Manuel Alte da Veiga, Um critério para a Educação?, Braga, 2004.


8 – Sophia e o desejo de theoria

 

8.2 – «Filosofia da Educação» ou «Educação filosofante»?

 

A Filosofia da educação é analítica num primeiro tempo: debruça-se sobre o problema «educação» para nele provocar a revelação ontológica e teológica, lembrando Aristóteles e Heidegger. Considerando, como já se viu ao falar de antropagogia, que a educação é a revelação do ánthropos, caberá, a este acto de revelar e revelar-se, a conquista da visão do sábio numa linha aristotélica: uma visão o mais vasta possível, que não se prende a todos os pormenores e que está simultaneamente atenta e descomprometida da vida concreta.

Um mero aplicar a filosofia à educação seria colar pensamentos filosóficos à expressão de uma situação educacional concreta. Seria mais exacto dizer que se filosofa a educação, revelando pelo enfrentamento deste problema-objecto (os heideggerianos poderiam desenvolver oportunamente o conceito de Sorge), a preocupação genuinamente filosófica, que leva o ser humano a desejar o fundamento do sentido da existência, cuja manifestação objectal é a vida, e por excelência a vida humana. Sublinhe-se, mais uma vez, que se é a vida como fenómeno trans-individual, cabendo a cada pessoa, na medida da sua maturação, realizar-se como “administradora da vida”.

 

8.2.1 – O desejo de filosofar

O termo «filósofo» foi provavelmente criado por Protágoras (Fritz, 1974, 253). S. Tomás de Aquino atribui o termo a Pitágoras, que o teria adoptado por modéstia – amator sapientiae [1]. Mas foi Sócrates que o aplicou a quem pensa a sério, a quem luta pela sabedoria e discute as opiniões e acções para avaliar a sua consistência. Segundo o autor do artigo citado, talvez se possam reduzir a dois os seus princípios: nada fazer de mal, nem mal; quem realmente conhece o que é bom e correcto, age em conformidade.

Para Heidegger, a Filosofia é a admiração da ex-sistentia, que implica a preocupação pelo sentido da vida, ou em termos mais heideggerianos, o sentido do ser. Para este filósofo, segundo Zubiri (19963, 274), ao projecto da minha existência pertence o cuidado (Sorge, cura em latim) «de descobrir e compreender o que são todos os seres que há nesse mundo» (o trabalho da alétheia!). O nosso modo de ex-sistere implica «formalmente a possibilidade de vir desde o ser ao que ainda não somos mas que viremos a ser». Mas não se entende o ser a partir do Homem: é o Homem que se entende a partir do ser, como estado presente (Da) do ser (Sein); ele vem do ser para se encontrar a ele próprio, e o campo dos seus projectos é o mundo (Zubiri, 1963, 272-273).       

A ideia de que o Homem deve ser olhado como projecto de vida perfeita e feliz também é sustentada por Espinosa, para quem filosofar é procurar a filosofia da vida. Aristóteles já teria dito que o grande problema humano é encontrar as melhores condições para alcançar o estado mais perfeito possível, o que implicaria uma análise vocacional do trabalho e a possibilidade de escolhas sucessivas na vida, em ordem a uma vida de qualidade. Fritz (1974, 254) chama fortemente a atenção para que Aristóteles não trocou o mundo das ideias por um mundo contingente: em vez das ideias transcendentes de Platão, propõe que o espírito humano se preocupe com o que pode captar (de universal, de "ideático") nos seres individuais.

Esta vida perfeita implica necessariamente a felicidade. Com efeito, a procura da felicidade é a mais evidente motivação da acção humana. «A felicidade é o fim último de que é supérfluo inquirir o porquê» (Canto-Sperber, 1996, 166). Bem na linha de Aristóteles (cfr. particularmente os Livros I e X da Ética a Nicómaco), e mesmo na linha de várias correntes eudemonistas e até de um certo hedonismo racional (onde se poderia falar de Epicuro), S Tomás de Aquino afirma a tendência natural para a felicidade: Primum principium in ratione practica: Bonum est faciendum et prosequendum et male vitandum (I-IIae, q.94, a.2). É a primeira lei natural, com um certo sabor estóico, na opinião de Victoria Camps (1988, vol. I, 431). Note-se que «bonum» e «malum» não estão restringidos ao contexto moral: Haldane (1998, 108) escreve que «o objectivo da educação é promover uma vida humana boa [good] cultivando a virtude. Os termos "bom" e "virtude" não são aqui utilizados num sentido moral estreito. De facto, o sentido primário deles é não-moral. Esta forma de naturalismo é redutiva dos conceitos morais enquanto pretende cobrir a sua aplicação própria, nos termos de promoção e realização [achievement] de certos estilos de vida, cuja descrição utiliza apenas conceitos de valor não moral, apropriados aos vários aspectos da natureza humana. Do mesmo modo, a noção de virtude deve ser explicada pela referência a quaisquer capacidades e disposições requeridas como meio de realização de uma vida boa, ou como constitutiva desta».

