 4 de Agosto do corrente ano o Museu regional que à benemerente acção do Reverendo João Domingos Arede o Distrito de Aveiro e a Investigação Portuguesa ficaram devendo, e ao qual sumariamente nos referíramos já na página 111 da nossa Revista.


A solenidade efectuou-se no claustro do Seminário das Missões, e a ela presidiu o Sr. Doutor António Luís Gomes, venerando Provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, secretariado pelo Presidente da Câmara Municipal de Oliveira de Azeméis e pela Ex.ª Senhora Dona Claudina Alves Machado Brandão, de Cucujães.

Numa dependência da igreja matriz de Cucujães inaugurou-se, por ocasião da abertura do Museu, o retrato do Rev. João Domingues Arede. O Arquivo do Distrito de Aveiro, cumprimentando o devotado amigo de Cucujães, honra-se em fixar igualmente nas suas páginas, ao serviço do Distrito, o retrato do ilustre organizador do Museu.

Usaram da palavra o Dr. José Júlio César, de Viseu, o Sr. Abel da Silva Valente, e o professor Sr. Álvaro Fernandes.

Enquanto nos não é possível dedicar àquela nova instituição mais desenvolvida notícia, damos uma descrição sumária do Museu, que o seu ilustre organizador teve a bondade de expressamente traçar para / 310 / a nossa Revista, e arquivamos igualmente nas nossas páginas as palavras de saudação que ao Reverendo Arede foram dirigidas pelo Sr. Álvaro Fernandes, estudioso local de quem muito há a esperar.

Ao Museu regional de Cucujães está assegurado um futuro distinto no campo da Arqueologia; basta, para tanto, que faça a recolha do numeroso material disperso pela zona circundante, à qual se ligam importantíssimos problemas da Arqueologia do Distrito.


Vem a propósito registar também a resposta fornecida pelo Reverendo Arede ao questionário enviado à Câmara Municipal de Oliveira de Azeméis em Agosto do corrente ano, relativo aos monumentos de Arqueologia e História militar da região; são elementos imprescindíveis para o estudo do nosso Distrito.


MUSEU DA VILA DO COUTO DE CUCUjÃES

inaugurado a 4 de Agosto de 1915

O Museu da Vila do Couto de Cucujães tem instaladas as suas colecções de objectos num grande armário, de madeira de macacaúba, na sacristia da Igreja Matriz.

O referido armário é encimado com o brasão da terra e recebe luz do lado nascente, por 4 janelas que lhe ficam defronte; tem duas divisões iguais e, cada uma destas, quatro estantes, onde estão expostos os objectos que formam a colectânea da nova instituição.

Designaremos, a seguir, os referidos objectos, classificando-os também segundo as idades:
I
Período Pré-histórico 1 calcite mamilar, 1 calcite estalactítica, 1 machado (coup-de-poing) de quartzite lascada.

lI Período Proto-histórico 2 machados votivos de pedra polida, 1 amuleto fálico (emblema do órgão da geração masculino), 9 machados de pedra polida amfibolito xisto, 4 machados de pedra polida fibrolito sílica, 2 machados de pedra polidaxisto-siliciosa, 2 fragmentos xistosos apresentando pegadas de gente moça, 1 pilão, 1 fragmento de argila grosseira quartzosa e micácia, 26 fragmentos de tégulas (telhas de rebordo) da época romana, 11 mós manuais de pedra de tipo neolítico, 4 mós manuais de pedra redondas da época romana.

III Período Histórico a) Tempos antigos 1 lucerna romana. b) Tempos medievos 1 pá árabe, de madeira, 2 caracteres de um papiro, aparecido em Sobral de Adiça, ainda desconhecidos e alguns selos brancos do Mosteiro de Cucujães. c) Tempos modernos muitos exemplares de objectos diferentes, e também bastantes livros e alguns documentos.

IV Numismática a) Moedas romanas 23 exemplares, e mais 35 não classificadas. b) Moedas portuguesas 24 exemplares c) Moedas estranjeiras 46 exemplare d) Medalhas 2 exemplares.

O novo Museu continua a ser muito visitado e a interessar bastante o povo desta região.

