Manuel Alte da Veiga, Um critério para a Educação?, Braga, 2004.


5 – Modos de «admirar» a educação

 

5.3 Relançando problemas

 

Porém, esta explicação das três disciplinas sintetizadoras não se aplica facilmente. Basta recordar o que acima foi dito a propósito de teoria da educação, para encontrarmos o cruzamento contínuo com a Filosofia da Educação, nos termos de Fullat. Só o adjectivo "crítico" da Filosofia da Educação é que parece distingui-la, na prática, da teoria da educação: pois esta, com efeito, também é um "saber globalizador, compreensivo". Se a característica nuclear da Teoria da Educação, em Fullat, se encontra «na medida em que estes [processos educativos] são aprendizagem», a parte do leão cabe à Filosofia da Educação, cuja incumbência seria criticar a própria teoria, analisando e ponderando cada um dos termos definidos da Teoria da Educação e fundamentando a própria «Pedagogia Fundamental»[1].

 

A seguir, podemos ver outros exemplos deste esforço por definir "áreas" – muito pouco consensual "in terminis", mas pressupondo linhas orientadoras bastante semelhantes[2].  

 

É a partir da noção de Pedagogia como ciência de facto, por muito discutível que seja o conceito de ciência, que Brezinka (1992, 25) propõe três áreas de actividade – ou tipos de «conhecimento pedagógico»:

1) «Ciência da educação» – conhecimento científico

2) «Filosofia da educação"» – conhecimento filosófico

3) «Pedagogia prática» – conhecimento prático.

 

Segundo Fullat (1990b, 429-430), para José M. Quintana a Teoria da Educação é «aquela parte da Pedagogia Geral que estuda a natureza, os fins e os factores do acto educativo, enquanto que a Filosofia da Educação opera com pressupostos metafísicos».

Para Mortimer J. Adler, na opinião do autor citado (ibid.), dão-se duas classes de perguntas sobre educação: «as que se interessam pela natureza das coisas» e as que se interessam «pelo que se deve fazer». «Descrever e explicar» o que é educacional é uma coisa; estabelecer normas é outra coisa.

Os estudos sobre educação podem assim incidir, seguindo o pensamento de Fullat (ibid.), sobre a sua natureza (Filosofia da Educação); as suas normas eficazes (Pedagogia fundamental); a sua descrição (Teoria da Educação).

A dificuldade de "teorizar" os saberes sobre educação manifesta-se ainda em propostas como estas: A) «Filosofia da educação»; B) «Biologia, Psicologia, Sociologia... da Educação»; C) «Pedagogia Fundamental» (Fullat, ibid.).

Esta clarificação é dificultada pela ambiguidade interna dos conceitos de Pedagogia, Ciência, Educação... e do próprio acto educativo (mesmo a nível de investigação), como problema que tentámos abordar nas páginas anteriores. Talvez se possa inserir aqui a posição de García Carrasco (1984, 70-71): «O contexto conceptual do fenómeno educacional aparece como o de um ciclo de acção cujos principais componentes são: projecto de mudança num sistema de variáveis ou processos psicológicos; recurso a teorias científicas que dêem conta do funcionamento dos processos implicados; dedução ou inferência da normatividade que há-de reger a intervenção». Este contexto mostra claramente uma vertente tecnológica, mas sem implicar menos consideração pela explicação e teorização e pelo recurso a outras formas de pensamento.

Segundo a escola inglesa (Hirst, Peters, entre outros) uma Teoria da educação, não seria uma teoria científica, mas teorias de actividades práticas, preparando a pessoa para o que deve ou não ser feito. O que aumenta a dificuldade de um conteúdo preciso, "útil", incontroverso[3].

Contudo, já Aristóteles apontava para uma teoria científica da educação, que descreve e explica “o que é”; e uma teoria prática da educação – descreve e explica “o que deve ser”, propondo regras de acção.

Esta discussão depende da já referida ambiguidade do conceito "Ciência", não só em si como nas diferentes culturas. «Na Europa Central, atribui-se carácter científico a teorias educacionais quer práticas, quer filosóficas, quer de mundividência» (Brezinka, 1992, 4-5).