Menos terra à terra, aparentemente, do que Aristóteles e Tomás de Aquino, Kant dirá que o Homem é um projecto sempre a ser feito, um projecto de felicidade sem dúvida, mas no qual é da máxima importância «saber que algo é porque deve ser» (Zubiri, 1963, 112).

 

A vida perfeita, porém, terá que ser uma vida total (Bergson falará de «experiência integral»), em que todas as potencialidades do ser humano concorram para admirar a existência dos mais diversos ângulos. É neste sentido que se pode referir Dilthey que se debruça sobre o «enigma da vida», do mundo, dos valores, das acções: na vida, o Homem vê-se rodeado e tocado pelo invisível; e a experiência religiosa gera uma concepção religiosa do mundo. A fulcralidade deste tema transparece, aliás, em inúmeras obras (livros e artigos) dentro da especialidade de filosofia da educação. Por seu lado, a concepção artística do mundo manifesta o poder e importância da liberdade. Note-se que os recentes estudos sobre a arte, do ponto de vista da Filosofia da Educação, ainda não adquiriram o alcance que lhes devia caber[2].

A vida total implica a presença e aproveitamento de todas as nossas emoções. Schopenhauer considera que a razão não consegue alcançar a Vontade Cósmica Universal, que se exprime na aparente confusão e conflito heraclitiano da natureza e do ser humano. Só penetrando esta realidade sem aprioris racionais, é que poderemos contactar a verdadeira realidade. O mesmo sentimento parece encontrar-se em Nietzsche, que advoga a educação como destruição dos velhos valores supostamente racionais, e criação de um mundo novo, onde o Homem faz valer toda a sua força sem peias. Por sua vez, Kierkegaard dirá que o essencial da vida não é pesquisar infinitamente, mas sim um resoluto compromisso que se alimenta do aspecto emocional, da ansiedade e do desespero. E Scheler mostrará a sua preocupação com o papel das emoções nos valores (cfr. Levi, 1974b, 271-273). A História da Educação testemunha a importância de todo este pensamento para a prática educativa e Filosofia da Educação.

É neste quadro de vida total que se manifesta a Filosofia como preocupação por problemas aparentemente particularizados como a justiça e a liberdade. Platão, John Stuart Mill, Jaspers, Dewey e Sartre são alguns dos mais notáveis filósofos sobre estes temas. Aristóteles (1972, 982 b 26) já tinha sublinhado que a sabedoria só é património do «homem livre», pois só ele existe como homem. Só os homens livres é que podem agir na linha do bem desejado, só eles podem atingir a virtude (areté) baseada no hábito (héksis) de agir em vista do melhor. A liberdade é mesmo uma condição do theorein, do que se falará no último parágrafo.

Para este modo de «experiência perfeita», é necessário que a Filosofia, e consequentemente a Educação, se abram e favoreçam, sem pruridos, o mais vasto leque de conhecimentos possível.

Seguindo de perto as sinopses apresentadas por A. Maurer (1974), A. W. Levi (1974a, 1974b) e K. Fritz (1974), poderíamos focar os seguintes momentos de "abertura" do pensamento filosófico: no séc. XII, a velha educação baseada nas artes liberais enfatizando a gramática e o estudo dos clássicos latinos deu lugar à lógica, dialéctica «e ao ensino do quadrivium com novos métodos extraídos da mais profunda filosofia», como escreveu João de Salisbúria, da Escola de Chartres (Maurer, 1974, 258). O filósofo S. Alberto Magno dedicou a sua atenção à botânica, zoologia e mineralogia, domínios em que realizou algumas descobertas. Também conseguiu elaborar uma síntese do aristotelismo e neoplatonismo, conjugando Aristóteles, Avicena, Gabirol, S. Agostinho e o Pseudo-Dionysius, dando um ilustre exemplo de vastidão de interesses. Por sua vez, S. Tomás de Aquino destacou-se como tendo procurado e aproveitado a verdade em tudo quanto estudou, usando-a para enriquecer e solidificar o pensamento cristão. Para ele, a razão e a fé não se podem contradizer, umas vez que nascem da mesma fonte divina.

