5.2 –
Procurando uma síntese
Comecemos pelo
sugestivo título de uma das obras de Maritain (1932): Distinguer
pour unir ou les degrés du savoir. As distinções metafísicas, ou
as da ciência física e matemática, são boas em si, e necessárias
até, para que o nosso conhecimento adquira a maior vastidão possível
de ângulos de observação da realidade – que não se confunde com as
nossas ideias, sendo estas o instrumento humano para realizar o
nosso desejo natural de compreender a realidade em si. O que
acontece facilmente é nós perdermo-nos neste desejo (cfr. o último
capítulo), acabando prisioneiros das nossas ideias e incapazes de
re-estabelecer a unidade dos seres sobre que nos debruçámos, quer
pelas "ciências exactas" quer pela metafísica. Só mediante este
passo é que nos podemos acercar da unidade perfeita do esse
subsistens.
O interesse do
enfrentamento de ideias, bem patente neste trabalho, pode ser
fundamentado em passagens como esta: Zubiri (1963, 283) esclarece
que «os filósofos são homens que não estão de acordo entre si, mas
que no fundo se entendem entre si», porque têm consciência de se
movimentar num campo sem evidências nem certezas, em que as
combinações dialécticas são impotentes para encontrar a saída,
cabendo a cada qual, com a sua vida (exemplo de Dilthey) ou seu modo
de existir (exemplo de Heidegger) lançar-se ao «penoso, penosíssimo
esforço, do trabalho filosófico» (op. cit. 284). São aqueles
sábios, como refere Aristóteles, que têm consciência do rigor
relativo à «natureza do assunto» (1959, 1094b).
Lalande (1962)
apresenta os seguintes usos de teoria: «uma construção especulativa
do espírito, ligando consequências a princípios», que se pode
definir por uma série de oposições: (1) A teoria opõe-se à prática,
quer na ordem dos factos quer na ordem normativa: «conhecimento
desinteressado, independente das suas aplicações»; «o direito puro
ou o bem ideal, distintos das obrigações comummente reconhecidas».
(2) Opõe-se ainda ao conhecimento vulgar, pelo seu método e
sistematização. (3) Por último, opõe-se ao pormenor da ciência
enquanto «larga síntese propondo-se explicar um grande número de
factos e admitida, a título de hipótese verosímil, pela maioria dos
sábios de uma época». Esta última concepção de Lalande apresenta um
forte sabor a positivismo científico, e só a primeira parte se
aplica cabalmente ao domínio filosófico, podendo-se estender a
segunda parte ao domínio pedagógico, enquanto “ciência”. Lalande
refere ainda o sentido pejorativo de teoria, como visão artificial
sobre a realidade, demasiado sujeita à atracção da imaginação.
Acrescentaríamos a acusação vulgar de que os teóricos andam nas
nuvens e são pouco profundos.
Na opinião de
Gary (1997), o próprio conceito de teoria é demasiado ambíguo, quer
a "grande" teoria (produto de consenso a nível "científico") quer a
teoria pessoal, não constituindo um ponto de partida suficientemente
sólido e, de qualquer modo, inibindo frequentemente a criatividade.
Este cepticismo
caberia com toda a propriedade a uma "Teoria da educação": a
ambiguidade é potenciada, quer a nível da posição "científica" quer
a nível pessoal, e a criatividade corre um grave risco de ser
inibida, sem a contrapartida de dar lugar a uma mensagem "isenta",
ao menos ideologicamente, quanto à mundividência, não impedindo a
abertura às formas de conhecimento básicas (cfr. Veiga, 1998 e
1988a).
O pano de fundo
das "teorias científicas" mais uma vez dificulta uma elaboração
teórica desenfeudada – sem pôr de lado o ideal de rigor e consenso
fundamentado.
De facto, as
teorias são entendidas como tentativas de explicação de factos
passados, ou possíveis e futuros, mais ou menos em contraposição à
prática, mas sempre com as características de explicação e
predição, baseadas numa sistematização de conhecimentos e
crenças (não necessariamente reconhecidas como hipotéticas).
De modo
sintético e claro, escreve Fullat (1990b, 437): «"Theoria", em
grego, designou a acção de olhar e inspeccionar alguma coisa».
Assim, «os espectadores do teatro grego foram uns teoréticos».
