Deniz Gomes, O Bicarada, Vol. 1, pp. 73-76.

LITERATURA REGIONAL

(Costumes e Gente de Ílhavo)

O BICARADA

João, era a sua graça, e de graça tinha o seu tanto ou quanto em seus dizeres e propósitos.

Eu mal o conheci. Já no ocaso da sua trabalhosa e arriscada vida, quando abandonada a cana do remo, à míngua de vigor e ralé, transitara para o honroso mister de escrivão da companha do «Trimbolim» ali na borda da Costa-Nova.

Mas, até mim chegaram, envoltas em simpatia e respeito, informações verbais muito interessantes acerca da sua curiosa e típica individualidade.

Ainda por aí há-de haver quem se deva lembrar bem dele.

Possuía o ti Bicarada uma bela e garbosa figura de pescador reinol, nado e criado ao contacto com o rugir leonino do mar proceloso, de forte e sólido arcaboiço, ousado e destemido como poucos, afrontando com indómita coragem os maiores perigos no seu arriscado posto de reveseiro da proa.

As horas trágicas das grandes lutas com o mar, nas largadas difíceis e cheias de perigos, para o lanço ou nas arribadas, ansiosas e patéticas, com a praia cheia de escolhos, abismos profundos cavando-se na proa da frágil meia-lua, vagalhões colossais e traiçoeiros jogando o barco nas cristas espumosas como leve casca de noz, eram-lhe familiares e desdenhosas.

Olhava com sobranceria o grande mar, cuspindo-lhe com desprezo ao ver a pá do seu pesado remo espadanar ligeira no rolo cavado das águas revoltas, sentindo-se soberbo e intangível perante as suas arremetidas.

Ele queria, até, que a caneca por onde bebia a marinha tivesse proporções tamanhas que a asa fosse o arco-da-velha, para beber por ela o vinho nas horas alegres de saco cheio na praia, e o mar salgado em momentos de tragédia dantesca na borda!

Era soberbo e apocalíptico o raio do João Bicarada!...

Com ele na proa esguia do barco, e o velho arrais Batata / 74 / ao governo do roçoeiro, a companha, ousada e temerária, desafiava os maiores perigos, atravessando, impávida, a pancada do mar numa arrancada soberba e heróica, por entre um alarido de gritos selváticos e terríveis pragas de enxovalho e maldição ao mar revolto e traiçoeiro.

Ora, esta coragem sobre-humana, este desprezo olímpico pela vida, enfrentando a morte sem fraquezas nem desânimos, tinham-lhe granjeado na borda do mar um lugar primacial entre a gente das companhas.

E assim é que, ao cabo da vida, quando um dia, com amargura e lágrimas, cavando-lhe o rosto tisnado, ele teve que abandonar o seu posto de honra no barco, foi-lhe dado como recompensa dos seus serviços o cargo de escrivão.

Também para isso concorrera não pouco a manifesta superioridade de aptidões que ele possuía sobre os companheiros, filha dos apreciáveis conhecimentos adquiridos em rapaz, na escola do Sacristão Velho, homem de bastante saber que em nada desmerecia do afamado mestre Ratola.

Eram-lhe familiares as contas de caixaria, lera o Velho Testamento, a Bíblia, e até mesmo parte dos «Lusíadas». Destes, aproveitava a cada passo alguns versos soltos para intercalar nas conversas em horas de sueto e mar ruim.

Esse seu quê de estremado e bem falante, estremava-o, também, entre os demais companheiros da praia.

Era consultado e ouvido com respeito nos casos intrincados e difíceis, nas desavenças caseiras e nas questões da destrinça da dízima do caldeirão e da restomenga.

Os seus créditos mais se consolidaram certo dia em que ele, com o seu compadre e émulo em valentia, o José Pescador, foram ver a decapitação de Galatea, a célebre cabeça falante, cortada do tronco pela gorja, e nele depois reposta, com pasmo e surpresa do respeitável público!

