Sob a entrada de
Criterium, Lalande (1962) escreve: «A. Sinal aparente
[correspondente a uma percepção mais ou menos segura] que permite
reconhecer uma coisa ou noção. B. Carácter ou propriedade de um
objecto (pessoa ou coisa) de acordo com o qual se estabelece um
juízo de apreciação» – p. ex. distinguir a verdade do erro.
Perante um
número de definições de educação que se sabe atingir mais de uma
centena (para além de muitas variações), a primeira pergunta a fazer
pode logicamente ser a do critério: o que é que permite dizer
que determinado processo é um processo educativo? «A mera
existência de práticas sociais sob o nome de Educação, não demonstra
nada» que se trate, verdadeiramente, de Educação. R. S. Peters,
lembra que «o termo educação não é um conceito a que se possa
deitar mão para definir uma actividade concreta, mas para delinear
critérios a que se deve cingir toda uma família de actividades» (Fullat,
1990b, 444).
Neste passo,
valerá a pena tentar um novo caminho de uma visão sintética, pela
qual seja possível propor uma característica definitória para a
Filosofia da Educação. Vamo-nos ater a dois conceitos tradicionais e
a outro mais recentemente introduzido: A) Educação, B) Pedagogia, C)
Antropagogia.
Parte-se de um
breve ensaio de rigor terminológico, que exemplifica como a reflexão
sobre conceitos centrais ajuda a cimentar balizas consensuais e a
manifestar a actualidade e potencialidade dos termos, de que se
podem extrair excelentes pistas de trabalho.
Para evitar o longuíssimo percurso
da história dos conceitos, será preferível meditar sobre as raízes
dos termos.
A) A raiz
indo-europeia deuk abre as dimensões de empurrar, puxar,
conduzir, levar, e posteriormente, levar para fora, criar, educar. O
educador tanto poderia ser um duque, condutor, indutor, tradutor...
como sedutor; e ao educando competiria ser suficientemente dúctil
para se deixar conduzir, e suficientemente "criado" para enfrentar a
sedução... Do mesmo radical provém o alemão ziehen, com
significado semelhante, sendo que erziehen pode ser traduzido
por educar, criar, instruir, ensinar.
O verbo latino
educare, como a forma indo-europeia e a alemã, pode-se
aplicar a todos os seres vivos (animais e plantas), prevalecendo
porém a ideia de acção sobre um ser humano: originalmente tem os
significados de produzir, alimentar e cultivar, passando para
instruir, formar, educar. No campo educacional, a dimensão de
alimentar é pregnante, levantando sérios debates
ideológicos sobre o conceito de adulto (= alimentado, < al,
de onde derivam também aluno e adolescente).
Ainda hoje,
depois de milhares de anos, a noção de adulto mantém o valor
de ponto de referência, de "perfeição" de cada pessoa, embora o
conceito varie diacrónica e sincronicamente em cada cultura.
Felizmente, já
se pode dizer, actualmente, que "ser adulto" é uma utopia ou,
preferivelmente, um ideal, como estado de perfeição. Enquanto
caminhamos do nascimento até à morte, somos sim cada vez mais
"adolescentes", ou seja num contínuo e indefinido processo de
crescimento, como testemunham os modernos conceitos de «educação
contínua».
Este "adulto
ideal" tem afinidade com a "Sophia", no sentido que Fullat lhe
atribui (cfr. o parágrafo sobre Teorias da Educação).
B) O conceito de
Pedagogia, como sabemos, acabou por se impor. Não é desprezável a
ligação com o anterior conceito de "adolescência": afinal todos
somos crianças (a criança deve viver sempre dentro de nós, já por
conselho de Jesus Cristo!) e o grego pais pode significar
criança, filho, escravo, proveniente do indo-europeu pou
(pequeno, pouco) origem dos étimos latinos "paucus", "parvus", "pauper"
e "puer". Por sua vez, ágo (conduzir, guiar, dirigir,
governar...) também já significa formar, educar, avançar... (<
indo-europeu ag = conduzir). Um tanto poeticamente – "poesia"
é uma palavra "grávida" em educação
–
poderíamos dizer que todos deveríamos ser crianças a conduzir outras
crianças. Às primeiras "crianças" convém a presença mais rica de
adultez – adultez que se revela na capacidade de dar.