Aceitando uma ciência autónoma da educação, sob o nome de Pedagogia, teríamos três concepções básicas, de acordo com o autor supracitado:

– disciplina normativa e descritiva (nem puramente especulativa, nem puramente descritiva).

– disciplina filosófica (fins da educação).

– disciplina puramente empírica (refere-se a métodos...). Nesta acepção os "fins" são intermédios, mais ou menos "normais" e descritos empiricamente mas com rigor científico, subordinado aos factos e ao que as pessoas querem. Os ideais filosóficos são postos de lado. As duas primeiras acepções seriam guias directivas da praxis. Acompanhando este pensamento, Fullat (1990a, 71) confronta educação e pedagogia, com estas palavras: «Educação é uma prática, uma actividade social, uma acção; Pedagogia é uma reflexão, uma teorização, um conhecimento ou tomada de consciência».

Talvez seja conveniente referir outra reflexão de Fullat (1990b, 424): A «razão prática educacional» pode ser usada em três sentidos: a) «Técnico: sentido comum ou uso quotidiano da razão visando o acto educativo»; b) «Tecnológico: uso consciente da ciência e da técnica para o trabalho educativo»; c) «Praxeológico: uso da ciência e da técnica para resolver questões práticas da educação, reconhecendo a insuficiência de uma e outra».

Ao longo dos tempos a "teoria prática da educação" teve como principais componentes «razão, objectivos, normas, recomendações para agir» (Brezinka, 1992, 6), nessa medida dependendo da Psicologia, Ética e Filosofia. Para Schleiermacher, a «Pedagogia é uma ciência aplicada derivada da Ética» (ibid.) – destinada a influenciar as gerações mais novas. De facto, a questão fundamental da Pedagogia é o sentido da vida humana, mas que depende de diferentes pontos de vista filosóficos ou ideologias. Não se trata apenas de interpretar os factos diferentemente, mas de esta interpretação depender de diferentes ideais do homem e da sociedade – que apontam sobretudo para o que deve ser.

Segundo M. Barbosa (1998, 119), é necessário pôr em cheque «a concepção de relacionamento entre teoria e prática que se estabeleceu e institucionalizou sob os auspícios do paradigma positivista e cientista das certezas», gerando um autoritarismo da teoria «como instrumento de planificação – programação e controlo – verificação de tudo o que se faz». Agora, todo o educador é «autor das estratégias», tornando-se a sua tarefa «mais exigente e mais comprometida» (ibid., 123).

Podemos mesmo dizer que Teoria e Prática se embebem, no texto de A. J. Silva (1998, 152), transformando a sociedade em educação num rigoroso "campo de batalha". No final do artigo, pode ler-se: «O nível de aprendizagem a que a pedagogia crítica se refere, situa-se num horizonte de possibilidade de construção – nas escolas, nas salas de aula, pelos textos e por outros espaços onde seja possível e necessário o poder da compreensão – de condições e de conhecimentos contra-hegemónicos que contribuam para formas de emancipação humana. Isto faz da pedagogia uma actividade emancipatória».

É por isso que «a educação não pode aceitar, e ainda menos promover, as forças que nos condicionam e dominam. A grande questão é pois esta: em que medida e como, podem a mudança e a evolução, enquanto categorias educativas, enriquecer os contornos da nossa humanidade e promover a nossa efectiva libertação? Trabalho de fundamentação teórica tanto mais difícil quanto é certo que parecem ir ao encontro dessa liberdade muitos dos subvalores da sociedade de consumo que nos está mudando eventualmente mais do que seria conveniente, e por certo mais do que conseguimos compreender» (Boavida, 1991b, 211). 

