8.2 – «Filosofia da
Educação» ou «Educação filosofante»?
A Filosofia da educação é analítica
num primeiro tempo: debruça-se sobre o problema «educação» para nele
provocar a revelação ontológica e teológica, lembrando Aristóteles e
Heidegger. Considerando, como já se viu ao falar de antropagogia,
que a educação é a revelação do ánthropos, caberá, a este
acto de revelar e revelar-se, a conquista da visão do sábio
numa linha aristotélica: uma visão o mais vasta possível, que
não se prende a todos os pormenores e que está simultaneamente
atenta e descomprometida da vida concreta.
Um mero aplicar a filosofia à
educação seria colar pensamentos filosóficos à expressão de uma
situação educacional concreta. Seria mais exacto dizer que se
filosofa a educação, revelando pelo enfrentamento deste
problema-objecto (os heideggerianos poderiam desenvolver
oportunamente o conceito de Sorge), a preocupação
genuinamente filosófica, que leva o ser humano a desejar o
fundamento do sentido da existência, cuja manifestação objectal é a
vida, e por excelência a vida humana. Sublinhe-se, mais uma
vez, que se é a vida como fenómeno trans-individual, cabendo a cada
pessoa, na medida da sua maturação, realizar-se como “administradora
da vida”.
8.2.1 –
O desejo de filosofar
O termo «filósofo» foi
provavelmente criado por Protágoras (Fritz, 1974, 253). S. Tomás de
Aquino atribui o termo a Pitágoras, que o teria adoptado por
modéstia – amator sapientiae
.
Mas foi Sócrates que o aplicou a quem pensa a sério, a quem luta
pela sabedoria e discute as opiniões e acções para avaliar a sua
consistência. Segundo o autor do artigo citado, talvez se possam
reduzir a dois os seus princípios: nada fazer de mal, nem mal; quem
realmente conhece o que é bom e correcto, age em conformidade.
Para Heidegger, a Filosofia é a
admiração da ex-sistentia, que implica a preocupação pelo
sentido da vida, ou em termos mais heideggerianos, o sentido do ser.
Para este filósofo, segundo Zubiri (19963, 274), ao projecto da
minha existência pertence o cuidado (Sorge, cura em latim)
«de descobrir e compreender o que são todos os seres que há nesse
mundo» (o trabalho da alétheia!). O nosso modo de
ex-sistere implica «formalmente a possibilidade de vir desde o
ser ao que ainda não somos mas que viremos a ser». Mas não se
entende o ser a partir do Homem: é o Homem que se entende a partir
do ser, como estado presente (Da) do ser (Sein); ele
vem do ser para se encontrar a ele próprio, e o campo dos seus
projectos é o mundo (Zubiri, 1963, 272-273).
A ideia de que o Homem deve ser
olhado como projecto de vida perfeita e feliz também é sustentada
por Espinosa, para quem filosofar é procurar a filosofia da vida.
Aristóteles já teria dito que o grande problema humano é encontrar
as melhores condições para alcançar o estado mais perfeito possível,
o que implicaria uma análise vocacional do trabalho e a
possibilidade de escolhas sucessivas na vida, em ordem a uma vida de
qualidade. Fritz (1974, 254) chama fortemente a atenção para que
Aristóteles não trocou o mundo das ideias por um mundo contingente:
em vez das ideias transcendentes de Platão, propõe que o espírito
humano se preocupe com o que pode captar (de universal, de "ideático")
nos seres individuais.
