5.3 –
Relançando problemas
Porém, esta
explicação das três disciplinas sintetizadoras não se aplica
facilmente. Basta recordar o que acima foi dito a propósito de
teoria da educação, para encontrarmos o cruzamento contínuo com a
Filosofia da Educação, nos termos de Fullat. Só o adjectivo
"crítico" da Filosofia da Educação é que parece distingui-la, na
prática, da teoria da educação: pois esta, com efeito, também é um
"saber globalizador, compreensivo". Se a característica nuclear da
Teoria da Educação, em Fullat, se encontra «na medida em que estes
[processos educativos] são aprendizagem», a parte do leão cabe à
Filosofia da Educação, cuja incumbência seria criticar a própria
teoria, analisando e ponderando cada um dos termos definidos da
Teoria da Educação e fundamentando a própria «Pedagogia Fundamental».
A seguir,
podemos ver outros exemplos deste esforço por definir "áreas" –
muito pouco consensual "in terminis", mas pressupondo linhas
orientadoras bastante semelhantes.
É a partir da
noção de Pedagogia como ciência de facto, por muito
discutível que seja o conceito de ciência, que Brezinka (1992, 25)
propõe três áreas de actividade – ou tipos de «conhecimento
pedagógico»:
1) «Ciência da
educação» – conhecimento científico
2) «Filosofia da
educação"» – conhecimento filosófico
3) «Pedagogia
prática» – conhecimento prático.
Segundo Fullat
(1990b, 429-430), para José M. Quintana a Teoria da Educação
é «aquela parte da Pedagogia Geral que estuda a natureza, os fins e
os factores do acto educativo, enquanto que a Filosofia da
Educação opera com pressupostos metafísicos».
Para Mortimer J.
Adler, na opinião do autor citado (ibid.), dão-se duas
classes de perguntas sobre educação: «as que se interessam pela
natureza das coisas» e as que se interessam «pelo que se deve
fazer». «Descrever e explicar» o que é educacional é uma coisa;
estabelecer normas é outra coisa.
Os estudos sobre
educação podem assim incidir, seguindo o pensamento de Fullat (ibid.),
sobre a sua natureza (Filosofia da Educação); as suas normas
eficazes (Pedagogia fundamental); a sua descrição (Teoria
da Educação).
A dificuldade de
"teorizar" os saberes sobre educação manifesta-se ainda em propostas
como estas: A) «Filosofia da educação»; B) «Biologia, Psicologia,
Sociologia... da Educação»; C) «Pedagogia Fundamental» (Fullat,
ibid.).
Esta
clarificação é dificultada pela ambiguidade interna dos conceitos de
Pedagogia, Ciência, Educação... e do próprio
acto educativo (mesmo a nível de investigação), como problema
que tentámos abordar nas páginas anteriores. Talvez se possa inserir
aqui a posição de García Carrasco (1984, 70-71): «O contexto
conceptual do fenómeno educacional aparece como o de um ciclo de
acção cujos principais componentes são: projecto de mudança
num sistema de variáveis ou processos psicológicos; recurso a
teorias científicas que dêem conta do funcionamento dos
processos implicados; dedução ou inferência da normatividade
que há-de reger a intervenção». Este contexto mostra claramente uma
vertente tecnológica, mas sem implicar menos consideração pela
explicação e teorização e pelo recurso a outras formas de
pensamento.
Segundo a escola
inglesa (Hirst, Peters, entre outros) uma Teoria da educação,
não seria uma teoria científica, mas teorias de actividades
práticas, preparando a pessoa para o que deve ou não ser feito. O
que aumenta a dificuldade de um conteúdo preciso, "útil",
incontroverso.
Contudo, já Aristóteles apontava
para uma teoria científica da educação, que descreve e explica “o
que é”; e uma teoria prática da educação – descreve e explica “o que
deve ser”, propondo regras de acção.
Esta discussão
depende da já referida ambiguidade do conceito "Ciência", não só em
si como nas diferentes culturas. «Na Europa Central, atribui-se
carácter científico a teorias educacionais quer práticas, quer
filosóficas, quer de mundividência» (Brezinka, 1992, 4-5).
Aceitando uma
ciência autónoma da educação, sob o nome de Pedagogia, teríamos três
concepções básicas, de acordo com o autor supracitado:
– disciplina
normativa e descritiva (nem puramente especulativa, nem puramente
descritiva).
– disciplina
filosófica (fins da educação).
– disciplina
puramente empírica (refere-se a métodos...). Nesta acepção os "fins"
são intermédios, mais ou menos "normais" e descritos empiricamente
mas com rigor científico, subordinado aos factos e ao que as pessoas
querem. Os ideais filosóficos são postos de lado. As duas primeiras
acepções seriam guias directivas da praxis. Acompanhando este
pensamento, Fullat (1990a, 71) confronta educação
e pedagogia, com estas palavras: «Educação é uma
prática, uma actividade social, uma acção; Pedagogia é uma
reflexão, uma teorização, um conhecimento ou tomada de consciência».