Aplicando ao acto de ver intelectual, Aristóteles chamou de «theoretiké
epistéme a ciência teorética, o discurso que se opõe tanto à
acção como à produção. O conhecimento humano é teorético (...)
quando ultrapassa a aísthesis e a empeiría». E
continua Fullat: «Uma teoria é uma especulação sistemática que
pretende descrever e explicar factos, submetendo-se ao
controlo da experiência. Uma teoria científica pretende conhecer,
sendo a sua função principal sistematizar e aumentar os
conhecimentos. É esta a função da Teoria da Educação».
E Barrow (1990,
sub v. theory), como que nos quer tranquilizar, ao dizer que
«a teoria pode ser produtiva mesmo quando parcialmente errada»,
sendo uma das suas características principais a ajustabilidade ao
progresso da observação – é portanto "errática" sem deixar de ser
útil. Com o que não concordaria Santo Agostinho, para quem «o
universo é a realização externa de uma ordem racional», é o sinal do
pensamento de Deus – e por isso todo ele é bom (Taylor, 1989, 128).
Seguindo as
ideias de Barrow (op. cit.), a teoria educacional seria um
dos ramos teóricos mais desenvolvidos na época de Platão. Se é
frequente ouvir dizer que a teoria educacional nasceu no nosso
tempo, a razão mais provável desta afirmação é o reducionismo
"científico", como parâmetro fundamental de avaliação dos produtos
do pensamento. Este modo de ver ignora o elevadíssimo grau de
profundidade e complexidade, que se atingiu desde Platão até ao fim
do século XIX. Não deixa de ser evidente que os conceitos
historicamente actuais só foram aprofundados no nosso tempo.
Contudo, mesmo nestas especializações, persistem os problemas
essenciais que poderiam ser sintetizados numa forma como esta: o que
vale mais a pena e como escolher e agir de um modo que valha a pena.
No século XX, em
especial, procurou-se elaborar a teoria da educação segundo as
estruturas comuns às ciências naturais, embora a teoria médica, por
exemplo, já apresente conceitos mais vagos, observações menos
generalizáveis e um conceito de finalidade e de bom/mau mais
"existencial" do que as ditas "ciências exactas".
Mas a teoria
educacional apresenta características muito mais problematizantes:
a) a finalidade é essencial, mas difícil de conceitualizar
claramente e sofre de fogos cruzados (cfr. o próprio conceito de
educação, criatividade, socialização, autonomia...);
b) não tem uma metodologia específica, nem uma avaliação ou
experimentação definidas, antes pelo contrário sempre questionáveis;
c) os conceitos centrais não são «claros e distintos» como seria
desejável, são difíceis de explicar, manipuláveis até, e a própria
denominação são objecto de contestação.
A conclusão mais
sensata sobre a grande dificuldade em incluir a teoria educacional
na teoria científica, é justamente que não se pode incluir,
como se tem verificado ao longo de muitos séculos. A educação não se
reduz a investigação empírica, no sentido da epistemologia
das "ciências empíricas" ou "exactas". Há questões filosóficas,
psicológicas e sociológicas que atravessam continuamente o
pensamento do filósofo da educação ou do educador em geral.
A confusão com a
teoria estritamente científica é natural, uma vez que a teoria é um
instrumento para a explicação e predição baseadas na razão, como é
aceite por muitos autores. Explicando em termos gerais o que sucede
no mundo dos fenómenos, não se está a reduzir necessariamente ao
mundo empírico – que não cobre o conjunto dos fenómenos, nem
evidencia qualidade superior (é apenas de outro género) na
elaboração de termos gerais unificadores do "universo" abrangido
pela própria perspectiva. A teoria sublinha a uniformidade, conexões
e sentido existentes no mundo. A predição nasce desta possibilidade
e depende do grau de "sucesso". E como já foi dito, uma teoria é
sempre hipotética, sujeita a mais nova e mais válida teoria, mais de
acordo com o conjunto de factos conhecidos. (Cfr. sobre este tema,
Moore, 1983).
Vários autores
chegam a lançar esta pergunta: será que, em Teoria da educação,
evoluímos significativamente desde o tempo de Platão?
Seja como for, a
melhor prática (por exemplo de um médico) não dispensa uma afincada
base teórica, como claramente expôs Aristóteles (1959, 1094a. Cfr.
as notas de Tricot).
Porém, os fins e
conceitos educacionais não estão articulados claramente (podê-lo-ão
ser?). A teoria, para vários autores, nem possui uma metodologia
específica. Talvez o principal seja dizer que um teórico da educação
deve ter presente a Filosofia, Sociologia, Psicologia e História.