O Abade aposentado,

JOÃO DOMINGUES AREDE

/ 311 /

NA INAUGURAÇÃO DO MUSEU DE CUCUjÃES

Depois de terem falado verdadeiras autoridades na ciência arqueológica, hoje tão cultivada, seja-me permitido proferir duas palavras alusivas à cerimónia de hoje e sobretudo ao Rev.º JOÃO AREDE, fundador do pequenino mas valioso Museu de Cucujães.

Um homem que, não sendo natural desta freguesia, teve coragem bastante para levar a cabo três monografias completas da sua terra adoptiva, entendo eu que bem merece o aplauso sincero de todos os naturais dessa terra tão carinhosamente monografada. Cucujães tem de há muito para com o Rev.º AREDE uma dívida de gratidão, que não deve fugir a pagar. Longe dos grandes centros, da convivência dos grandes mestres: afastado das grandes bibliotecas, onde apenas se encontram as obras antigas imprescindíveis aos trabalhos históricos: o esforço do P.e AREDE tem um valor particular, porque foi realizado em condições excepcionais, sem as facilidades que muitos encontram no caminho.

Para tirar uma simples dúvida, na escassez deste meio, quantas viagens não faria o P.e AREDE, a consultar os in-fólios ocultos nas bibliotecas principais do país? Para escrever a sua obra, que só a leigos pode ser tida por fácil de realizar, sei perfeitamente que não pôde fugir a viagens inúmeras ao Porto, a Aveiro e a Coimbra, sujeitando-se a despesas e a incómodos dolorosos. Mas a Arte, como a Ciência, não é uma actividade lucrativa, de que se esperem proventos e que possa ser exercida sem sacrifícios de toda a espécie; é um culto, uma devoção, uma inclinação do espírito, de que nada mais se espera que o interesse colectivo e o simples prazer espiritual. Por isso o P.e AREDE, vigoroso por natureza, tenaz por índole, entregando-se à História e à Arqueologia por bairrismo e tendência do espírito, perseverou nos seus estudos e, com o decorrer dos anos, pôde concluir a sua missão, legando à sua terra um monumento escrito e um local de concentração e estudo.

Isolado na província, nas horas de folga do sacerdócio, o Rev.º AREDE, triunfando das maiores dificuldades, pôde realizar sobre a sua freguesia, como disse, nada menos de três monografias. Poucas terras de âmbito tão pequeno se poderão gabar de possuir tamanha historiografia, «Cucujães», «Cucujães e o seu Mosteiro com o seu Couto nos Tempos Medievais e Modernos» e «Museu de Cucujães» são as três obras de valor histórico e arqueológico que ficarão a recordar continuamente a passagem luminosa do P.e AREDE por esta terra.

Para rematar com chave de ouro a sua vida de historiador e arqueólogo, acaba de ser inaugurado o pequenino Museu de Cucujães, para o qual a devoção do P.e AREDE vinha de há anos reunindo elementos, percorrendo os terrenos da região, sobretudo o célebre monte de Recarei, onde existiu outrora um castro, à procura de pedras da época pré e proto histórica.

Como escrevi noutro lugar, «a pedra, melhor elo que o ouro, pode marcar, com símbolos bem distintos, as várias etapas ela existência humana».

As toscas pedras aqui guardadas, de valor nulo a olhos de profanos, vistas por estudiosos têm valor inegável, pois ressuscitam milénios extintos, falam-nos de celtas e romanos, são documentos da história dó homem.

A marreta do pedreiro, por esse mundo além, tem obliterado monumentos sem conta, que, embora toscos, conservados intactos muita luz espalhariam sobre o Passado. Não são o vandalismo, a barbaria, o instinto de maldade, que levam a destruir as heranças preciosas das gerações extintas, mas quase sempre a ignorância. A ignorância, como se sabe, é o pior de todos os males e o que mais prejuízos acarreta.

/ 312 / Quantos castros, quantos dólmens, quantas lápides funerárias, quantos pelourinhos não têm sido destruídos, irreverentemente, pela ignorância, aproveitando-se os destroços em obras de alvenaria?...