Quanto à interdependência e conflito entre Pedagogia e Filosofia, começaria por citar novamente a opinião deste autor, para quem o pensamento filosófico é uma pedagogia reflexiva que só se pode admitir enquanto se percebe que «a relação entre a filosofia e a pedagogia é interactiva e dinâmica». É necessário que o filósofo medite nesta interacção enquanto filósofo e educador (Boavida, 1993, 351)[4]. Pensamento epistemologicamente bem explicitado no parágrafo seguinte: «O mesmo acontece com os novos problemas filosóficos postos pelas modernas concepções educativas, que são pedagógicas antes de serem filosóficas, e isto porque chegam à filosofia depois e pela via pedagógica; mesmo que filosoficamente o sejam antes de ser pedagógicos. Além de que nem todos lá chegam. E mesmo que insistamos na ideia de que são de natureza filosófica, ou têm contorno filosófico, o que é um facto, o certo é que só a pedagogia lhes deu existência e lhes possibilitou o posterior perfil filosófico» (Ibid., 354). O imediatismo pragmático contemporâneo, tendente a um instantaneismo de objectivos, não dá tempo ao discurso filosófico, mas acaba por se confessar privado de fundamento.

Poder-se-ia assim acrescentar que a Filosofia da Educação transcende a Pedagogia convencional na medida em que se assume como antropagogia, na terminologia de Patrício (cfr. obras citadas).

Assumindo-se como tal, tem que estar aberta, o mais possível, ao vasto leque de “programas educacionais” e de experiências, de cujo valor só poderá emitir um juízo cautelar, provisório, pois a noção de sucesso é facilmente perversa, numa sociedade em que, sob a capa da democracia, é de facto «o mais forte» que «é bom». No seu trabalho de fundamentar as normas, é que poderá iluminar o valor antropagógico das actividades humanas (ou mais comprometidamente, dos projectos) no campo educacional.

É muito importante frisar que a antropagogia olha muito para além “deste” homem ou mulher, e mesmo “desta” geração ou sociedade: defende a Vida, ilimitada pelo tempo ou espaço, atenta à “ponta de lança” desse fenómeno extraordinário e defendendo as suas manifestações superiores.

No meio da sua discussão de várias posições perante o fenómeno educativo, Fullat (1990b, 425) esquematiza a «razão analítica e sintética» como debruçando-se sobre os «factos educativos com diversos graus de racionalidade prática», gerando os saberes do "geral"; tecnológicos e científicos, nas suas especialidades; «integradores e gerais» divisíveis em «Pedagogia Fundamental, Teoria da Educação, Filosofia da Educação». Este esquema segue a constatação de que «a razão humana se esforça por conseguir uma visão maximalmente geral» daquilo que observa – da sua “circunstância”, o que lhe alcançará a phrónesis indispensável para agir sobre essa mesma circunstância.

«La phrónesis con que la paideia trae al mundo al anthropos es 'saber-decidir', 'saber-como-obrar', 'saber-vivir' y 'saber actuar' según el designio que hace bueno al hombre».

«Anthropos y Paideia, hombre y educación, parecen inseparables. La paideia es preñez y a la vez parto inagotables de lo humano» (Fullat, 1998,  165).

A partir de Alejandro Sanvicens, Fullat (1990b, 430) sintetiza três dimensões: «adaptiva: Teoria da Educação; projectiva: Pedagogia Fundamental; introjectiva: Filosofia da Educação».

«A Pedagogia Fundamental não se especifica por levar a cabo estudos interdisciplinares – condição necessária mas não suficiente. O que a singulariza como saber sintetizador e globalizante é o carácter normativo dos seus enunciados. A simples colecção de dados científicos e tecnológicos, relacionando-os, não lhe permite ditar orientações para a acção educativa; aliás, deve proceder prudentemente, tendo em vista o bem do homem. A síntese integradora própria da Pedagogia Fundamental será prescriptiva ou recomendadora» (ibid., 434).

 Noutro esforço de sintetizar os saberes da educação, o mesmo autor distingue, reelaborando o já dito no final do parágrafo anterior:

– «explicar a educação: pelas causas (ciências e tecnologias) ou descritivamente (Teoria da Educação)»;

– «prescrever a educação: Pedagogia Fundamental»;

– «compreender a educação: Filosofia da Educação». 