O criticismo renascentista, que tentou a independência relativamente à religião e à autoridade ex cathedra, fez nascer muitos estudos em filosofia política (Machiavelli, Hobbes, Grotius...), humanismo (como Pico della Mirandola, Erasmus, Montaigne...) e na filosofia da natureza, onde lembraremos sobretudo Galileu e Descartes. Nos seus Principia, Descartes apresenta a filosofia como o estudo da sabedoria e o conhecimento perfeito de tudo o que podemos conhecer, o que nos abre a sabedoria da vida (exemplificada na moral), a sabedoria da integridade biológica e o poder de invenção (exemplificado na sua mecânica). Finalmente, as ideias fundamentais do Iluminismo – aposta na razão, convicção do progresso intelectual e do papel da natureza como fonte de inspiração e de valores, defesa do ideal de tolerância e liberdade... – produziram uma explosão de estudos interdisciplinares em todos os campos, como a História, Economia, Sociologia, Direito, etc., onde as diferentes correntes filosóficas se entrechocam.

Esta explosão de conhecimentos reactivou o conceito de filosofia como sabedoria universal, no sentido comteano. É ainda na linha de Comte que se pode dizer que é o assombro e o choque com os diversos existentes que motivam a razão e o conhecimento técnico a ex-plicar a organização do mundo, estabelecendo teorias que permitem prever as consequências e dominar assim todas as coisas, de tal modo que as possamos modificar. Kant, aliás, já dizia que a razão era a forma como o espírito "se impunha" ao mundo. Como é do conhecimento comum, o mesmo filósofo assinala à filosofia preocupar-se com os verdadeiros fins, poder e limites da razão humana[3].

 

Curiosamente, Nicolau de Cusa parece aproximar-se de Heraclito, ao falar de Deus como coincidentia oppositorum. Na sua infinitude, Deus abarca todas as coisas numa perfeita unidade, como que superando o clássico princípio de contradição. E nos fragmentos de Heraclito podemos ler: «A harmonia é feita de contrastes» (14, A27); «A partir das divergências, forma-se o mais belo dos enredos. E assim todas as coisas têm origem na discórdia» (14, A5). E para que não seque a novidade, podemos dizer que a discórdia é um princípio permanente e que deve ser continuamente actualizado. Por isso, «é preciso agitar, para que uma boa mistura não se desagregue» (14, A6), ao que se deverá conformar o movimento do filosofar e do educar. Não se sente o próprio Homem um foco de contradições?... Todas as coisas estão em movimento, todas as coisas como que dançam coreograficamente, sem a linearidade do rio que apenas vai correndo: Panta khorêi kai oudén ménei (14, A125).

E terminamos com uma citação de Moreno (1997, 6): «Hemos dado cabida a una tonalidad polifónica de voces, pues la verdad es sinfónica».

 

8.2.2 – A educação “filosofante”

Para Platão só a verdade deve ser ensinada. Ora «só a filosofia procura uma verdade global, sintética» (Vieillard-Baron, 1994, 16), em contraste com as verdades "parciais" dos outros conhecimentos. Portanto... O autor citado acrescenta que «educar é ensinar ao homem uma verdadeira filosofia» (op. cit. 15), ensinar ao Homem as grandes perguntas e preocupações (das quais se pretendeu dar uma visão geral, no parágrafo anterior).