Esta vida perfeita implica
necessariamente a felicidade. Com efeito, a procura da felicidade é
a mais evidente motivação da acção humana. «A felicidade é o fim
último de que é supérfluo inquirir o porquê» (Canto-Sperber, 1996,
166). Bem na linha de Aristóteles (cfr. particularmente os Livros I
e X da Ética a Nicómaco), e mesmo na linha de várias
correntes eudemonistas e até de um certo hedonismo racional (onde se
poderia falar de Epicuro), S Tomás de Aquino afirma a tendência
natural para a felicidade: Primum principium in ratione practica:
Bonum est faciendum et prosequendum et male vitandum (I-IIae,
q.94, a.2). É a primeira lei natural, com um certo sabor estóico, na
opinião de Victoria Camps (1988, vol. I, 431). Note-se que «bonum» e
«malum» não estão restringidos ao contexto moral: Haldane (1998,
108) escreve que «o objectivo da educação é promover uma vida humana
boa [good] cultivando a virtude. Os termos "bom" e "virtude"
não são aqui utilizados num sentido moral estreito. De facto, o
sentido primário deles é não-moral. Esta forma de naturalismo é
redutiva dos conceitos morais enquanto pretende cobrir a sua
aplicação própria, nos termos de promoção e realização [achievement]
de certos estilos de vida, cuja descrição utiliza apenas conceitos
de valor não moral, apropriados aos vários aspectos da natureza
humana. Do mesmo modo, a noção de virtude deve ser explicada pela
referência a quaisquer capacidades e disposições requeridas como
meio de realização de uma vida boa, ou como constitutiva desta».
Menos terra à terra, aparentemente,
do que Aristóteles e Tomás de Aquino, Kant dirá que o Homem é um
projecto sempre a ser feito, um projecto de felicidade sem dúvida,
mas no qual é da máxima importância «saber que algo é porque deve
ser» (Zubiri, 1963, 112).
A vida perfeita, porém, terá que
ser uma vida total (Bergson falará de «experiência
integral»), em que todas as potencialidades do ser humano concorram
para admirar a existência dos mais diversos ângulos. É neste sentido
que se pode referir Dilthey que se debruça sobre o «enigma da vida»,
do mundo, dos valores, das acções: na vida, o Homem vê-se rodeado e
tocado pelo invisível; e a experiência religiosa gera uma concepção
religiosa do mundo. A fulcralidade deste tema transparece, aliás, em
inúmeras obras (livros e artigos) dentro da especialidade de
filosofia da educação. Por seu lado, a concepção artística do mundo
manifesta o poder e importância da liberdade. Note-se que os
recentes estudos sobre a arte, do ponto de vista da Filosofia da
Educação, ainda não adquiriram o alcance que lhes devia caber.
A vida total implica a presença e
aproveitamento de todas as nossas emoções. Schopenhauer considera
que a razão não consegue alcançar a Vontade Cósmica Universal, que
se exprime na aparente confusão e conflito heraclitiano da natureza
e do ser humano. Só penetrando esta realidade sem aprioris
racionais, é que poderemos contactar a verdadeira realidade. O mesmo
sentimento parece encontrar-se em Nietzsche, que advoga a educação
como destruição dos velhos valores supostamente racionais, e criação
de um mundo novo, onde o Homem faz valer toda a sua força sem peias.
Por sua vez, Kierkegaard dirá que o essencial da vida não é
pesquisar infinitamente, mas sim um resoluto compromisso que se
alimenta do aspecto emocional, da ansiedade e do desespero. E
Scheler mostrará a sua preocupação com o papel das emoções nos
valores (cfr. Levi, 1974b, 271-273). A História da Educação
testemunha a importância de todo este pensamento para a prática
educativa e Filosofia da Educação.
É neste quadro de vida total que se
manifesta a Filosofia como preocupação por problemas aparentemente
particularizados como a justiça e a liberdade. Platão, John Stuart
Mill, Jaspers, Dewey e Sartre são alguns dos mais notáveis filósofos
sobre estes temas. Aristóteles (1972, 982 b 26) já tinha sublinhado
que a sabedoria só é património do «homem livre», pois só ele existe
como homem. Só os homens livres é que podem agir na linha do bem
desejado, só eles podem atingir a virtude (areté) baseada no
hábito (héksis) de agir em vista do melhor. A liberdade é
mesmo uma condição do theorein, do que se falará no último
parágrafo.
Para este modo de «experiência
perfeita», é necessário que a Filosofia, e consequentemente a
Educação, se abram e favoreçam, sem pruridos, o mais vasto leque de
conhecimentos possível.
