Manuel Alte da Veiga, Um critério para a Educação?, Braga, 2004.


6 – Um critério para a educação?

 

Sob a entrada de Criterium, Lalande (1962) escreve: «A. Sinal aparente [correspondente a uma percepção mais ou menos segura] que permite reconhecer uma coisa ou noção. B. Carácter ou propriedade de um objecto (pessoa ou coisa) de acordo com o qual se estabelece um juízo de apreciação» – p. ex. distinguir a verdade do erro.

Perante um número de definições de educação que se sabe atingir mais de uma centena (para além de muitas variações), a primeira pergunta a fazer pode logicamente ser a do critério: o que é que permite dizer que determinado processo é um processo educativo? «A mera existência de práticas sociais sob o nome de Educação, não demonstra nada» que se trate, verdadeiramente, de Educação. R. S. Peters, lembra que «o termo educação não é um conceito a que se possa deitar mão para definir uma actividade concreta, mas para delinear critérios a que se deve cingir toda uma família de actividades» (Fullat, 1990b, 444)[1].

 

Neste passo, valerá a pena tentar um novo caminho de uma visão sintética, pela qual seja possível propor uma característica definitória para a Filosofia da Educação. Vamo-nos ater a dois conceitos tradicionais e a outro mais recentemente introduzido: A) Educação, B) Pedagogia, C) Antropagogia.

Parte-se de um breve ensaio de rigor terminológico, que exemplifica como a reflexão sobre conceitos centrais ajuda a cimentar balizas consensuais e a manifestar a actualidade e potencialidade dos termos, de que se podem extrair excelentes pistas de trabalho.

Para evitar o longuíssimo percurso da história dos conceitos, será preferível meditar sobre as raízes dos termos.

A) A raiz indo-europeia deuk abre as dimensões de empurrar, puxar, conduzir, levar, e posteriormente, levar para fora, criar, educar. O educador tanto poderia ser um duque, condutor, indutor, tradutor... como sedutor; e ao educando competiria ser suficientemente dúctil para se deixar conduzir, e suficientemente "criado" para enfrentar a sedução... Do mesmo radical provém o alemão ziehen, com significado semelhante, sendo que erziehen pode ser traduzido por educar, criar, instruir, ensinar.

O verbo latino educare, como a forma indo-europeia e a alemã, pode-se aplicar a todos os seres vivos (animais e plantas), prevalecendo porém a ideia de acção sobre um ser humano: originalmente tem os significados de produzir, alimentar e cultivar, passando para instruir, formar, educar. No campo educacional, a dimensão de alimentar é pregnante, levantando sérios debates ideológicos sobre o conceito de adulto (= alimentado, < al, de onde derivam também aluno e adolescente)[2].

Ainda hoje, depois de milhares de anos, a noção de adulto mantém o valor de ponto de referência, de "perfeição" de cada pessoa, embora o conceito varie diacrónica e sincronicamente em cada cultura.

Felizmente, já se pode dizer, actualmente, que "ser adulto" é uma utopia ou, preferivelmente, um ideal, como estado de perfeição. Enquanto caminhamos do nascimento até à morte, somos sim cada vez mais "adolescentes", ou seja num contínuo e indefinido processo de crescimento, como testemunham os modernos conceitos de «educação contínua».

Este "adulto ideal" tem afinidade com a "Sophia", no sentido que Fullat lhe atribui (cfr. o parágrafo sobre Teorias da Educação).  

B) O conceito de Pedagogia, como sabemos, acabou por se impor. Não é desprezável a ligação com o anterior conceito de "adolescência": afinal todos somos crianças (a criança deve viver sempre dentro de nós, já por conselho de Jesus Cristo!) e o grego pais pode significar criança, filho, escravo, proveniente do indo-europeu pou (pequeno, pouco) origem dos étimos latinos "paucus", "parvus", "pauper" e "puer". Por sua vez, ágo (conduzir, guiar, dirigir, governar...) também já significa formar, educar, avançar... (< indo-europeu ag = conduzir). Um tanto poeticamente – "poesia" é uma palavra "grávida" em educação[3] – poderíamos dizer que todos deveríamos ser crianças a conduzir outras crianças. Às primeiras "crianças" convém a presença mais rica de adultez – adultez que se revela na capacidade de dar.

Mas como crianças, temos que manter viva a esperança, naturalidade (rousseauniana), curiosidade e atrevimento... e entrar no jogo de crianças que é ora conduzir ora ser conduzido.