Note-se porém
que a "Teoria crítica" de meados do século XX parte do princípio,
pode-se dizer, de que é impossível formar uma teoria única em
educação. Ao princípio, fez a tentativa de cruzar a teoria marxista
da sociedade com a psicanálise de Freud, num esforço muito próximo
da "hermenêutica da suspeita" tão falada por Ricoeur. Actualmente,
«a dúvida cartesiana atinge o coração dos fundamentos cartesianos» (Peukertruth,
1993, 161). A razão já não se dissocia da praxis transformadora. Os
próprios Horkheimer e Adorno, segundo o autor recém citado (ibid.),
reconhecem, no prefácio de Dialectic of Enlightenment, a
frustração perante os objectivos da teoria crítica.
Mas continuam a afirmar que a razão
é que nos liberta da natureza e nos permite dominá-la – o que
reflecte o nosso medo de sermos dominados. O pior é quando o poder
dos "grandes" transforma os seres humanos em natureza abaixo da
humanidade... Assim, a razão, que implica liberdade, volta-se contra
ela própria. Ainda segundo Peukertruth (op. cit.), Adorno
chega mesmo a traçar um quadro bem negro do uso da razão no futuro!
Para Habermas,
segundo Peukertruth (1993, 162) uma teoria crítica renovada tem que
atender aos seguintes pontos: a) nem a lógica nem a matemática podem
construir um sistema formal exaustivo; b) todas as teorias
precisam de conceitos básicos, mas nem estes podem ser
completamente determinados; c) os mesmos factos podem ser
explicados, com igual nível científico, por diferentes teorias; d)
não se deve abandonar facilmente uma teoria: a "sua verdade"
compadece-se de factos que lhe são contraditórios. É na sua
totalidade que uma teoria será substituída por outra. E acrescenta
que em "ciências humanas", ninguém pode ter a pretensão de leis
universais: iria contra a criatividade e contra a comunicação entre
seres de direitos iguais (cfr. Rocha, A. E., 2000).
Segundo Habermas,
é a linguagem que nos eleva acima da natureza: «Com a nossa primeira
frase, exprime-se claramente a intenção de um consensus universal e
sem barreiras» (Habermas, 1971, 314).
Em consequência,
a fundamentação filosófica tem que partir dos pressupostos da acção
comunicativa. Nesta se revela a intrincada fundamentação da ética,
que é um problema básico em Filosofia da Educação. Pois comunicar
com alguém é reconhecer nesse alguém o comum direito de resposta
consensual ou conflitual. Uma teoria da educação nasce das
inevitáveis pressuposições da comunicação humana (liberdade e
direito à resposta, por exemplo).
Para Peukertruth (1993, 167),
finalmente, «a tarefa básica para uma teoria da educação bem como
para uma teoria da democracia, é desenvolver o conceito critico de
comunicação de tal modo que possa descrever a estrutura e a
finalidade dos processos educacionais de transformação e, ao mesmo
tempo, estabelecer os ideais reguladores para a comunicação na
tomada de decisões colectivas e não ideológicas. Para esta tarefa,
são prometedoras as teorias de comunicação, que incluem a ética
discursiva da comunicação auto-reflexiva. O núcleo normativo comum
da educação e democracia pode ser desenvolvido dentro de uma teoria
de processos de aprendizagem intersubjectivamente reflectidos, que
são constituintes de uma esfera pública de aprendizagem social,
criticismo e autonomia, processos que podem ser definidos quer
colectivamente quer individualmente».
Se a razão, classicamente, procura uma
reflexiva Weltanschauung, o nosso futuro depende, a nível
educacional, de um «desenvolvimento comunicativo da razão» (op.
cit., 169).
*
* *
Passando para
um registo mais convencional, proporia, pelo menos provisoriamente,
a caracterização das três disciplinas sintetizadoras do
fenómeno educacional, dadas por Fullat (1990b, 433):
a) «Teoria da
Educação: teoria explicativa e global dos processos educativos
na medida em que estes são aprendizagem de informações, de atitudes
e de habilidades»;
b) «Pedagogia
Fundamental: teoria pragmática e globalizadora dos processos
educativos, tornando-os manipuláveis com eficácia. Teoria normativa
do comportamento dos educandos»;
c) «Filosofia
da Educação: saber globalizador, compreensivo e crítico, dos
processos educacionais» atento aos «pressupostos antropológicos,
epistemológicos e axiológicos e à produção de análises críticas».
________________________________
|