Não podia o ti Pescador atinar nem conceber como aquilo pudesse ser feito, dado como certo que ele vira com os seus olhos pecadores o corte da cabeça da filha do saltimbanco, os olhos amortecidos e o sangue a escorrer em bica.

Então vós, compadre, dizia o Bicarada, não enxergais como aquilo é feito?

Anda ali bruxaria ou malefício, pela certa, ripostou o outro, incrédulo e desconfiado.

Qual bruxaria, nem qual geringonça! Aquilo é tudo feito por artemética, homem!

Então dizei-me dessas, compadre. Pois eu logo via, aquiesceu inteirado o ti José Pescador, aceitando como um dogma ou sentença a profunda e sábia explicação do Bicarada...

Possuía ele um altivo e soberano abandono pela vida, não a poupando nas ocasiões de maior risco e perigo.
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Por faltar um dia à última hora o camarada ao ti Agualuza, foi como remedeio, com este, varar o mar, ou seja levar ao Tejo uma embarcação regional, a que chamam enviada, travessia esta sobremodo arriscada.

Ora, por alturas da Figueira assaltou-os um rijo vento de travessia acompanhado de fortes aguaceiros que fez naufragar a frágil embarcação. O Bicarada, que era bom nadador, conseguiu manter-se uma noite inteira à tona de água agarrado ao mastro, exausto e semi-morto. Em Buarcos foi socorrido e agasalhado por velhos amigos da tarrafa em Lisboa, até ganhar forças para regressar a Ílhavo, fazendo a viagem a pé pela borda do mar.

Por cá já ninguém o esperava, julgando-o morto, pois até a família tomara luto, tendo a mulher despejado e queimado a palha do enxergão no carril, e pintado de negro as portas do casitório, como era então costume entre nós.

Topou-se com ele no Curtido o sr. Barreirinha, que, com a sua autoridade de regedor, o increpou por não ter mandado notícias suas à família que tantos prantos por cá lhe fizera.

E então que avantage havia nisso, não me dirá? Quando eu chegasse cá estava. Olhe que nós oitros quando vimos a este mundo é p'ró mar nos comer um dia!...

Já velho e alquebrado, a fronte pendendo-lhe, derreada, para a areia fulva da praia, viu-se ele, numa tarde fria e borrascosa de Novembro, perto do mar, que um vento ponteiro de leste subitamente agitara estando ainda lá fora os barcos lançando as chávegas.

Perscrutou, atento e receoso, o horizonte enfarruscado pela borrasca, e para logo o rosto se lhe vincou e cobriu duma infinita tristeza, denunciadora da amargura que lhe ia na alma.

Entrementes, viu surgir por entre a procela o barco ligeiro da sua companha; açodado pelo temporal, procurando ganhar a borda numa arribada perigosa.

Alentou-se, de momento, a carcaça do velho pescador, para erguer-se com dificuldade; e arrancando com mão trémula e indecisa o coçado barrete da embranquecida cabeça, com ele erguido no alto, à guisa de sinal redentor, foi indicando ao barco o melhor local para arribar, murmurando em voz cava e aflitiva:


Eh! pobres varões assinalados,
Sempre tendes uma tal praia lusitana!....


E vendo-se impotente, quase inútil, ante aquele perigo certo, vergaram-se-lhe as trôpegas e cansadas pernas, tombando de borco na areia húmida da borda, um fio de sangue chorado a escorrer-lhe da boca aflitivamente escancarada, ali, perto daquele
/ 76 / mar que o não comera em vida, antes vinha agora junto dele, numa derradeira homenagem ao seu valor, em vaga de branca espuma, envolver o seu corpo, abatido para sempre, num beijo de carícia e preito ao homem humilde que criara, e ao herói obscuro que nunca vencera!

DENIZ GOMES

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PAÇOS DO CONCELHO DE ÍLHAVO

Construção do século XIX, Antigo «Colégio de Nossa senhora do Pranto» adquirido pelo Município e adaptado em 1924. Funcionam ali as Repartições Municipais de Finanças, Tesouraria, Registo Civil, posto da Guarda Nacional Republicana e um teatro.

 

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