8.1 – O Desejo da Filosofia da
Educação
No desejo como critério tomará raiz
a filosofia da educação. A libido educandi é optimista quanto
ao seu ideal de sociedade perfeita e de um ser humano realizado, que
«arde com o desejo de rivalizar com a criação divina», confiante no
poder da razão (Houssaye, 1999, 56). Porém se quisermos perguntar à
história da filosofia o que tem sido filosofar através dos
tempos e em autores “consagrados”, dificilmente encontraremos uma
fórmula comum, por muito que, utilizando a terminologia neotomista,
se diminua a compreensão do conceito em favor da sua extensão.
O historiador
Levi (1974a, 248) não crê ser possível encontrar dois autores com o
mesmo conceito de filosofia. Esforçando-se por uma descrição de
filosofia aceitavelmente englobante do pensamento considerado
filosófico, propõe que seja «uma reflexão sobre as variedades da
experiência humana» ou «a consideração racional, metódica e
sistemática dos temas que mais preocupam o ser humano». Reconhecendo
embora o carácter vago destas “definições”, sugere a seguinte
explicitação do que pode ser filosofar: uma actividade reflexiva ou
meditativa sem um conteúdo explicitamente designado e que, segundo o
esquema aristotélico, tomaria a posição do género delimitado pelas
espécies linguisticamente introduzidas pelo partitivo «de» ou por um
adjectivo (filosofia das ciências, filosofia moral...).
Nem os filósofos
aceitariam facilmente um consenso: na medida em que o filósofo é
comprometido, filosofa sobre a sua experiência de estar-no-mundo. A
história pessoal de cada filósofo e as suas condições sociais,
políticas, económicas, religiosas... constituem um poderoso factor
individualizante.
Segundo o mesmo
autor, já a metodologia se poderia reduzir a dois movimentos
típicos: o analítico e o sintético. Os analíticos começam por uma
questão inicial vaga (p. ex. «o que é o bem?») que se subdividirá em
questões cada vez mais particularizadas, procurando simplicidade e
exactidão. Os autores sintéticos começam por uma questão “simples”
ou de experiência tendencialmente imediata (como «o que é uma pessoa
justa») e progressivamente alargam as áreas e teorias na busca da
expressão mais adequada da mundividência própria do sábio.
Por seu lado, o confronto entre os
vários grupos e correntes filosóficas contribuem para uma
consciência cada vez maior do risco de posições extremistas ou mal
colocadas quanto à definição do tema, rigor da linguagem e
implicações quer verticais quer horizontais. Como em quase todas as
profissões, a maior virtude é a humildade: quanto mais abstracto ou
metafísico o pensamento, mais difícil é encontrar um conceito imune
a interpretações subjectivas capazes de falsear a leitura. Quantas
vezes o próprio autor não consegue lembrar as conotações de um termo
fruto de trabalho e inspiração!
Será que temos
de abandonar a esperança de um consenso universal quanto ao Ser, ao
Bem e à Beleza? Se até a Verdade é definida de modos bastante
diversos, como pelo Idealismo, Realismo, Positivismo e Cepticismo!
Felizmente, nenhum filósofo ou sistema filosófico põe de lado a
preocupação fundamental e comprometida pela descoberta da verdade.
Não é por acaso
que vários autores colocam a filosofia mais perto da arte do que das
“ciências exactas”, no que respeita à verdade, uma vez que filosofar
tem muito de construção criativa, não só quanto à escolha do tema
mas também quanto ao estilo de argumentação. Porém, como contrapõe o
historiador já citado (Levi, 1974a, 249), «se a filosofia
não é verdadeira no sentido da ciência, também não é falsa no mesmo
sentido»: para a ciência, o passado tem um interesse meramente
histórico, enquanto portador do erro a eliminar. Para a filosofia, o
passado é sempre vivo, inspirado e sugestivo, e o seu estudo é fonte
de um renovado conhecimento dos grandes problemas da humanidade, de
prazer e de criatividade. Não ter em conta o passado da filosofia é
incorrer num grande empobrecimento.
A própria
história da filosofia segue o conceito de cada historiador sobre o
que é filosofia e quem pode ser apresentado como filósofo, não
obstante os requisitos da história como actividade científica. Por
exemplo, Hegel extremiza o sentido comum, ao defini-la como uma
sucessão de espíritos nobres, uma galeria dos heróis do pensamento
(cfr. Inwood, 1997, 120).