Mas como
crianças, temos que manter viva a esperança, naturalidade (rousseauniana),
curiosidade e atrevimento... e entrar no jogo de crianças que é ora
conduzir ora ser conduzido.
De resto, só no
séc. XX, desde Durkheim (em 1911), há uma infinda variedade de
concepções e classificações de Pedagogia (cfr. Brezinka, 1992, 8-9).
Provavelmente, a
causa desta falta de concordância (embora haja muitos pontos em
comum) provém das diferentes expectações quanto à pedagogia:
aquisição de conhecimento científico? Saber prático?
C) Para superar
as dificuldades referidas acima, "antropagogia" aparece como «a
teoria e a prática da formação do homem na plenitude da sua
humanidade», recolhendo a riqueza secular da palavra grega
anthropos (Patrício, 1992, 9).
Este conceito
tem a importante característica de tocar, poderíamos dizer, o núcleo
da Educação, e ao fazê-lo, elaborar uma profunda Filosofia da
Educação, ao admirar a dignidade e dinamismo do «anthropos», que “encorpora”,
na dialéctica transcendente-concreto, a utopia do adulto, a
fragilidade e a esperança do puer, e sobretudo o desejo
lutador pela excelência, pela virtude (areté).
Curiosamente, Maia, reportando-se ao pensamento de Patrício (cfr. a
bibliografia destes dois autores), fala de "antropeugogia", para
vincar a dimensão ética essencial quando interferimos no brotar da
vida (eu = bem, em grego). Contudo, a noção de
desenvolvimento aqui em causa implica a realização progressiva do
«bem» que compete à natureza do anthropos. «A análise
filosófica da educação põe à vista que esta consiste propriamente na
formação do homem na inteireza e plenitude da sua humanidade»
(Patrício, 1993a, 51). O que lembra as palavras de
Vieillard-Baron (1994, 7): «A partir de Montaigne, o homem moderno
procura o melhor meio de elevar [será neste passo a tradução mais
adequada, com justificação etimológica, de élever] a criança
até ao homem». De certo modo, antropagogia deixa mais ténue a
componente tecnológica do ensino. O autor recém citado, na mesma
página, comenta que «o problema filosófico da educação não e o do
ensino». E alude um juízo já comum: «ensina-se uma matéria –
educa-se um ser humano».
Mais uma vez nos
confrontamos com a noção de desenvolvimento, talvez
omnipresente a todas as nossas concepções de educação. Reflectindo
sobre esta palavra, podemos ver no Le Robert, Dictionnaire
Historique de la Langue Française (1992) que «développement»
é um derivado antinómico de «envelopper (enveloppement)», que por
sua vez tem origem na junção do vocábulo «faluppa» (palha, grão de
trigo, no baixo latim) com o clássico termo latino «volvere», cujo
radical indo-europeu wel significa rolar – sentido que os
derivados gregos mantêm (por ex. elúo = rolar, hélix =
hélice, espiral). Sobressai a ideia de movimento, presente nos
termos portugueses «revolução, vale (movimento de descer - cfr. o
francês «avaler» = engolir), volta, valsa, evolução, volúvel,
volume», etc. O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto
Editora (1989) dá os seguintes sentidos para o termo «desenvolver»:
«tirar do invólucro, fazer medrar, aumentar, expor minuciosamente».
Se admitirmos, na esteira deste e outros dicionários, que
«desenvolver» é dar (mostrar, patentear...) toda a extensão,
amplitude, superfície, volume... daquilo que é próprio do objecto
considerado, vemos como este elenco demasiado "físico" das
características do objecto apela ao conceito filosófico de
«verdade», cujo radical indo-europeu wer, swer (atar)
originou o inglês «worth» (desejável, valioso) e os étimos latinos
de «verdade» e «sério». O termo grego «alétheia», de outra origem,
recobre a ideia de desocultar.