Se o alvenel conhecesse o valor dessas pedras − desses castros, desses dólmens, dessas lápides funerárias, desses pelourinhos −, suspenderia o golpe cego que sobre elas descarrega, e colocaria essas pedras em lugar de destaque, no melhor ponto da freguesia, para que fossem veneradas por todos os olhos.

A falta de carinho para com as rudes pedras arqueológicas não é apenas atributo de ignorantes e analfabetos. Pessoas letradas conheço eu que não ligam a mínima importância a um dístico, a uma coluna, a um monumento da antiguidade.

Para combater essa falta de carinho e essa ignorância, torna-se necessária uma campanha intensa feita pelos arqueólogos, não apenas em revistas da especialidade, mas em jornais de larga difusão, para que possam ser iniciadas no culto pelo Passado as camadas populares.

E como o padre e o professor são as duas individualidades mais em contacto com o povo nos meios rurais, para conservar o mais possível o nosso património histórico e artístico, entendo que deveriam ser criadas cadeiras de elementos de arqueologia nos Seminários e nas Escolas do Magistério. O padre e o professor, convenientemente preparados, ficariam sendo os guardas vigilantes desses tesouros magníficos espalhados pelas aldeias de Portugal. E um e outro seriam auxiliares preciosos dos mestres arqueólogos, nos seus trabalhos de alta investigação.

A classe sacerdotal possui já hoje uma boa falange de arqueólogos: o abade do Baçal, o Rev.º VASCO MOREIRA, o cónego AGUIAR BARREIROS, o Rev.º AREDE − para falar apenas nestes; e, entre os professores, conheço dois que têm realizado importantes estudos de arqueologia e etnografia no Alto-Minho: ABEL VIANA e MANUEL BOAVENTURA.

A história local e a arqueologia são, pois, duas ciências valiosas que, cultivadas conscienciosamente, vão reflectir-se na História Nacional, servindo-lhe de alicerce. O P.e AREDE, que uma e outra tem cultivado com amor, ciência e prudência − não esquecendo nunca a frase de FUSTEL DE COULANGES que afirma que «em trabalhos eruditos, é necessário um ano de análise para autorizar uma hora de síntese» −, merece bem o aplauso dos estudiosos portugueses e sobretudo o reconhecimento, a gratidão de todos os cucujanenses, sem distinção de seitas, porque, acima de homem, susceptível de errar, incapaz de agradar a todos, está o historiador desta terra e o fundador do pequenino Museu de Cucujães, onde se guardam tantas relíquias.

O P.e ARE DE, escrevendo a sua obra e fundando este museu, que ficará sendo o relicário das coisas preciosas da freguesia, deu provas do seu talento e da sua cultura e concorreu para a elevação intelectual de Cucujães, chamando para ela a atenção dos arqueólogos portugueses, que, como todos os estudiosos, põem acima de tudo as questões espirituais.

Mesmo que a sua obra estacione por aqui e não seja acrescida de mais nenhum volume, o P.e AREDE trabalhou já o bastante para que o seu nome mereça consagração e para que Cucujães, mesmo depois da sua morte, o relembre e o consulte através dos tempos.

Na qualidade de amigo e quase discípulo −- pois o Rev.º AREDE tem posto à minha disposição, obsequiosamente, o seu saber e os seus livros − eu o saúdo, neste momento festivo para si e para a terra ao serviço da qual tem vivido e trabalhado.

ÁLVARO FERNANDES

/ 313 /

QUESTIONÁRIO

                                Aveiro, 8 de Agosto de 1935

Ex.mo Sr. Presidente da Câmara:

Encarrega-me, S. Ex.ª o Sr. Governador Civil de pedir a V. Ex.ª se digne enviar, com a possível brevidade, ao Ex.mo Comandante da Escola Central de Oficiais − Caxias − relação dos monumentos de arqueologia e história militar, do País, tais como citânias, cidadelas, castelos, alcáçovas, crastos, torres, cercas-militares-recintos amuralhados, atalaias, fortes, fortins, ou quaisquer vestígios dos referidos monumentos, que existam na área desse concelho. Da relação deve constar a indicação da localidade e uma ideia geral desses monumentos, estado de conservação e quaisquer outras informações que possam interessar sob o ponto de vista histórico ou tradicional, incluindo quaisquer fotografias, desenhos ou croquis que obsequiosamente possam ser fornecidos,