Em contrapartida
da sinopse histórica da educação, poderíamos apresentar uma sinopse
histórica da filosofia, mas este esforço ou seria mera paráfrase de
alguns textos de especialistas ou não passaria de um texto muito
pouco representativo, somando a subjectividade de um pensamento
criativo, por mais genial que seja, ao perigo da superficialidade.
Para o nosso
propósito basta chamar atenção para o dinamismo do pensamento
filosófico que não poucas vezes nos provoca o «espanto»
aristotélico. É um dinamismo reactivo ao pensamento conhecido, não
só dos outros como do próprio pensador. Reactivo também ao ambiente
histórico, ora procurando distanciar-se para alcançar a verdadeira
theoria, ora colando-se à organização da sociedade organizada
pelo espírito filosófico (pensemos em Platão e em Comte, por
exemplo).
Resumindo muito
livremente uma parte do citado artigo de Levi, diríamos que,
pelo nosso conhecimento actual, vemos a filosofia grega como
emergindo do espanto religioso para o espanto dos princípios e
elementos do mundo natural. Com a formação das cidades,
desenvolveu-se a preocupação pelos temas sociais, com ênfase para o
conceito de «política». A lei, a educação cívica, os valores,
puseram a cosmologia em segundo lugar. A fragmentação política desse
mundo culto, ao longo de vários séculos, trouxe para o primeiro
plano os problemas da salvação e da sobrevivência num mundo caótico.
O cristianismo soube aproveitar a riqueza do pensamento grego para
aprofundar os novos problemas de uma religião extraordinariamente
dinâmica, como a criação, razão e fé, verdade. O universalismo
teocêntrico da Idade Média deu lugar ao nacionalismo e secularização
renascentistas. A grande descoberta do mundo e das ciências naturais
chamou a atenção para a epistemologia, fundamentação das ciências
humanas e “estudos do espírito humano” capaz de tão extraordinários
empreendimentos.
A filosofia vai assim de passo com
os sinais dos tempos, as preocupações, os inventos, numa palavra,
com o polimorfismo do desejo. Para o desejo ser virtude no sentido
aristotélico de equilíbrio, tem que evitar os extremos ligados à
etimologia do vocábulo que o pretende descrever: estará em luta
permanente quer contra o siderar-se quer contra o
des-siderar-se. Nem rigidez nem anarquia, mas antes o movimento
perpétuo heracliteano, buscando uma contínua justificação. Aqui se
pode falar do desejo de rigor em filosofia da educação. No que
talvez não estejamos longe do pensamento de Dilthey, para quem, no
nosso contexto histórico, a filosofia não se pode limitar a discutir
a imensidão do “pluralismo de verdades” emergentes das obras dos
mais diversos pensadores, mas deve ser «uma filosofia da filosofia»
(Zubiri, 1963, 263) descobrindo as suas raízes hermenêuticas.
Porquê justificar a Filosofia da
Educação? Como diz Ibañez-Martín (1990, 412-413), «justificar é
fazer justiça». E, continua, os oponentes da Filosofia da Educação
têm razão quando nela descobrem «métodos de trabalho claramente
deficientes», como a «mistura de superficialidade e palavreado», ou
com a redução da Filosofia da Educação a um mero encaixe de sistemas
filosóficos e de autores, atribuindo-lhes, por vezes, interpretações
de “extensão educativa” não devidamente fundamentadas. A
desconfiança da filosofia da Educação não é pois «fruto exclusivo de
uma conjura anti-filosófica», mas uma saudável reacção contra a
falta de rigor do seu discurso, e com a falta de se poder considerar
um marco de referência luminoso no domínio da educação. Não poucas
vezes, a falta de coragem e rigor científicos, ainda segundo o mesmo
autor, disfarça-se sob impressionantes volumes quanto a tamanho e à
obscuridade conceptual, que deixam “siderados” aqueles leitores para
quem só os textos mais incompreensíveis é que são indiscutivelmente
repletos de sabedoria.