Charbonnel (1988, 109), no capítulo II, intitulou sugestivamente um parágrafo: «A Filosofia da Educação como especialista das generalidades?». De facto, no virar dos séculos XIX e XX, o positivismo comteano deixou à filosofia esse estatuto. Mas também é certo que o primeiro livro (ou um dos primeiríssimos, na opinião de Charbonnel) de autoria francesa intitulado Filosofia da Educação (1910) trazia o subtítulo de Ensaio de Pedagogia Geral. E o primeiro dos quatro tomos de J. Leif e G. Rustin (1970) sobre Filosofia da Educação leva o título de «Pedagogia Geral».

Avanzini, citado por Charbonnel (1988, 115) diz o seguinte sobre Filosofia da Educação: «A Filosofia da Educação não é redutível a uma epistemologia; também lhe cabe estipular os fins e valores da educação, em íntima ligação com a filosofia geral, de que não é dissociável». E continua: «O que nos leva a dizer, complementariamente, que a reflexão sobre as finalidades exige uma abordagem organizada e metódica e que não se pode chamar filosofia da educação, mesmo se assim se denominam, os discursos ideológicos, palavrosos ou polémicos, que muita gente não consegue superar».[5]

Nanni (1990, 24) adverte lucidamente que a filosofia da educação não é «uma filosofia das ciências da educação».[6]. Com efeito, todo o professor, de qualquer matéria, deve reflectir criticamente sobre a sua prática. Por outro lado, o filósofo «não pensa em vez dos outros» (Charbonnel, 1988, 125).       

Quanto à Filosofia da Educação, não lhe compete ser hermeneuta de textos alheios, mas criticar profundamente o pensamento educacional, «o que inclui o conceito vulgar de Filosofia da Educação como discurso sobre os fundamentos, fins e valores». A Filosofia da Educação «é o pensamento deste pensamento [educacional]» (op. cit., 173). É um trabalho árduo, com múltiplas implicações, pois, «a razão combate contra ela própria» (ibid. 174).

____________________________________
 

[1] Com razão comenta Jonatham (1995, 94): «Os parâmetros da filosofia da educação têm que se alargar cada vez mais, para iluminar a nossa experiência pessoal e social. A filosofia da educação é muito afim da teoria, ao procurar um núcleo de conceitos suficientemente robustos para orientar a 'campanha educacional'».

[2] Encontra-se uma boa visão sistematizadora desta temática em L. Santos (1989/90).

[3] Daí o acerto do comentário de Luis Sebastião (1998, 285): Perante a pluralidade - e pluralismo - das mundividências, compete à educação "fundar eticamente a vida". Educação que se poderia definir como «rigoroso exercício crítico que vise encontrar critérios, senão de verdade, pelo menos de razoabilidade, que permitam iluminar a inevitável adesão a uma dessas mundividências».

[4] «A filosofia é pedagógica na medida em que é dialógica e analítica, na medida em que produz e exige um discurso crítico que é simultâneamente desconstrutivo/construtivo e vocacionalmente fundamentador de novas evidências».

«Por outro lado, a pedagogia é filosófica na medida em que, definindo fins e meios, concebendo um homem e uma sociedade, reconhecendo modelos, hierarquizando valores, isto é, pressupondo uma cosmovisão, prefigura uma preocupação e uma função filosóficas. E [...] uma vez que projecta e aperfeiçoa, se organiza segundo padrões e se dinamiza de acordo com referências, é teleológica e, por vezes, utópica. Em qualquer dos casos, portanto, filosófica» (Op. Cit.,  353). Sobre a dimensão utópica, cfr. Carvalho (2000a).

Nas "Palavras de conclusão" do seu artigo, Casulo (1998, 111) afirma: «A Filosofia da Educação é coisa de sempre na História da Filosofia, nela tem genésica, multissecular e actual presença e não foi, nem é, algo de somenos importância, uma espécie de parente pobre da Filosofia Ocidental».

[5] (Avanzini, Guy (1984). A l'occasion du centenaire de l'enseignement de la science de l'éducation.  Bulletin de la Société Alfred Binet et Théodore Simon.  600-601, ano 84,  p. 10.

[6] Todo o capítulo introdutório (pp. 9-28) descreve, com muita riqueza de informação, as bases do estatuto da Filosofia da Educação.

 


  Página anterior Página inicial Página seguinte