Brezinka (1992, 167) faz suas as palavras de John Cohn: «A pedagogia depende essencialmente da filosofia» – uma vez que a pedagogia precisa, para se dar, de uma teoria sobre o sentido da vida humana. Boavida (1993, 353), que dedica muitas páginas à interdependência destes dois conceitos, escreve que «a filosofia é pedagógica na medida em que é dialógica e analítica, na medida em que produz e exige um discurso crítico que é simultaneamente desconstrutivo/construtivo e vocacionalmente fundamentador de novas evidências» (1993, p.353). E continua, na mesma página: «Por outro lado, a pedagogia é filosófica na medida em que, definindo fins e meios, concebendo um homem e uma sociedade, reconhecendo modelos, hierarquizando valores, isto é, pressupondo uma cosmovisão, prefigura uma preocupação e uma função filosóficas. E (...) uma vez que projecta e aperfeiçoa, se organiza segundo padrões e se dinamiza de acordo com referências, é teleológica e, por vezes, utópica. Em qualquer dos casos, portanto, filosófica».

Na mesma obra, explica (378-381) como a relação íntima entre Filosofia e Pedagogia também se exemplifica com o movimento pela filosofia na infância. Pensar é filosofar. Filosofar é entusiasmar-se pelas construções da sabedoria humana onde o outro assume o relevo do eu, descobrindo o vastíssimo problema da comunicação, na qual a metodologia pedagógico-filosófica encontra o seu grande tronco matricial. A questão do filosofar na infância, adolescência, adultez e velhice, dá relevo à «vocação» da Filosofia da Educação, ao criar o conceito de antropagogia.

Mas para que este conceito se concretize com a maior eficácia possível, é imprescindível fundamentar e ordenar um «tempo e templo» particularmente propícios à progressiva revelação do ánthropos, com a preocupação de bases sólidas para a vastidão do conhecimento e para a construção da identidade pessoal. Tempo e templo provêm do étimo indo-europeu tem, cujo sentido geral é «cortar»: podem pois significar um corte na «durée» e no espaço, conferindo-lhes uma função e estatuto especiais.

Surgiram instituições públicas e privadas, com estruturas e políticas próprias, mas variando estas também no espaço e no tempo. Digamos de passagem que a controvérsia sobre a razão de ser destas instituições é um dos problemas em filosofia da educação. Como quer que seja, a educação, como política pública, não se pode gerir como uma empresa ou código de estradas. É um processo profundamente ligado às questões fundamentais da vida, como projecto pessoal. E não pode ignorar as discussões metafísicas sobre a pessoa e a felicidade, nem tirar partido do facto da multiplicidade de opiniões (o Bem não se identifica com o "Bem que eu vejo").

Neste tempo e templo, procuramos o mínimo de interferências para compreender e realizar o valor da vida a sério. Como diria Agostinho da Silva 1990, 30), não devemos desistir de fazer o que podemos, por muito que nos critiquem negativamente, por muito que nos autocritiquemos devastadoramente. Nunca faremos tudo bem, mas devemos tender para fazer o melhor possível, nas mais "insignificantes" coisas e nas de "responsabilidade", como dar uma aula, escrever... E continua o autor citado: «Um dia, a obra será classificada como inferior, mas só por ela será possível esta sentença dos juízes; se o que se escreveu pode ser considerado mau já o mesmo se não dirá do acto de escrever; eis a base em que se firmaram as escadas que vão até ao céu, eis o ideal alicerce dos templos perfeitos; não os erguemos nós próprios, mas que importa? Adivinhamos os homens futuros que puliriam os fustes e abririam os relevos e tudo demos à vida para que eles existissem; se recuássemos, teríamos recuado o seu aparecimento; mas foi por temos trabalhado em lodo e água turva que a ponte se lançou entre eles e a cultura; foi por nós que se fez a viagem que os limpou da baixa condição». E em «Da frialdade científica», (op. cit. 12) refere a falta inicial – o desprezo do que não é comum, à qual «haverá que juntar a de um ensino mal administrado, a de uma cultura insignificante; o amor da ciência, a compreensão do que ela encerra de mais sublime que todas as estátuas e todos os poemas só podem vir do seu conhecimento; e esse exige um esforço, uma aplicação, uma persistência de trabalho, uma abundância de informações, um poder de raciocínio que de nenhum modo se pedem na apreciação do ritmo das linhas». O que faz lembrar Montaigne, para quem a educação não é uma mobília, mas uma têmpera. No século passado, os belos textos de Lavelle (particularmente L’Erreur de Narcisse e La Conscience de Soi) desenvolvem o conceito de «génie propre» intrincado com o de «vocação»: a educação permite-nos aproveitar e adaptarmo-nos a tudo – mas sem nunca perdermos a nossa identidade, que se fortifica com a fidelidade ao projecto pessoal nas pequenas e grandes coisas. Está em jogo a harmonia da pessoa, em que as artes desempenham um papel fulcral, já desde os gregos clássicos – e assim se põe de lado uma interpretação arriscada do último texto citado de Agostinho da Silva. Para Aristóteles, a arte (tékhne) é a primeira via para atingir a verdade (Ética a Nicómaco, VI, III, 1).

