Manuel Alte da Veiga, Um critério para a Educação?, Braga, 2004.


8 – Sophia e o desejo de theoria

 

8.1 – O Desejo da Filosofia da Educação
 

No desejo como critério tomará raiz a filosofia da educação. A libido educandi é optimista quanto ao seu ideal de sociedade perfeita e de um ser humano realizado, que «arde com o desejo de rivalizar com a criação divina», confiante no poder da razão (Houssaye, 1999, 56). Porém se quisermos perguntar à história da filosofia o que tem sido filosofar através dos tempos e em autores “consagrados”, dificilmente encontraremos uma fórmula comum, por muito que, utilizando a terminologia neotomista, se diminua a compreensão do conceito em favor da sua extensão.

O historiador Levi (1974a, 248) não crê ser possível encontrar dois autores com o mesmo conceito de filosofia. Esforçando-se por uma descrição de filosofia aceitavelmente englobante do pensamento considerado filosófico, propõe que seja «uma reflexão sobre as variedades da experiência humana» ou «a consideração racional, metódica e sistemática dos temas que mais preocupam o ser humano». Reconhecendo embora o carácter vago destas “definições”, sugere a seguinte explicitação do que pode ser filosofar: uma actividade reflexiva ou meditativa sem um conteúdo explicitamente designado e que, segundo o esquema aristotélico, tomaria a posição do género delimitado pelas espécies linguisticamente introduzidas pelo partitivo «de» ou por um adjectivo (filosofia das ciências, filosofia moral...).

Nem os filósofos aceitariam facilmente um consenso: na medida em que o filósofo é comprometido, filosofa sobre a sua experiência de estar-no-mundo. A história pessoal de cada filósofo e as suas condições sociais, políticas, económicas, religiosas... constituem um poderoso factor individualizante.

Segundo o mesmo autor, já a metodologia se poderia reduzir a dois movimentos típicos: o analítico e o sintético. Os analíticos começam por uma questão inicial vaga (p. ex. «o que é o bem?») que se subdividirá em questões cada vez mais particularizadas, procurando simplicidade e exactidão. Os autores sintéticos começam por uma questão “simples” ou de experiência tendencialmente imediata (como «o que é uma pessoa justa») e progressivamente alargam as áreas e teorias na busca da expressão mais adequada da mundividência própria do sábio.

Por seu lado, o confronto entre os vários grupos e correntes filosóficas contribuem para uma consciência cada vez maior do risco de posições extremistas ou mal colocadas quanto à definição do tema, rigor da linguagem e implicações quer verticais quer horizontais. Como em quase todas as profissões, a maior virtude é a humildade: quanto mais abstracto ou metafísico o pensamento, mais difícil é encontrar um conceito imune a interpretações subjectivas capazes de falsear a leitura. Quantas vezes o próprio autor não consegue lembrar as conotações de um termo fruto de trabalho e inspiração!

Será que temos de abandonar a esperança de um consenso universal quanto ao Ser, ao Bem e à Beleza? Se até a Verdade é definida de modos bastante diversos, como pelo Idealismo, Realismo, Positivismo e Cepticismo! Felizmente, nenhum filósofo ou sistema filosófico põe de lado a preocupação fundamental e comprometida pela descoberta da verdade.

Não é por acaso que vários autores colocam a filosofia mais perto da arte do que das “ciências exactas”, no que respeita à verdade, uma vez que filosofar tem muito de construção criativa, não só quanto à escolha do tema mas também quanto ao estilo de argumentação. Porém, como contrapõe o historiador já citado (Levi, 1974a, 249), «se a filosofia não é verdadeira no sentido da ciência, também não é falsa no mesmo sentido»: para a ciência, o passado tem um interesse meramente histórico, enquanto portador do erro a eliminar. Para a filosofia, o passado é sempre vivo, inspirado e sugestivo, e o seu estudo é fonte de um renovado conhecimento dos grandes problemas da humanidade, de prazer e de criatividade. Não ter em conta o passado da filosofia é incorrer num grande empobrecimento.