Talvez seja
conveniente referir outra reflexão de Fullat (1990b, 424): A «razão
prática educacional» pode ser usada em três sentidos: a) «Técnico:
sentido comum ou uso quotidiano da razão visando o acto educativo»;
b) «Tecnológico: uso consciente da ciência e da técnica para
o trabalho educativo»; c) «Praxeológico: uso da ciência e da
técnica para resolver questões práticas da educação, reconhecendo a
insuficiência de uma e outra».
Ao longo dos
tempos a "teoria prática da educação" teve como principais
componentes «razão, objectivos, normas, recomendações para agir» (Brezinka,
1992, 6), nessa medida dependendo da Psicologia, Ética e Filosofia.
Para Schleiermacher, a «Pedagogia é uma ciência aplicada derivada da
Ética» (ibid.) – destinada a influenciar as gerações mais
novas. De facto, a questão fundamental da Pedagogia é o sentido
da vida humana, mas que depende de diferentes pontos de vista
filosóficos ou ideologias. Não se trata apenas de interpretar os
factos diferentemente, mas de esta interpretação depender de
diferentes ideais do homem e da sociedade – que apontam sobretudo
para o que deve ser.
Segundo M.
Barbosa (1998, 119), é necessário pôr em cheque «a concepção de
relacionamento entre teoria e prática que se estabeleceu e
institucionalizou sob os auspícios do paradigma positivista e
cientista das certezas», gerando um autoritarismo da teoria «como
instrumento de planificação – programação e controlo – verificação
de tudo o que se faz». Agora, todo o educador é «autor das
estratégias», tornando-se a sua tarefa «mais exigente e mais
comprometida» (ibid., 123).
Podemos mesmo dizer que Teoria e
Prática se embebem, no texto de A. J. Silva (1998, 152),
transformando a sociedade em educação num rigoroso "campo de
batalha". No final do artigo, pode ler-se: «O nível de aprendizagem
a que a pedagogia crítica se refere, situa-se num horizonte de
possibilidade de construção – nas escolas, nas salas de aula, pelos
textos e por outros espaços onde seja possível e necessário o poder
da compreensão – de condições e de conhecimentos contra-hegemónicos
que contribuam para formas de emancipação humana. Isto faz da
pedagogia uma actividade emancipatória».
É por isso que
«a educação não pode aceitar, e ainda menos promover, as forças que
nos condicionam e dominam. A grande questão é pois esta: em que
medida e como, podem a mudança e a evolução, enquanto categorias
educativas, enriquecer os contornos da nossa humanidade e promover a
nossa efectiva libertação? Trabalho de fundamentação teórica tanto
mais difícil quanto é certo que parecem ir ao encontro dessa
liberdade muitos dos subvalores da sociedade de consumo que nos está
mudando eventualmente mais do que seria conveniente, e por certo
mais do que conseguimos compreender» (Boavida, 1991b, 211).
Quanto à
interdependência e conflito entre Pedagogia e Filosofia, começaria
por citar novamente a opinião deste autor, para quem o pensamento
filosófico é uma pedagogia reflexiva que só se pode admitir enquanto
se percebe que «a relação entre a filosofia e a pedagogia é
interactiva e dinâmica». É necessário que o filósofo medite nesta
interacção enquanto filósofo e educador (Boavida, 1993, 351).
Pensamento epistemologicamente bem explicitado no parágrafo
seguinte: «O mesmo acontece com os novos problemas filosóficos
postos pelas modernas concepções educativas, que são pedagógicas
antes de serem filosóficas, e isto porque chegam à filosofia
depois e pela via pedagógica; mesmo que filosoficamente o sejam
antes de ser pedagógicos. Além de que nem todos lá chegam. E mesmo
que insistamos na ideia de que são de natureza filosófica, ou têm
contorno filosófico, o que é um facto, o certo é que só a pedagogia
lhes deu existência e lhes possibilitou o posterior perfil
filosófico» (Ibid., 354). O imediatismo pragmático
contemporâneo, tendente a um instantaneismo de objectivos, não dá
tempo ao discurso filosófico, mas acaba por se confessar privado de
fundamento.
Poder-se-ia assim acrescentar que a
Filosofia da Educação transcende a Pedagogia convencional na medida
em que se assume como antropagogia, na terminologia de
Patrício (cfr. obras citadas).
Assumindo-se como tal, tem que
estar aberta, o mais possível, ao vasto leque de “programas
educacionais” e de experiências, de cujo valor só poderá emitir um
juízo cautelar, provisório, pois a noção de sucesso é facilmente
perversa, numa sociedade em que, sob a capa da democracia, é de
facto «o mais forte» que «é bom». No seu trabalho de fundamentar as
normas, é que poderá iluminar o valor antropagógico das actividades
humanas (ou mais comprometidamente, dos projectos) no campo
educacional.