Mas convém não
deixar de referir que a noção de desenvolvimento é em si
ambígua, pois o mal ou o que é relativamente mau, também se
desenvolve: seja um cancro bem desenvolvido, seja uma ideologia
nazista bem desenvolvida, seja a empolgante cruzada pela liberdade
sexual, seja o indiscutível “progresso” da violência.
O problema do
bem e do mal, o problema dos fins (télos) e a também
misteriosa riqueza escondida no termo ánthropos, são temas
centrais em filosofia e necessitam de uma abordagem metafísica,
incipiente no último capítulo.
Um factor
presente praticamente em todas as definições, como acabámos de
recordar, é o de desenvolvimento, seja ou não com um
objectivo preciso, seja da pessoa na sua totalidade, seja de uma ou
várias virtualidades do indivíduo. Fundamentalmente, é necessário
possibilitar ao sujeito um estádio considerado "superior",
obviamente na linha do que é ou deve ser natural, como podem
ilustrar S. Tomás de Aquino, Coménio, Rousseau, Pestallozzi, Marx,
Freud, Dewey, Montessori... Todos aceitam como base ou ponto de
partida o "acto natural" próprio do homem. Todos tomam partido pelo
"bom desenvolvimento", aquele que será o mais coerente com a
"natureza humana", perspectivada segundo a capacidade de apreensão e
construção conceptual de cada qual.
Ficando assim o
"desenvolvimento", como noção e como processo, demasiado sujeito a
valorizações diversas, o critério da educação terá que recuar. Para
não arriscar um processo infinito, porque não reter como cerne e
critério do acto educativo essa própria busca insatisfeita dum
objectivo e dum critério? Tanto a teorização como a acção implicam
escolha – do que parece "melhor", do que é "mais prático", do
que "apetece mais"... Ora a escolha "própria do homem" tem que ser
"racional". Isto é, o critério da educação (e daí o objectivo
genérico da educação) pode afirmar-se como a procura contínua de
justificação – exercício da razão. Portanto, o homem educado é
um homem crítico, que não descansa nos dados que vai obtendo.
Para garantir
uma escolha justificada, podem-se construir sistemas – com os
requisitos duma teoria científica – e que, englobando o polo
epistemológico e o da praxis, se chama sistema educativo. Os
sistemas porém, estão sujeitos ao "fenómeno da burocratização" que
tende a enquistar.
Vale a pena
terminar com outra reflexão de Fullat (1990b, 445): «A "theoria", a
"sophia" e a "phrónesis", são três conceitos aristotélicos muito
significativos em educação. A theoria olha as coisas para
além da sua utilidade, porque merecem, porque são um "Telos" da
acção e reflexão educacionais. A "sophia" é o lugar utópico donde
desejaríamos olhar todas as coisas, e que por isso consiste num
lento, penoso mas gratificante "filo-sofar". O homem é um ser que
pode, precisamente porque ainda não é. A "phrónesis" é a
sabedoria prática que pressupõe saborear o sentido da vida, o
conflito entre bem e mal, e a constatação de que tudo poderia ser
sempre de outra maneira».
Por outras
palavras, o critério de educação aludido ganha corpo no desejo de
realizar o ánthropos.
E, como desejo,
manifesta o errar característico do ser humano enquanto poietés:
encandeado quer pelo mais transcendente quer pelo mais concreto, ele
“age” descobrindo que o bem se impregna no agir. Talvez se possa ler
esta dialéctica em Patrício (1993a, 51), quando escreve:
«A educação, insistimos, é acção». Mas não uma «acção desligada do
pensamento», «teoricamente cega». «É acção atravessada de uma ponta
a outra pelo conhecimento do homem e pela intencionalidade
axiológica a seu respeito».
É neste esforço
comum por realizar o ánthropos, como se verá ainda nas
páginas seguintes, que se pode desenhar o consenso. Mas de modo
nenhum um consenso redutor da riqueza do contributo de cada pessoa:
é o reconhecimento do esforço, este sim comum, por desvelarmos cada
vez melhor o que é ser «homem» e os caminhos mais congruentes com a
dignidade humana para atingirmos a perfeição humana de cada qual.
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