Seguindo de perto as sinopses
apresentadas por A. Maurer (1974), A. W. Levi (1974a,
1974b) e K. Fritz (1974), poderíamos focar os seguintes momentos de
"abertura" do pensamento filosófico: no séc. XII, a velha educação
baseada nas artes liberais enfatizando a gramática e o estudo dos
clássicos latinos deu lugar à lógica, dialéctica «e ao ensino do
quadrivium com novos métodos extraídos da mais profunda
filosofia», como escreveu João de Salisbúria, da Escola de Chartres
(Maurer, 1974, 258). O filósofo S. Alberto Magno dedicou a sua
atenção à botânica, zoologia e mineralogia, domínios em que realizou
algumas descobertas. Também conseguiu elaborar uma síntese do
aristotelismo e neoplatonismo, conjugando Aristóteles, Avicena,
Gabirol, S. Agostinho e o Pseudo-Dionysius, dando um ilustre exemplo
de vastidão de interesses. Por sua vez, S. Tomás de Aquino
destacou-se como tendo procurado e aproveitado a verdade em tudo
quanto estudou, usando-a para enriquecer e solidificar o pensamento
cristão. Para ele, a razão e a fé não se podem contradizer, umas vez
que nascem da mesma fonte divina.
O criticismo renascentista, que
tentou a independência relativamente à religião e à autoridade ex
cathedra, fez nascer muitos estudos em filosofia política (Machiavelli,
Hobbes, Grotius...), humanismo (como Pico della Mirandola, Erasmus,
Montaigne...) e na filosofia da natureza, onde lembraremos sobretudo
Galileu e Descartes. Nos seus Principia, Descartes apresenta
a filosofia como o estudo da sabedoria e o conhecimento perfeito de
tudo o que podemos conhecer, o que nos abre a sabedoria da vida
(exemplificada na moral), a sabedoria da integridade biológica e o
poder de invenção (exemplificado na sua mecânica). Finalmente, as
ideias fundamentais do Iluminismo – aposta na razão, convicção do
progresso intelectual e do papel da natureza como fonte de
inspiração e de valores, defesa do ideal de tolerância e
liberdade... – produziram uma explosão de estudos interdisciplinares
em todos os campos, como a História, Economia, Sociologia, Direito,
etc., onde as diferentes correntes filosóficas se entrechocam.
Esta explosão de conhecimentos
reactivou o conceito de filosofia como sabedoria universal, no
sentido comteano. É ainda na linha de Comte que se pode dizer que é
o assombro e o choque com os diversos existentes que motivam a razão
e o conhecimento técnico a ex-plicar a organização do mundo,
estabelecendo teorias que permitem prever as consequências e dominar
assim todas as coisas, de tal modo que as possamos modificar. Kant,
aliás, já dizia que a razão era a forma como o espírito "se impunha"
ao mundo. Como é do conhecimento comum, o mesmo filósofo assinala à
filosofia preocupar-se com os verdadeiros fins, poder e limites da
razão humana.
Curiosamente, Nicolau de Cusa
parece aproximar-se de Heraclito, ao falar de Deus como
coincidentia oppositorum. Na sua infinitude, Deus abarca todas
as coisas numa perfeita unidade, como que superando o clássico
princípio de contradição. E nos fragmentos de Heraclito podemos ler:
«A harmonia é feita de contrastes» (14, A27); «A partir das
divergências, forma-se o mais belo dos enredos. E assim todas as
coisas têm origem na discórdia» (14, A5). E para que não seque a
novidade, podemos dizer que a discórdia é um princípio permanente e
que deve ser continuamente actualizado. Por isso, «é preciso agitar,
para que uma boa mistura não se desagregue» (14, A6), ao que se
deverá conformar o movimento do filosofar e do educar. Não se sente
o próprio Homem um foco de contradições?... Todas as coisas estão em
movimento, todas as coisas como que dançam coreograficamente, sem a
linearidade do rio que apenas vai correndo: Panta khorêi kai
oudén ménei (14, A125).
E terminamos com uma citação de
Moreno (1997, 6): «Hemos dado cabida a una tonalidad polifónica de
voces, pues la verdad es sinfónica».
8.2.2 –
A educação “filosofante”
Para Platão só a verdade deve ser
ensinada. Ora «só a filosofia procura uma verdade global, sintética»
(Vieillard-Baron, 1994, 16), em contraste com as verdades "parciais"
dos outros conhecimentos. Portanto... O autor citado
acrescenta que «educar é ensinar ao homem uma verdadeira filosofia»
(op. cit. 15), ensinar ao Homem as grandes perguntas e
preocupações (das quais se pretendeu dar uma visão geral, no
parágrafo anterior).