Confirmando o valor da arte para a revelação do ánthropos, M. Ives (1970, 14-19) lembra a escola pitagórica, que vê no indivíduo um microcosmos recreador da ordem cósmica, em que o todo dá sentido às partes. Lembra Platão, para quem o homem justo combina a razão, o desejo e a paixão, como uma harmonia de três notas – a própria ginástica só contribui para a harmonia da pessoa, quando a excelência de uma alma boa procura as melhores condições para o corpo. «O ritmo e a harmonia penetram as camadas mais profundas da alma» (República), mas a personalidade harmoniosa não é necessariamente uma sucessão de frases musicais com a mesma chave: pode variar, mais ou menos bruscamente, com pausas, pianíssimos e fortíssimos. Tudo isto se integra num todo que dá o "tom moral", «na personalidade idealmente harmoniosa como é representada pelo verdadeiro schoene Seele, desdobrando a vida inteira como um modelo cheio de beleza e dignidade» (op. cit. 67). O que leva Macbain (1986) a perguntar, na sua introdução a The Book of a Thousand Poems: «será assim tão démodé o treino da linguagem, a locução clara, a compreensão do humor e do divertido [fun], a revelação da beleza no pensamento e na apreciação dos valores mais altos?»

Aliás a educação filosofante de modo algum poderá fugir ao lugar da arte como uma resposta aos fins do filosofar. Nela se podem aliar a liberdade, o dever e o transcendente: o ser educável, sempre capaz de se ultrapassar a si próprio não pode limitar-se à adaptação acima referida, por mais rica que seja: tem que descobrir o seu próprio valor e o da sua vontade. E como alerta Haldane (1998, 113), «se não nos pudermos ancorar na ideia de um télos natural, a noção de virtude afoga-se no meio da turbulência criada pelo geral cepticismo moral». Note-se que, na linha de Aristóteles, a educação é libertadora, em contraponto com o facto de só poder ser educado o "homem livre", capaz de criar o seu tempo e templo para se elevar até à sabedoria (o termo latino liberi significa "livres" e "filhos", procedendo do étimo indo-europeu leudh = crescer). 

Neste novo espaço-tempo, a filosofia, como temos vindo a querer dizer, é fulcral mas age "subterraneamente". Aí surge a figura do educador-filósofo, que poderia ser caracterizado, conforme disse Platão e repetiram Montesquieu e Fichte, nomeadamente nas Conférences sur la destination du savant, deste último (Vieillard-Baron, 1994, 20-21 e 48-51), como não sendo um puro especulativo, por mais genial que seja, não se sentindo feliz sem tirar os companheiros das trevas e ilusões da «caverna». Depois de analisar longamente o conceito de «sábio» [savant], Fichte conclui que «o seu destino é ser pedagogo da humanidade» (op. cit. 50), utilizando a sabedoria do longo e errático caminho da filosofia.

O educador-filósofo precisa de enfrentar o practicismo redutor da consciência dos professores e educadores em geral. Como diz Patrício (1993a, 51-52), «mitifica-se irracionalmente o puro fazer, a prática conceptualmente vazia. Reduz-se anti-humanamente a relação educativa a uma relação estritamente objectal, em termos quase físicos». Ora «não é possível realizar a prática humana mais importante, que é a da construção humana do próprio homem, sem a pensar até ao fundo e sem lhe dar sentido» – como é impossível “fazer educação” sem um tempo e templo dignificado. Por isso continua o mesmo autor (Patrício, 1997, 27) «Coménio disse-nos que a escola é oficina da humanidade. Concordarei, se essa oficina for portadora da natureza e dignidade do templo. Poderemos não estar hoje à altura da escola, mas a escola é a instituição mais nobre que o homem criou e o templo mais sagrado que edificou. É na escola que o homem se faz germinar a si mesmo. O que há de espiritualmente mais elevado na obra do homem tem a sua fonte nessa germinação. Que é arte senão uma escola? Que são a técnica, a ciência, o direito, a filosofia, senão escolas? Que é a religião senão a mais funda e ansiosa escola do homem?».