A própria história da filosofia segue o conceito de cada historiador sobre o que é filosofia e quem pode ser apresentado como filósofo, não obstante os requisitos da história como actividade científica. Por exemplo, Hegel extremiza o sentido comum, ao defini-la como uma sucessão de espíritos nobres, uma galeria dos heróis do pensamento (cfr. Inwood, 1997, 120).

 

Em contrapartida da sinopse histórica da educação, poderíamos apresentar uma sinopse histórica da filosofia, mas este esforço ou seria mera paráfrase de alguns textos de especialistas ou não passaria de um texto muito pouco representativo, somando a subjectividade de um pensamento criativo, por mais genial que seja, ao perigo da superficialidade.

Para o nosso propósito basta chamar atenção para o dinamismo do pensamento filosófico que não poucas vezes nos provoca o «espanto» aristotélico. É um dinamismo reactivo ao pensamento conhecido, não só dos outros como do próprio pensador. Reactivo também ao ambiente histórico, ora procurando distanciar-se para alcançar a verdadeira theoria, ora colando-se à organização da sociedade organizada pelo espírito filosófico (pensemos em Platão e em Comte, por exemplo).

Resumindo muito livremente uma parte do citado artigo de Levi, diríamos que, pelo nosso conhecimento actual, vemos a filosofia grega como emergindo do espanto religioso para o espanto dos princípios e elementos do mundo natural. Com a formação das cidades, desenvolveu-se a preocupação pelos temas sociais, com ênfase para o conceito de «política». A lei, a educação cívica, os valores, puseram a cosmologia em segundo lugar. A fragmentação política desse mundo culto, ao longo de vários séculos, trouxe para o primeiro plano os problemas da salvação e da sobrevivência num mundo caótico. O cristianismo soube aproveitar a riqueza do pensamento grego para aprofundar os novos problemas de uma religião extraordinariamente dinâmica, como a criação, razão e fé, verdade. O universalismo teocêntrico da Idade Média deu lugar ao nacionalismo e secularização renascentistas. A grande descoberta do mundo e das ciências naturais chamou a atenção para a epistemologia, fundamentação das ciências humanas e “estudos do espírito humano” capaz de tão extraordinários empreendimentos.

A filosofia vai assim de passo com os sinais dos tempos, as preocupações, os inventos, numa palavra, com o polimorfismo do desejo. Para o desejo ser virtude no sentido aristotélico de equilíbrio, tem que evitar os extremos ligados à etimologia do vocábulo que o pretende descrever: estará em luta permanente quer contra o siderar-se quer contra o des-siderar-se. Nem rigidez nem anarquia, mas antes o movimento perpétuo heracliteano, buscando uma contínua justificação. Aqui se pode falar do desejo de rigor em filosofia da educação. No que talvez não estejamos longe do pensamento de Dilthey, para quem, no nosso contexto histórico, a filosofia não se pode limitar a discutir a imensidão do “pluralismo de verdades” emergentes das obras dos mais diversos pensadores, mas deve ser «uma filosofia da filosofia» (Zubiri, 1963, 263) descobrindo as suas raízes hermenêuticas.

Porquê justificar a Filosofia da Educação? Como diz Ibañez-Martín (1990, 412-413), «justificar é fazer justiça». E, continua, os oponentes da Filosofia da Educação têm razão quando nela descobrem «métodos de trabalho claramente deficientes», como a «mistura de superficialidade e palavreado», ou com a redução da Filosofia da Educação a um mero encaixe de sistemas filosóficos e de autores, atribuindo-lhes, por vezes, interpretações de “extensão educativa” não devidamente fundamentadas. A desconfiança da filosofia da Educação não é pois «fruto exclusivo de uma conjura anti-filosófica», mas uma saudável reacção contra a falta de rigor do seu discurso, e com a falta de se poder considerar um marco de referência luminoso no domínio da educação. Não poucas vezes, a falta de coragem e rigor científicos, ainda segundo o mesmo autor, disfarça-se sob impressionantes volumes quanto a tamanho e à obscuridade conceptual, que deixam “siderados” aqueles leitores para quem só os textos mais incompreensíveis é que são indiscutivelmente repletos de sabedoria.