Brezinka (1992, 167) faz suas as
palavras de John Cohn: «A pedagogia depende essencialmente da
filosofia» – uma vez que a pedagogia precisa, para se dar, de uma
teoria sobre o sentido da vida humana. Boavida (1993, 353), que
dedica muitas páginas à interdependência destes dois conceitos,
escreve que «a filosofia é pedagógica na medida em que é dialógica e
analítica, na medida em que produz e exige um discurso crítico que é
simultaneamente desconstrutivo/construtivo e vocacionalmente
fundamentador de novas evidências» (1993, p.353). E continua, na
mesma página: «Por outro lado, a pedagogia é filosófica na medida em
que, definindo fins e meios, concebendo um homem e uma sociedade,
reconhecendo modelos, hierarquizando valores, isto é, pressupondo
uma cosmovisão, prefigura uma preocupação e uma função filosóficas.
E (...) uma vez que projecta e aperfeiçoa, se organiza segundo
padrões e se dinamiza de acordo com referências, é teleológica e,
por vezes, utópica. Em qualquer dos casos, portanto, filosófica».
Na mesma obra, explica (378-381)
como a relação íntima entre Filosofia e Pedagogia também se
exemplifica com o movimento pela filosofia na infância. Pensar é
filosofar. Filosofar é entusiasmar-se pelas construções da sabedoria
humana onde o outro assume o relevo do eu, descobrindo
o vastíssimo problema da comunicação, na qual a metodologia
pedagógico-filosófica encontra o seu grande tronco matricial. A
questão do filosofar na infância, adolescência, adultez e velhice,
dá relevo à «vocação» da Filosofia da Educação, ao criar o conceito
de antropagogia.
Mas para que este conceito se
concretize com a maior eficácia possível, é imprescindível
fundamentar e ordenar um «tempo e templo» particularmente propícios
à progressiva revelação do ánthropos, com a preocupação de
bases sólidas para a vastidão do conhecimento e para a construção da
identidade pessoal. Tempo e templo provêm do étimo indo-europeu
tem, cujo sentido geral é «cortar»: podem pois significar um
corte na «durée» e no espaço, conferindo-lhes uma função e estatuto
especiais.
Surgiram instituições públicas e
privadas, com estruturas e políticas próprias, mas variando estas
também no espaço e no tempo. Digamos de passagem que a controvérsia
sobre a razão de ser destas instituições é um dos problemas em
filosofia da educação. Como quer que seja, a educação, como política
pública, não se pode gerir como uma empresa ou código de estradas. É
um processo profundamente ligado às questões fundamentais da vida,
como projecto pessoal. E não pode ignorar as discussões metafísicas
sobre a pessoa e a felicidade, nem tirar partido do facto da
multiplicidade de opiniões (o Bem não se identifica com o "Bem que
eu vejo").
Neste tempo e templo, procuramos o
mínimo de interferências para compreender e realizar o valor da
vida a sério. Como diria Agostinho da Silva 1990, 30), não
devemos desistir de fazer o que podemos, por muito que nos critiquem
negativamente, por muito que nos autocritiquemos devastadoramente.
Nunca faremos tudo bem, mas devemos tender para fazer o melhor
possível, nas mais "insignificantes" coisas e nas de
"responsabilidade", como dar uma aula, escrever... E continua o
autor citado: «Um dia, a obra será classificada como inferior, mas
só por ela será possível esta sentença dos juízes; se o que se
escreveu pode ser considerado mau já o mesmo se não dirá do acto de
escrever; eis a base em que se firmaram as escadas que vão até ao
céu, eis o ideal alicerce dos templos perfeitos; não os erguemos nós
próprios, mas que importa? Adivinhamos os homens futuros que
puliriam os fustes e abririam os relevos e tudo demos à vida para
que eles existissem; se recuássemos, teríamos recuado o seu
aparecimento; mas foi por temos trabalhado em lodo e água turva que
a ponte se lançou entre eles e a cultura; foi por nós que se fez a
viagem que os limpou da baixa condição». E em «Da frialdade
científica», (op. cit. 12) refere a falta inicial – o
desprezo do que não é comum, à qual «haverá que juntar a de um
ensino mal administrado, a de uma cultura insignificante; o amor da
ciência, a compreensão do que ela encerra de mais sublime que todas
as estátuas e todos os poemas só podem vir do seu conhecimento; e
esse exige um esforço, uma aplicação, uma persistência de trabalho,
uma abundância de informações, um poder de raciocínio que de nenhum
modo se pedem na apreciação do ritmo das linhas». O que faz lembrar
Montaigne, para quem a educação não é uma mobília, mas uma têmpera.