Lembremos que Kant, já no seu
tempo, foi muito criticado por não seguir as correntes académicas,
ao forjar conceitos novos e usando um estilo muito cerrado. Mas ele
achava que, para criar um novo estado de homem, autenticamente
livre, era necessário usar uma nova linguagem, a que não faltasse
rigor. E também achava que era fundamental destruir o que ele
designava por «despotismo das escolas» (Zubiri, 1963, 113).
Fullat (1990a, 70) chama a nossa
atenção para que «grande parte dos significantes da linguagem
educativa acusam polissemia, o que impede conhecimento exacto sobre
o que trata o discurso emitido». E as fronteiras semânticas dos
conceitos mais próximos são «surpreendentemente imprecisos». E dá o
exemplo de que quando dois matemáticos se encontram, os conceitos
utilizados são claramente unívocos e a salvo da subjectividade. A
imprecisão da linguagem educativa abre caminho à emotividade
subjectiva dos interlocutores, o que pode levar a não se poder
aplicar ao conteúdo o estatuto de «factos reais intersubjectivos» (ibid.).
Mas já Aristóteles “respondia” (!) a Fullat, no cap. 3º do livro I
da Ética a Nicómaco, mostrando que não se pode esperar que
dois matemáticos discutam à base de raciocínios de tipo filosófico,
nem que um retórico desenvolva o seu raciocínio à base de
demonstrações matemáticas. E acrescenta que um homem educado conhece
o nível de rigor a esperar de cada assunto.
Sem dúvida que é necessário um
esforço contínuo por clarificar os conceitos e evitar os tais
“chavões” de fogo de artifício que já se encontram esvaziados da sua
riqueza, porque para tudo servem. Quanto à boa vontade de tender
para uma uniformidade terminológica, talvez que seja necessário
apostar primeiro na elaboração de «um conteúdo informacional o mais
rico possível» (Brezinka, 1992, 77) mais analítico do que sintético,
para que os projectos sintetizadores se formem sobre a retaguarda de
ideias claras na sua inovação e penetração intelectual. A
uniformidade, aliás, tem perante si um grande obstáculo resultante
do forte enraizamento cultural do fenómeno educacional.
Porém, Ibañez-Martin (1990, 411)
levanta a pergunta com outro alcance: Porquê justificar a filosofia
da educação – quando há tantas disciplinas “inúteis” a não
necessitar de justificação «porque estão relacionadas com a
mentalidade dominante»? Este é um problema grave nos graus
superiores do ensino, e tanto mais grave quanto mais “superior”. É
um problema difícil de resolver, mas o mais curioso é que o estudo
das raízes do problema (télos educativo, condição humana,
doutrinamento, democracia, autoridade, valores, conceito de “homem
educado”...) pertence de facto à Filosofia da Educação, e
de jure pela referida compreensão dos conceitos de educação e
filosofia, ficando a ratificação dependente da política nacional e
da política interna das instituições de ensino superior. Acresce que
os curricula normais, quer de “ciências” quer de “humanidades”,
impedem «uma penetração real nos temas», atendo-se à «simples
memorização do que é considerado suficiente para ser aprovado»,
eliminando totalmente a autenticidade da formação de um
«profissional da educação» (op. cit., 412).
Na execução dos seus objectivos, a
filosofia da educação não pode partir do princípio de que «os velhos
problemas desapareceram ou perderam o seu interesse» (Haldane, 1998,
103) Não parece sensato propor soluções a formulações antigas,
mas sim formular adequadamente o problema contemporâneo, que pode
ser sobretudo uma formulação moderna de um problema antigo. Porém,
na opinião do autor citado, seria insensato e metodologicamente
ineficaz não olhar para as posições primitivas dos problemas e por
que é que consideramos mais ou menos válidas as soluções da época (op.
cit., 114). Com efeito, Haldane considera que muitos problemas
fundamentais, porventura os mais fundamentais, são independentes da
evolução da humanidade, das diferenças culturais e da demografia. Ao
longo dos séculos, mais ou menos directamente, encontramos as
questões: Como é possível e justificável ensinar? Qual a finalidade
da educação?
«A vitalidade filosófica», no dizer
de Boavida (1993, 364), está no enfrentar continuamente problemas
tão antigos como modernos, reformulando-os com audácia e humildade,
tendo consciência da “errância” que reflecte e gera a riqueza da
filosofia.
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Cfr. Carvalho (1992, 47 1998/1999, 88).
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