João, era a sua graça, e de
graça tinha o seu tanto ou quanto em seus dizeres e propósitos.
Eu mal o conheci. Já no ocaso da sua trabalhosa e arriscada vida, quando
abandonada a cana do remo, à míngua de vigor e ralé, transitara para o
honroso mister de escrivão da companha do «Trimbolim» ali na
borda da Costa-Nova.
Mas, até mim chegaram, envoltas em simpatia e respeito, informações
verbais muito interessantes acerca da sua curiosa e típica
individualidade.
Ainda por aí há-de haver quem se deva lembrar bem dele.
Possuía o ti Bicarada uma bela e garbosa figura de pescador reinol,
nado e criado ao contacto com o rugir leonino do mar proceloso, de forte
e sólido arcaboiço, ousado e destemido como poucos, afrontando com
indómita coragem os maiores perigos no seu arriscado posto de
reveseiro da proa.
As horas trágicas das grandes lutas com o mar, nas largadas difíceis e
cheias de perigos, para o lanço ou nas arribadas, ansiosas e patéticas,
com a praia cheia de escolhos, abismos profundos cavando-se na proa da
frágil meia-lua, vagalhões colossais e traiçoeiros jogando o
barco nas cristas espumosas como leve casca de noz, eram-lhe familiares
e desdenhosas.
Olhava com sobranceria o grande mar, cuspindo-lhe com desprezo ao ver a
pá do seu pesado remo espadanar ligeira no rolo cavado das águas
revoltas, sentindo-se soberbo e intangível perante as suas arremetidas.
Ele queria, até, que a caneca por onde bebia a marinha tivesse
proporções tamanhas que a asa fosse o arco-da-velha, para beber por ela
o vinho nas horas alegres de saco cheio na praia, e o mar salgado em
momentos de tragédia dantesca na borda!
Era soberbo e apocalíptico o raio do João Bicarada!...
Com ele na proa esguia do barco, e o velho arrais Batata
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ao governo do roçoeiro, a companha, ousada e temerária,
desafiava os maiores perigos, atravessando, impávida, a pancada do mar
numa arrancada soberba e heróica, por entre um alarido de gritos
selváticos e terríveis pragas de enxovalho e maldição ao mar revolto e
traiçoeiro.
Ora, esta coragem sobre-humana, este desprezo olímpico pela vida,
enfrentando a morte sem fraquezas nem desânimos, tinham-lhe granjeado na
borda do mar um lugar primacial entre a gente das companhas.
E assim é que, ao cabo da vida, quando um dia, com amargura e lágrimas,
cavando-lhe o rosto tisnado, ele teve que abandonar o seu posto de honra
no barco, foi-lhe dado como recompensa dos seus serviços o cargo de
escrivão.
Também para isso concorrera não pouco a manifesta superioridade de
aptidões que ele possuía sobre os companheiros, filha dos apreciáveis
conhecimentos adquiridos em rapaz, na escola do Sacristão Velho, homem
de bastante saber que em nada desmerecia do afamado mestre Ratola.
Eram-lhe familiares as contas de caixaria, lera o Velho
Testamento, a Bíblia, e até mesmo parte dos «Lusíadas». Destes,
aproveitava a cada passo alguns versos soltos para intercalar nas
conversas em horas de sueto e mar ruim.
Esse seu quê de estremado e bem falante, estremava-o, também, entre os
demais companheiros da praia.
Era consultado e ouvido com respeito nos casos intrincados e difíceis,
nas desavenças caseiras e nas questões da destrinça da dízima do
caldeirão e da restomenga.
Os seus créditos mais se consolidaram certo dia em que ele, com o seu
compadre e émulo em valentia, o José Pescador, foram ver a decapitação
de Galatea, a célebre cabeça falante, cortada do tronco pela gorja, e
nele depois reposta, com pasmo e surpresa do respeitável público!