A Bem da Nação

Servindo de Secretário Geral, O Chefe da Repartição

(a) António Correia Vaz de Aguiar


RESPOSTA FORNECIDA PELO REVERENDO AREDE

MONUMENTOS DE ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA MILITAR EM CUCUJÃES E S. MARTINHO DA GÂNDRA DO CONCELHO DE OLIVEIRA DE AZEMÉIS


I − Da Freguesia de Cucujães:

a) Um Marco Geodésico, quase demolido, no lugar de Rebordões, junto de uma Mamoa, construído em 1854.

b) Um Marco Trigonométrico, bem conservado, no lugar de Fermil, do mesmo ano do anterior.

Ambos serviram para continuação da triangulação geodésica, de 2.ª ordem, cujos trabalhos principiaram em Portugal em 1788.


lI − Da Freguesia de São Martinho da Gandra:

Crasto − monte alto arredondado, e de difícil acesso. É sito no lugar chamado do Monte Crasto, da dita freguesia. Tem vestígios de muros.

Como se nota pela sua configuração e situação topográfica, mostra o mesmo ter sido uma aglutinação castrense, e ainda habitado, com seus terrenos circunjacentes, por algumas raças primitivas, e outras em sucessivos períodos históricos, como o certificam muitos objectos encontrados no referido sítio e já guardados no Museu Arqueológico e Etnológico de Cucujães − verdadeiros documentos da ciência da antiguidade na terra de Cucujães e de São Martinho da Gandra.

E assim:

a) No Período Pré-histórico − foram seus primeiros habitantes − homens da Época da pedra lascada (Época paleolítica).

Documento comprovativo: 1 machado (coup-de-poing) de quartzite Lascada.

− Teriam sido os Iberos (Euskaros) a mais antiga raça humana que habitou esta região?

b) No período Proto-Histórico − foram seus habitantes − homens da Época da pedra polida (época neoIítica).

/ 314 /

Documentos comprovativos:, 2 machados votivos de pedra polida, 1 amuleto fálico de pedra dura (emblema do órgão da geração-masculino), e outros machados de pedra de uso pessoal e doméstico, e ainda mós de pedra (manuais) do tipo neolíticó.

− Teriam sido os Celtas, a que pertenciam os Lusitanos, os habitantes desta mesma região logo a seguir às primitivas raças?
c) No Período histórico − foram seus habitantes principalmente:

1.º − Os Romanos.

Documentos comprovativos: Ponte Romana, do lugar da Pica, de Cucujães, tégulas, e mós redondas de pedra (manuais) da Época romana.

2.º − Os Godos, além de outros povos bárbaros juntamente com os naturais da região.

Documento comprovativo: a denominação de Castro Recharei, dada ao Crasto, acima referido, por D. Afonso Henriques, em sua Carta de Instituição do Couto de Cucujães para o Mosteiro Beneditino de Cucujães, datada de 7 de Julho de 1172 (ano de Cristo 1139). Além deste há outros documentos da época que dão ao Crasto a mesma denominação de «Castro Recharei».

«Castro Recharei», do lat. bárbaro da Idade-Média, é o mesmo que no lat. clássico «Recaredi Castrum».

Recharei, genit. de Rechareus, é evidentemente nome godo e, no caso sujeito, de pessoa. Essa pessoa foi Recaredo, 18.º Rei Visigótico, que se converteu ao catolicismo com a Rainha Bada, em 587, e fez a sua profissão de Fé Católica, no 3.º Concílio Toletano em 589.

É de crer, portanto, que o supradito Crasto tivesse servido de acampamento militar no tempo dos Romanos, e também nas invasões dos povos bárbaros e, nomeadamente, dos Godos, como se deduz do nome «Castro Recharei».

Cucujães, 17 de Agosto de 1935.

O Abade aposentado,

JOÃO DOMINGUES AREDE

 

Página anterior Índice Página seguinte