De resto, só no séc. XX, desde Durkheim (em 1911), há uma infinda variedade de concepções e classificações de Pedagogia (cfr. Brezinka, 1992, 8-9).

Provavelmente, a causa desta falta de concordância (embora haja muitos pontos em comum) provém das diferentes expectações quanto à pedagogia: aquisição de conhecimento científico? Saber prático?

C) Para superar as dificuldades referidas acima, "antropagogia" aparece como «a teoria e a prática da formação do homem na plenitude da sua humanidade», recolhendo a riqueza secular da palavra grega anthropos (Patrício, 1992, 9)[4].

Este conceito tem a importante característica de tocar, poderíamos dizer, o núcleo da Educação, e ao fazê-lo, elaborar uma profunda Filosofia da Educação, ao admirar a dignidade e dinamismo do «anthropos», que “encorpora”, na dialéctica transcendente-concreto, a utopia do adulto, a fragilidade e a esperança do puer, e sobretudo o desejo lutador pela excelência, pela virtude (areté).     Curiosamente, Maia, reportando-se ao pensamento de Patrício (cfr. a bibliografia destes dois autores), fala de "antropeugogia", para vincar a dimensão ética essencial quando interferimos no brotar da vida (eu = bem, em grego). Contudo, a noção de desenvolvimento aqui em causa implica a realização progressiva do «bem» que compete à natureza do anthropos. «A análise filosófica da educação põe à vista que esta consiste propriamente na formação do homem na inteireza e plenitude da sua humanidade» (Patrício, 1993a, 51). O que lembra as palavras de Vieillard-Baron (1994, 7): «A partir de Montaigne, o homem moderno procura o melhor meio de elevar [será neste passo a tradução mais adequada, com justificação etimológica, de élever] a criança até ao homem». De certo modo, antropagogia deixa mais ténue a componente tecnológica do ensino. O autor recém citado, na mesma página, comenta que «o problema filosófico da educação não e o do ensino». E alude um juízo já comum: «ensina-se uma matéria – educa-se um ser humano».

Mais uma vez nos confrontamos com a noção de desenvolvimento, talvez omnipresente a todas as nossas concepções de educação. Reflectindo sobre esta palavra, podemos ver no Le Robert, Dictionnaire Historique de la Langue Française (1992) que «développement» é um derivado antinómico de «envelopper (enveloppement)», que por sua vez tem origem na junção do vocábulo «faluppa» (palha, grão de trigo, no baixo latim) com o clássico termo latino «volvere», cujo radical indo-europeu wel significa rolar – sentido que os derivados gregos mantêm (por ex. elúo = rolar, hélix = hélice, espiral). Sobressai a ideia de movimento, presente nos termos portugueses «revolução, vale (movimento de descer - cfr. o francês «avaler» = engolir), volta, valsa, evolução, volúvel, volume», etc. O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora (1989) dá os seguintes sentidos para o termo «desenvolver»: «tirar do invólucro, fazer medrar, aumentar, expor minuciosamente». Se admitirmos, na esteira deste e outros dicionários, que «desenvolver» é dar (mostrar, patentear...) toda a extensão, amplitude, superfície, volume... daquilo que é próprio do objecto considerado, vemos como este elenco demasiado "físico" das características do objecto apela ao conceito filosófico de «verdade», cujo radical indo-europeu wer, swer (atar) originou o inglês «worth» (desejável, valioso) e os étimos latinos de «verdade» e «sério». O termo grego «alétheia», de outra origem, recobre a ideia de desocultar.

Mas convém não deixar de referir que a noção de desenvolvimento é em si ambígua, pois o mal ou o que é relativamente mau, também se desenvolve: seja um cancro bem desenvolvido, seja uma ideologia nazista bem desenvolvida, seja a empolgante cruzada pela liberdade sexual, seja o indiscutível “progresso” da violência.

O problema do bem e do mal, o problema dos fins (télos) e a também misteriosa riqueza escondida no termo ánthropos, são temas centrais em filosofia e necessitam de uma abordagem metafísica, incipiente no último capítulo.

Um factor presente praticamente em todas as definições, como acabámos de recordar, é o de desenvolvimento, seja ou não com um objectivo preciso, seja da pessoa na sua totalidade, seja de uma ou várias virtualidades do indivíduo. Fundamentalmente, é necessário possibilitar ao sujeito um estádio considerado "superior", obviamente na linha do que é ou deve ser natural, como podem ilustrar S. Tomás de Aquino, Coménio, Rousseau, Pestallozzi, Marx, Freud, Dewey, Montessori... Todos aceitam como base ou ponto de partida o "acto natural" próprio do homem. Todos tomam partido pelo "bom desenvolvimento", aquele que será o mais coerente com a "natureza humana", perspectivada segundo a capacidade de apreensão e construção conceptual de cada qual.