No século passado, os belos textos de Lavelle (particularmente L’Erreur
de Narcisse e La Conscience de Soi) desenvolvem o
conceito de «génie propre» intrincado com o de «vocação»: a
educação permite-nos aproveitar e adaptarmo-nos a tudo – mas sem
nunca perdermos a nossa identidade, que se fortifica com a
fidelidade ao projecto pessoal nas pequenas e grandes coisas. Está
em jogo a harmonia da pessoa, em que as artes desempenham um papel
fulcral, já desde os gregos clássicos – e assim se põe de lado uma
interpretação arriscada do último texto citado de Agostinho da
Silva. Para Aristóteles, a arte (tékhne) é a primeira via
para atingir a verdade (Ética a Nicómaco, VI, III, 1).
Confirmando o valor da arte para a
revelação do ánthropos, M. Ives (1970, 14-19) lembra a escola
pitagórica, que vê no indivíduo um microcosmos recreador da ordem
cósmica, em que o todo dá sentido às partes. Lembra Platão, para
quem o homem justo combina a razão, o desejo e a paixão, como uma
harmonia de três notas – a própria ginástica só contribui para a
harmonia da pessoa, quando a excelência de uma alma boa procura as
melhores condições para o corpo. «O ritmo e a harmonia penetram as
camadas mais profundas da alma» (República), mas a
personalidade harmoniosa não é necessariamente uma sucessão de
frases musicais com a mesma chave: pode variar, mais ou menos
bruscamente, com pausas, pianíssimos e fortíssimos. Tudo isto se
integra num todo que dá o "tom moral", «na personalidade idealmente
harmoniosa como é representada pelo verdadeiro schoene Seele,
desdobrando a vida inteira como um modelo cheio de beleza e
dignidade» (op. cit. 67). O que leva Macbain (1986) a
perguntar, na sua introdução a The Book of a Thousand Poems:
«será assim tão démodé o treino da linguagem, a locução
clara, a compreensão do humor e do divertido [fun], a
revelação da beleza no pensamento e na apreciação dos valores mais
altos?»
Aliás a educação filosofante de
modo algum poderá fugir ao lugar da arte como uma resposta aos fins
do filosofar. Nela se podem aliar a liberdade, o dever e o
transcendente: o ser educável, sempre capaz de se ultrapassar a si
próprio não pode limitar-se à adaptação acima referida, por mais
rica que seja: tem que descobrir o seu próprio valor e o da sua
vontade. E como alerta Haldane (1998, 113), «se não nos pudermos
ancorar na ideia de um télos natural, a noção de virtude
afoga-se no meio da turbulência criada pelo geral cepticismo moral».
Note-se que, na linha de Aristóteles, a educação é libertadora, em
contraponto com o facto de só poder ser educado o "homem livre",
capaz de criar o seu tempo e templo para se elevar até à sabedoria
(o termo latino liberi significa "livres" e "filhos",
procedendo do étimo indo-europeu leudh = crescer).
Neste novo espaço-tempo, a
filosofia, como temos vindo a querer dizer, é fulcral mas age
"subterraneamente". Aí surge a figura do educador-filósofo, que
poderia ser caracterizado, conforme disse Platão e repetiram
Montesquieu e Fichte, nomeadamente nas Conférences sur la
destination du savant, deste último (Vieillard-Baron, 1994,
20-21 e 48-51), como não sendo um puro especulativo, por mais genial
que seja, não se sentindo feliz sem tirar os companheiros das trevas
e ilusões da «caverna». Depois de analisar longamente o conceito de
«sábio» [savant], Fichte conclui que «o seu destino é ser
pedagogo da humanidade» (op. cit. 50), utilizando a
sabedoria do longo e errático caminho da filosofia.
O educador-filósofo precisa de
enfrentar o practicismo redutor da consciência dos professores e
educadores em geral. Como diz Patrício (1993a, 51-52), «mitifica-se
irracionalmente o puro fazer, a prática conceptualmente vazia.