Lembremos que Kant, já no seu tempo, foi muito criticado por não seguir as correntes académicas, ao forjar conceitos novos e usando um estilo muito cerrado. Mas ele achava que, para criar um novo estado de homem, autenticamente livre, era necessário usar uma nova linguagem, a que não faltasse rigor. E também achava que era fundamental destruir o que ele designava por «despotismo das escolas» (Zubiri, 1963, 113).

Fullat (1990a, 70) chama a nossa atenção para que «grande parte dos significantes da linguagem educativa acusam polissemia, o que impede conhecimento exacto sobre o que trata o discurso emitido». E as fronteiras semânticas dos conceitos mais próximos são «surpreendentemente imprecisos». E dá o exemplo de que quando dois matemáticos se encontram, os conceitos utilizados são claramente unívocos e a salvo da subjectividade. A imprecisão da linguagem educativa abre caminho à emotividade subjectiva dos interlocutores, o que pode levar a não se poder aplicar ao conteúdo o estatuto de «factos reais intersubjectivos» (ibid.). Mas já Aristóteles “respondia” (!) a Fullat, no cap. 3º do livro I da Ética a Nicómaco, mostrando que não se pode esperar que dois matemáticos discutam à base de raciocínios de tipo filosófico, nem que um retórico desenvolva o seu raciocínio à base de demonstrações matemáticas. E acrescenta que um homem educado conhece o nível de rigor a esperar de cada assunto.

Sem dúvida que é necessário um esforço contínuo por clarificar os conceitos e evitar os tais “chavões” de fogo de artifício que já se encontram esvaziados da sua riqueza, porque para tudo servem. Quanto à boa vontade de tender para uma uniformidade terminológica, talvez que seja necessário apostar primeiro na elaboração de «um conteúdo informacional o mais rico possível» (Brezinka, 1992, 77) mais analítico do que sintético, para que os projectos sintetizadores se formem sobre a retaguarda de ideias claras na sua inovação e penetração intelectual. A uniformidade, aliás, tem perante si um grande obstáculo resultante do forte enraizamento cultural do fenómeno educacional[1].

Porém, Ibañez-Martin (1990, 411) levanta a pergunta com outro alcance: Porquê justificar a filosofia da educação – quando há tantas disciplinas “inúteis” a não necessitar de justificação «porque estão relacionadas com a mentalidade dominante»? Este é um problema grave nos graus superiores do ensino, e tanto mais grave quanto mais “superior”. É um problema difícil de resolver, mas o mais curioso é que o estudo das raízes do problema (télos educativo, condição humana, doutrinamento, democracia, autoridade, valores, conceito de “homem educado”...) pertence de facto à Filosofia da Educação, e de jure pela referida compreensão dos conceitos de educação e filosofia, ficando a ratificação dependente da política nacional e da política interna das instituições de ensino superior. Acresce que os curricula normais, quer de “ciências” quer de “humanidades”, impedem «uma penetração real nos temas», atendo-se à «simples memorização do que é considerado suficiente para ser aprovado», eliminando totalmente a autenticidade da formação de um «profissional da educação» (op. cit., 412).

Na execução dos seus objectivos, a filosofia da educação não pode partir do princípio de que «os velhos problemas desapareceram ou perderam o seu interesse» (Haldane, 1998, 103)     Não parece sensato propor soluções a formulações antigas, mas sim formular adequadamente o problema contemporâneo, que pode ser sobretudo uma formulação moderna de um problema antigo. Porém, na opinião do autor citado, seria insensato e metodologicamente ineficaz não olhar para as posições primitivas dos problemas e por que é que consideramos mais ou menos válidas as soluções da época (op. cit., 114). Com efeito, Haldane considera que muitos problemas fundamentais, porventura os mais fundamentais, são independentes da evolução da humanidade, das diferenças culturais e da demografia. Ao longo dos séculos, mais ou menos directamente, encontramos as questões: Como é possível e justificável ensinar? Qual a finalidade da educação?

«A vitalidade filosófica», no dizer de Boavida (1993, 364), está no enfrentar continuamente problemas tão antigos como modernos, reformulando-os com audácia e humildade, tendo consciência da “errância” que reflecte e gera a riqueza da filosofia.

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[1] Cfr. Carvalho (1992, 47 1998/1999, 88).

 


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