Não podia o ti Pescador atinar nem conceber como aquilo pudesse ser
feito, dado como certo que ele vira com os seus olhos pecadores o corte
da cabeça da filha do saltimbanco, os olhos amortecidos e o sangue a
escorrer em bica.
−
Então vós, compadre, dizia o Bicarada, não enxergais como aquilo é
feito?
−
Anda ali bruxaria ou malefício, pela certa, ripostou o outro, incrédulo
e desconfiado.
−
Qual bruxaria, nem qual geringonça! Aquilo é tudo feito por
artemética, homem!
−
Então dizei-me dessas, compadre. Pois eu logo via, aquiesceu inteirado o
ti José Pescador, aceitando como um dogma ou sentença a profunda e sábia
explicação do Bicarada...
Possuía ele um altivo e soberano abandono pela vida, não a poupando nas
ocasiões de maior risco e perigo.
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Por faltar um dia à última hora o camarada ao ti Agualuza, foi como
remedeio, com este, varar o mar, ou seja levar ao Tejo uma
embarcação regional, a que chamam enviada, travessia esta
sobremodo arriscada.
Ora, por alturas da Figueira assaltou-os um rijo vento de travessia
acompanhado de fortes aguaceiros que fez naufragar a frágil embarcação.
O Bicarada, que era bom nadador, conseguiu manter-se uma noite inteira à
tona de água agarrado ao mastro, exausto e semi-morto. Em Buarcos foi
socorrido e agasalhado por velhos amigos da tarrafa em Lisboa,
até ganhar forças para regressar a Ílhavo, fazendo a viagem a pé pela
borda do mar.
Por cá já ninguém o esperava, julgando-o morto, pois até a família
tomara luto, tendo a mulher despejado e queimado a palha do enxergão no
carril, e pintado de negro as portas do casitório, como era então
costume entre nós.
Topou-se com ele no Curtido o sr. Barreirinha, que, com a sua autoridade
de regedor, o increpou por não ter mandado notícias suas à família que
tantos prantos por cá lhe fizera.
−
E então que avantage havia nisso, não me dirá? Quando eu chegasse
cá estava. Olhe que nós oitros quando vimos a este mundo é p'ró
mar nos comer um dia!...
Já velho e alquebrado, a fronte pendendo-lhe, derreada, para a areia
fulva da praia, viu-se ele, numa tarde fria e borrascosa de Novembro,
perto do mar, que um vento ponteiro de leste subitamente agitara estando
ainda lá fora os barcos lançando as chávegas.
Perscrutou, atento e receoso, o horizonte enfarruscado pela borrasca, e
para logo o rosto se lhe vincou e cobriu duma infinita tristeza,
denunciadora da amargura que lhe ia na alma.
Entrementes, viu surgir por entre a procela o barco ligeiro da sua
companha; açodado pelo temporal, procurando ganhar a borda numa
arribada perigosa.
Alentou-se, de momento, a carcaça do velho pescador, para erguer-se com
dificuldade; e arrancando com mão trémula e indecisa o coçado barrete da
embranquecida cabeça, com ele erguido no alto, à guisa de sinal
redentor, foi indicando ao barco o melhor local para arribar, murmurando
em voz cava e aflitiva:
Eh! pobres varões assinalados,
Sempre tendes uma tal praia lusitana!....
E vendo-se impotente, quase inútil, ante aquele perigo certo,
vergaram-se-lhe as trôpegas e cansadas pernas, tombando de borco na
areia húmida da borda, um fio de sangue chorado a escorrer-lhe da boca
aflitivamente escancarada, ali, perto daquele
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mar que o não comera em vida, antes vinha agora junto dele, numa
derradeira homenagem ao seu valor, em vaga de branca espuma, envolver o
seu corpo, abatido para sempre, num beijo de carícia e preito ao homem
humilde que criara, e ao herói obscuro que nunca vencera!
DENIZ GOMES
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