Reduz-se anti-humanamente a relação educativa a uma relação
estritamente objectal, em termos quase físicos». Ora «não é possível
realizar a prática humana mais importante, que é a da construção
humana do próprio homem, sem a pensar até ao fundo e sem lhe dar
sentido» – como é impossível “fazer educação” sem um tempo e templo
dignificado. Por isso continua o mesmo autor (Patrício, 1997, 27) «Coménio
disse-nos que a escola é oficina da humanidade. Concordarei, se essa
oficina for portadora da natureza e dignidade do templo. Poderemos
não estar hoje à altura da escola, mas a escola é a instituição mais
nobre que o homem criou e o templo mais sagrado que edificou. É na
escola que o homem se faz germinar a si mesmo. O que há de
espiritualmente mais elevado na obra do homem tem a sua fonte nessa
germinação. Que é arte senão uma escola? Que são a técnica, a
ciência, o direito, a filosofia, senão escolas? Que é a religião
senão a mais funda e ansiosa escola do homem?».
É com a mesma preocupação que
escreve Simões: «Ao ler um autor tão consagrado como Coménio, pode
colher-se a ideia (apressada) de um certo didactismo iluminista,
isto é, que um ensino escolar, ministrado por métodos infalíveis,
resolveria o problema da educação. Porém, não seria preciso muito
esforço de atenção para se dar conta de que o pedagogo checo (1657)
considera ineficaz e pernicioso o saber que se não converte em
moralidade (p. 151) e que a escola não corresponde ao seu fim
quando, além do saber, não inclina a vontade para o bem» (1989, 9,
nota).
Os objectivos dos diferentes ramos
de saber, como a física e a arte, têm que ser pensados deste modo,
sem o quê o professor/educador fica gravemente reduzido na sua
formação, e não é competente para a formação da nova geração (cfr.
White, 1982, 123).
E na dimensão filosófica, nunca
deveriam faltar miradoiros para a «admiração», para o «projecto de
vida perfeita», para as «emoções», para a «vida total», para a
«felicidade»... Mas este olhar tem que ser comprometido, convidando
a viver diferentes experiências filosóficas.
Novamente se reaviva o desejo da
verdadeira teoria, só possível no templo do silêncio. Vale a pena
citar um dos belos textos de André Gide (1946, 30-31):
Nous vivons pour
manifester.
Tout homme qui ne
manifeste pas est inutile et mauvais.
Tout représentant de
l'Idée tend à se préférer à l'Idée qu'il manifeste. Se préférer -
voilà la faute.
L'artiste et l'homme
vraiment homme, qui vit pour quelque chose, doit avoir d'avance fait
le sacrifice de soi-même.
Et maintenant, que
manifester? - On apprend cela dans le silence.
*
* *
É intrínseco à
educação estar "em crise". Sobretudo com a recente dimensão de
educação contínua, o conceito de educação compreende em si próprio o
"joeirar" da vida, em todos os momentos – de trabalho, de descanso,
de diversão e de sofrimento. De modo nenhum me refiro aos crivos
de "estandardização", mas à "joeira" de todas as situações da vida,
fruto e seiva de criatividade: a vida é uma arte de joeirar.
O processo
educativo é pois estruturalmente crítico, colocando a todos os
implicados numa "cisão contínua" com o passado, o presente e os
projectos – sempre em mudança. O que de modo algum tende, por si, a
destruir a identidade do educador/educando (cfr. Veiga, 1996). Nem o
passado, nem o presente, nem o futuro são desconsiderados. Muito
pelo contrário, são altamente valorizados enquanto jogos de
estruturação, enriquecendo a experiência e tornando o projecto mais
racional e mais dotado de intuição. Talvez se pudesse aplicar a
célebre frase de Heraclito, para quem «panta khorei (e não
apenas "rhei") kai oudén ménei»: tudo está em movimento, como
que numa dança "coreográfica" e nada permanece imóvel
Creio esconder-se aqui um rastilho do "mau positivismo": a ciência
social "isola" as enzimas da mudança da sociedade, e com elas forma
um novo composto. Pressupõe-se também o conceito de Durkheim sobre
educação. Mas para dizer – e fazer – tudo isto, não é necessária a
educação como compromisso vital, – e portanto original? Não se segue
que é a educação que muda a sociedade – mais do que o contrário? E
sendo a educação um "joeirar", não deve ser o "homem educado" a
orientar (sem esquecer as origens) a mudança social?.