É muito importante frisar que a
antropagogia olha muito para além “deste” homem ou mulher, e mesmo
“desta” geração ou sociedade: defende a Vida, ilimitada pelo tempo
ou espaço, atenta à “ponta de lança” desse fenómeno extraordinário e
defendendo as suas manifestações superiores.
No meio da sua
discussão de várias posições perante o fenómeno educativo, Fullat
(1990b, 425) esquematiza a «razão analítica e sintética» como
debruçando-se sobre os «factos educativos com diversos graus de
racionalidade prática», gerando os saberes do "geral"; tecnológicos
e científicos, nas suas especialidades; «integradores e gerais»
divisíveis em «Pedagogia Fundamental, Teoria da Educação, Filosofia
da Educação». Este esquema segue a constatação de que «a razão
humana se esforça por conseguir uma visão maximalmente geral»
daquilo que observa – da sua “circunstância”, o que lhe alcançará a
phrónesis indispensável para agir sobre essa mesma
circunstância.
«La
phrónesis con que la paideia trae al mundo al
anthropos es 'saber-decidir', 'saber-como-obrar', 'saber-vivir'
y 'saber actuar' según el designio que hace bueno al hombre».
«Anthropos
y Paideia, hombre y educación, parecen inseparables. La
paideia es preñez y a la vez parto inagotables de lo humano» (Fullat,
1998, 165).
A partir de
Alejandro Sanvicens, Fullat (1990b, 430) sintetiza três dimensões: «adaptiva:
Teoria da Educação; projectiva: Pedagogia Fundamental;
introjectiva: Filosofia da Educação».
«A Pedagogia
Fundamental não se especifica por levar a cabo estudos
interdisciplinares – condição necessária mas não suficiente. O que a
singulariza como saber sintetizador e globalizante é o carácter
normativo dos seus enunciados. A simples colecção de dados
científicos e tecnológicos, relacionando-os, não lhe permite ditar
orientações para a acção educativa; aliás, deve proceder
prudentemente, tendo em vista o bem do homem. A síntese
integradora própria da Pedagogia Fundamental será prescriptiva ou
recomendadora» (ibid., 434).
Noutro esforço de sintetizar os
saberes da educação, o mesmo autor distingue, reelaborando o já dito
no final do parágrafo anterior:
– «explicar
a educação: pelas causas (ciências e tecnologias) ou descritivamente
(Teoria da Educação)»;
– «prescrever
a educação: Pedagogia Fundamental»;
– «compreender
a educação: Filosofia da Educação».
Charbonnel
(1988, 109), no capítulo II, intitulou sugestivamente um parágrafo:
«A Filosofia da Educação como especialista das generalidades?».
De facto, no virar dos séculos XIX e XX, o positivismo comteano
deixou à filosofia esse estatuto. Mas também é certo que o primeiro
livro (ou um dos primeiríssimos, na opinião de Charbonnel) de
autoria francesa intitulado Filosofia da Educação (1910)
trazia o subtítulo de Ensaio de Pedagogia Geral. E o primeiro
dos quatro tomos de J. Leif e G. Rustin (1970) sobre Filosofia da
Educação leva o título de «Pedagogia Geral».
Avanzini, citado
por Charbonnel (1988, 115) diz o seguinte sobre Filosofia da
Educação: «A Filosofia da Educação não é redutível a uma
epistemologia; também lhe cabe estipular os fins e valores da
educação, em íntima ligação com a filosofia geral, de que não é
dissociável». E continua: «O que nos leva a dizer,
complementariamente, que a reflexão sobre as finalidades exige uma
abordagem organizada e metódica e que não se pode chamar filosofia
da educação, mesmo se assim se denominam, os discursos ideológicos,
palavrosos ou polémicos, que muita gente não consegue superar».
Nanni (1990, 24) adverte lucidamente que a filosofia da
educação não é «uma filosofia das ciências da educação»..
Com efeito, todo o professor, de qualquer matéria, deve reflectir
criticamente sobre a sua prática. Por outro lado, o filósofo «não
pensa em vez dos outros» (Charbonnel, 1988, 125).
Quanto à
Filosofia da Educação, não lhe compete ser hermeneuta de textos
alheios, mas criticar profundamente o pensamento educacional, «o que
inclui o conceito vulgar de Filosofia da Educação como discurso
sobre os fundamentos, fins e valores». A Filosofia da Educação «é o
pensamento deste pensamento [educacional]» (op. cit., 173). É
um trabalho árduo, com múltiplas implicações, pois, «a razão combate
contra ela própria» (ibid. 174).
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