Ficando assim o "desenvolvimento", como noção e como processo, demasiado sujeito a valorizações diversas, o critério da educação terá que recuar. Para não arriscar um processo infinito, porque não reter como cerne e critério do acto educativo essa própria busca insatisfeita dum objectivo e dum critério? Tanto a teorização como a acção implicam escolha – do que parece "melhor", do que é "mais prático", do que "apetece mais"... Ora a escolha "própria do homem" tem que ser "racional". Isto é, o critério da educação (e daí o objectivo genérico da educação) pode afirmar-se como a procura contínua de justificação – exercício da razão. Portanto, o homem educado é um homem crítico, que não descansa nos dados que vai obtendo[5].

Para garantir uma escolha justificada, podem-se construir sistemas – com os requisitos duma teoria científica – e que, englobando o polo epistemológico e o da praxis, se chama sistema educativo. Os sistemas porém, estão sujeitos ao "fenómeno da burocratização" que tende a enquistar.

Vale a pena terminar com outra reflexão de Fullat (1990b, 445): «A "theoria", a "sophia" e a "phrónesis", são três conceitos aristotélicos muito significativos em educação. A theoria olha as coisas para além da sua utilidade, porque merecem, porque são um "Telos" da acção e reflexão educacionais. A "sophia" é o lugar utópico donde desejaríamos olhar todas as coisas, e que por isso consiste num lento, penoso mas gratificante "filo-sofar". O homem é um ser que pode, precisamente porque ainda não é. A "phrónesis" é a sabedoria prática que pressupõe saborear o sentido da vida, o conflito entre bem e mal, e a constatação de que tudo poderia ser sempre de outra maneira».

Por outras palavras, o critério de educação aludido ganha corpo no desejo de realizar o ánthropos.

E, como desejo, manifesta o errar característico do ser humano enquanto poietés: encandeado quer pelo mais transcendente quer pelo mais concreto, ele “age” descobrindo que o bem se impregna no agir. Talvez se possa ler esta dialéctica em Patrício (1993a, 51), quando escreve: «A educação, insistimos, é acção». Mas não uma «acção desligada do pensamento», «teoricamente cega». «É acção atravessada de uma ponta a outra pelo conhecimento do homem e pela intencionalidade axiológica a seu respeito». 

É neste esforço comum por realizar o ánthropos, como se verá ainda nas páginas seguintes, que se pode desenhar o consenso. Mas de modo nenhum um consenso redutor da riqueza do contributo de cada pessoa: é o reconhecimento do esforço, este sim comum, por desvelarmos cada vez melhor o que é ser «homem» e os caminhos mais congruentes com a dignidade humana para atingirmos a perfeição humana de cada qual.


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[1] Citação de  Peters R. S. (1977). Filosofia de la Educación. México: F. C. E..

[2] Cesca (1913, 30) refere que «Criação e educação [...] são factos necessários e condições indispensáveis da vida animal e social do homem». É o conjunto do desenvolvimento da nossa "animalidade" e da nossa "espiritualidade" (também poderíamos dizer "humanidade"). Contudo, mais à frente (ibid., 33), o mesmo autor define educação como «o conjunto das acções que se exercem sobre um indivíduo ainda imaturo para apressar e melhorar o seu desenvolvimento orgânico e psíquico, e para o tornar mais apto a viver no ambiente físico, em que se encontra, e na sociedade, de que faz parte».

[3] Cfr. bibliografia citada de C. C. Oliveira, onde se desenvolve a noção de "poiesis".

[4] Toda a "Introdução" desta obra discute a oposição com "pedagogia", sobretudo até à pág. 16. Todo o livro reflecte a preocupação fundamental indizível nos conceitos mais comuns e porventura radicalmente indizível. Cfr. o Cap. II da 3ª parte, em especial. Sobre o tema de formação, vale a pena considerar as dimensões semânticas do conceito alemão de «Bildung».

[5] Este gosto pelo risco pode ser exemplificado pelo mero título de dois interessantes trabalhos: Boavida - «A vertigem como valor», título do quarto parágrafo de «Acesso e Processo em Axiologia Educacional» (1998,  230); e o de J. M. Araújo - «Valores e Educação na Metáfora da Viagem» (1998).

 


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