É necessário, justamente, sentir o
espírito de grupo – por muito pequeno que este seja – que alimente a
determinação, discuta as ideias sem as destruir e muito menos sem
destruir os participantes: criando um novo estilo de diálogo, em que
todos procuram a riqueza nele contida, muitas vezes só virtualmente,
mas que pode originar uma cadeia ascendente de ideias novas, ideias
validadas, fundamentadas, conhecedoras do ambiente que nos cerca e
da praxis optimal, elaborando juízos de acção bem joeirados pela
prudência. Note-se que a prudência é uma pré-avaliação e também
premonição do possível, que de modo algum diminuirá o entusiasmo da
mudança. Apenas leva à discussão, em "grupo perfeito", o próprio
conceito de mudança, com as suas raízes no passado e nos sonhos do
futuro, procurando, mais uma vez, o difícil equilíbrio da virtude
aristotélica. "Mudar por mudar" não faz sentido; como não o faz
"manter por manter", nem o "porque sim" de quem não tem a faculdade
ou a coragem de fundamentar uma linha de orientação.
Um efeito
perverso do que se disse nos parágrafos anteriores, poderá ser o
relativismo actual e o medo de afirmar e de se afirmar que chegam a
minar a "confiança" necessária para elaborar teorias da educação
(cfr. Moore, 1983, 88). O medo ao dogmatismo e fundamentalismo
exacerbou-se de tal modo que se transformou em "Horobus":
anti-dogmatismo fundamentalista e anti-fundamentalismo dogmático.
Como já dizia em
Filosofia da Educação e Aporias da Religião (Veiga, 1988,
31), a referência à totalidade ou uma visão tendencialmente
completa do mundo podia ser um critério do homem educado, pois
deixa-nos supor uma firmeza originária, reveladora da sua
potencialidade. A justificação teórica é necessária para que o
trabalho dos educadores seja coerente e com sentido. Com efeito, a
coerência interna da argumentação filosófica facilmente se desfaz ao
penetrar a realidade educacional. Verifica-se que mesmo os
argumentos, em si solidamente fundamentados, carecem da retaguarda
de uma teoria sólida (cfr. Moore, o. c.).
M. Fabre (1999,
271-272) retoma, numa excelente síntese, o tema principal: «A
filosofia não é um corpo de saberes mas um questionamento»: «é
uma interrogação total» sem matéria específica, uma atitude de
inquietação e aventura perante a vida; «é um questionamento
radical», enquanto procura aprofundar e "suspeitar" o mais
possível, consciente porém de que não se pode ir “ad infinitum” (por
razões teóricas e práticas!); «o fim último é aquilo a que nos
devemos prender» seja o bem de Platão, a pessoa humana ou a
vida; «é a razão que conduz este questionamento», a razão em
exercício.
Referindo-se a Bachelard, M. Fabre
(ibid., 273-274) lembra que o espírito é escola: com efeito,
o cogito implica desdobramento não patológico do eu em mestre
e discípulo, uma vigilância intelectual de si próprio, que é
condição de rigor e fecundidade.
Se
aceitarmos a Filosofia da Educação como o «saber crítico, que
esclarece os conceitos, os enunciados e as argumentações que
utilizam educadores e pedagogos» (Fullat, 1990b, 443), já veríamos
aqui de algum modo fundamentada a diversidade de temas que se
encontra sob a capa de Filosofia da Educação.
A Filosofia da
Educação teria assim duas «orientações principais: a) sobre o que
se diz (análise lógica da linguagem, epistemologia); b) sobre o
que se quer (antropologia, axiologia, teleologia)» (ibid.,
444).
Como escreveu A.
D. Carvalho (1998, 115-116), «a reflexão sobre a educação
delineia-se (...) como uma indagação filosófica múltipla em que
sobressaem, designadamente, uma ontologia do limite, uma ética da
responsabilidade, uma hermenêutica do desejo, uma
estética da palavra e uma antropologia da esperança».
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