É com a mesma preocupação que escreve Simões: «Ao ler um autor tão consagrado como Coménio, pode colher-se a ideia (apressada) de um certo didactismo iluminista, isto é, que um ensino escolar, ministrado por métodos infalíveis, resolveria o problema da educação. Porém, não seria preciso muito esforço de atenção para se dar conta de que o pedagogo checo (1657)[4] considera ineficaz e pernicioso o saber que se não converte em moralidade (p. 151) e que a escola não corresponde ao seu fim quando, além do saber, não inclina a vontade para o bem» (1989, 9, nota).

Os objectivos dos diferentes ramos de saber, como a física e a arte, têm que ser pensados deste modo, sem o quê o professor/educador fica gravemente reduzido na sua formação, e não é competente para a formação da nova geração (cfr. White, 1982, 123)[5].

E na dimensão filosófica, nunca deveriam faltar miradoiros para a «admiração», para o «projecto de vida perfeita», para as «emoções», para a «vida total», para a «felicidade»... Mas este olhar tem que ser comprometido, convidando a viver diferentes experiências filosóficas.

 Novamente se reaviva o desejo da verdadeira teoria, só possível no templo do silêncio. Vale a pena citar um dos belos textos de André Gide (1946, 30-31):

 

Nous vivons pour manifester.

Tout homme qui ne manifeste pas est inutile et mauvais.

Tout représentant de l'Idée tend à se préférer à l'Idée qu'il manifeste. Se préférer - voilà la faute.

L'artiste et l'homme vraiment homme, qui vit pour quelque chose, doit avoir d'avance fait le sacrifice de soi-même.

Et maintenant, que manifester? - On apprend cela dans le silence.

 

* * *

 

É intrínseco à educação estar "em crise". Sobretudo com a recente dimensão de educação contínua, o conceito de educação compreende em si próprio o "joeirar" da vida, em todos os momentos – de trabalho, de descanso, de diversão e de sofrimento. De modo nenhum me refiro aos crivos de "estandardização", mas à "joeira" de todas as situações da vida, fruto e seiva de criatividade: a vida é uma arte de joeirar.

O processo educativo é pois estruturalmente crítico, colocando a todos os implicados numa "cisão contínua" com o passado, o presente e os projectos – sempre em mudança. O que de modo algum tende, por si, a destruir a identidade do educador/educando (cfr. Veiga, 1996). Nem o passado, nem o presente, nem o futuro são desconsiderados. Muito pelo contrário, são altamente valorizados enquanto jogos de estruturação, enriquecendo a experiência e tornando o projecto mais racional e mais dotado de intuição. Talvez se pudesse aplicar a célebre frase de Heraclito, para quem «panta khorei (e não apenas "rhei") kai oudén ménei»: tudo está em movimento, como que numa dança "coreográfica" e nada permanece imóvel[6] Creio esconder-se aqui um rastilho do "mau positivismo": a ciência social "isola" as enzimas da mudança da sociedade, e com elas forma um novo composto. Pressupõe-se também o conceito de Durkheim sobre educação. Mas para dizer – e fazer – tudo isto, não é necessária a educação como compromisso vital, – e portanto original? Não se segue que é a educação que muda a sociedade – mais do que o contrário? E sendo a educação um "joeirar", não deve ser o "homem educado" a orientar (sem esquecer as origens) a mudança social?[7].

 

É necessário, justamente, sentir o espírito de grupo – por muito pequeno que este seja – que alimente a determinação, discuta as ideias sem as destruir e muito menos sem destruir os participantes: criando um novo estilo de diálogo, em que todos procuram a riqueza nele contida, muitas vezes só virtualmente, mas que pode originar uma cadeia ascendente de ideias novas, ideias validadas, fundamentadas, conhecedoras do ambiente que nos cerca e da praxis optimal, elaborando juízos de acção bem joeirados pela prudência. Note-se que a prudência é uma pré-avaliação e também premonição do possível, que de modo algum diminuirá o entusiasmo da mudança. Apenas leva à discussão, em "grupo perfeito", o próprio conceito de mudança, com as suas raízes no passado e nos sonhos do futuro, procurando, mais uma vez, o difícil equilíbrio da virtude aristotélica. "Mudar por mudar" não faz sentido; como não o faz "manter por manter", nem o "porque sim" de quem não tem a faculdade ou a coragem de fundamentar uma linha de orientação[8].

Um efeito perverso do que se disse nos parágrafos anteriores, poderá ser o relativismo actual e o medo de afirmar e de se afirmar que chegam a minar a "confiança" necessária para elaborar teorias da educação (cfr. Moore, 1983, 88). O medo ao dogmatismo e fundamentalismo exacerbou-se de tal modo que se transformou em "Horobus": anti-dogmatismo fundamentalista e anti-fundamentalismo dogmático.

Como já dizia em Filosofia da Educação e Aporias da Religião (Veiga, 1988, 31), a referência à totalidade ou uma visão tendencialmente completa do mundo podia ser um critério do homem educado, pois deixa-nos supor uma firmeza originária, reveladora da sua potencialidade. A justificação teórica é necessária para que o trabalho dos educadores seja coerente e com sentido. Com efeito, a coerência interna da argumentação filosófica facilmente se desfaz ao penetrar a realidade educacional. Verifica-se que mesmo os argumentos, em si solidamente fundamentados, carecem da retaguarda de uma teoria sólida (cfr. Moore, o. c.).

M. Fabre (1999, 271-272) retoma, numa excelente síntese, o tema principal: «A filosofia não é um corpo de saberes mas um questionamento»: «é uma interrogação total» sem matéria específica, uma atitude de inquietação e aventura perante a vida; «é um questionamento radical», enquanto procura aprofundar e "suspeitar" o mais possível, consciente porém de que não se pode ir “ad infinitum” (por razões teóricas e práticas!); «o fim último é aquilo a que nos devemos prender» seja o bem de Platão, a pessoa humana ou a vida; «é a razão que conduz este questionamento», a razão em exercício.

Referindo-se a Bachelard, M. Fabre (ibid., 273-274) lembra que o espírito é escola: com efeito, o cogito implica desdobramento não patológico do eu em mestre e discípulo, uma vigilância intelectual de si próprio, que é condição de rigor e fecundidade.

 Se aceitarmos a Filosofia da Educação como o «saber crítico, que esclarece os conceitos, os enunciados e as argumentações que utilizam educadores e pedagogos» (Fullat, 1990b, 443), já veríamos aqui de algum modo fundamentada a diversidade de temas que se encontra sob a capa de Filosofia da Educação.

A Filosofia da Educação teria assim duas «orientações principais: a) sobre o que se diz (análise lógica da linguagem, epistemologia); b) sobre o que se quer (antropologia, axiologia, teleologia)» (ibid., 444).

Como escreveu A. D. Carvalho (1998, 115-116), «a reflexão sobre a educação delineia-se (...) como uma indagação filosófica múltipla em que sobressaem, designadamente, uma ontologia do limite, uma ética da responsabilidade, uma hermenêutica do desejo, uma estética da palavra e uma antropologia da esperança».

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[1] São muito sugestivas as notas de Tricot a Aristóteles(1972), especialmente nas pp. 16-17 (Metafísica, A, 2).

[2] Aparecem vários capítulos sobre arte (emoções, criatividade, etc.) e educação ao longo dos quatro volumes da obra colectiva organizada por Hirst, P. & White, P. (1998).

[3] Cfr. Carvalho, A. (2003, 13 ss.).

[4] Refere-se a Didáctica Magna. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

[5] Este pensamento é reafirmado por Carvalho (2003, 21-22), ao falar das caracerísticas do humanismo contemporâneo.

[6] «Tudo está em movimento e nada está imóvel» (Colli, 1992, 117).

[7] Sobre a responsabilidade da escola no mundo "violentamente" tecnológico e altamente especializado, cfr. Veiga (1998b). Faure (1972, 174-181 et passim) sublinha a reformulação do auto-conceito do homem.

[8] Tema desenvolvido em Boavida & Sanches (1997), nomeadamente na p. 63.

 


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