4.1 –
Uma ciência do fenómeno «valor»?
Se a junção de
educação e ciência já levanta tanta polémica, há muito
boas razões para condenar a pretensão de uma ciência do valor.
Filosoficamente, é difícil arquitectar uma plataforma de encontro.
Contudo, as experiências de valores são um facto,
pese a ambiguidade dos termos "valor" e “ciência”. Para nos
aproximarmos do distanciamento científico, Brezinka (1992, 83 ss.)
propõe que, ao analisar o valor, se distinga: a) objecto avaliado –
"Wertträger" ou suporte de valor; b) valor atribuído ao objecto.
Segundo o autor
citado (ibid.), o valor não existe em si, mas para alguém. O
objecto não tem valor por si próprio. Por sua vez, os valores formam
categorias abstractas: Beleza, Utilidade, Verdade... Portanto, o
juízo de valor é diferente da prescrição normativa (que manda,
proíbe, permite...).
Creio que, para
Brezinka, a prescrição fundamenta-se no juízo de valor, normalmente
como uma função pragmática, de nível pessoal e/ou social. Aliás, o
heroísmo (próprio do último estádio do desenvolvimento moral
segundo Kohlberg) revela a superioridade do juízo de valor sobre o
pragmatismo normativo. Seja dito de passagem que, actualmente, me
parece cada vez mais aceitável a opinião de que se poderá ligar o
tema dos valores ao conhecimento e não tanto à ontologia (embora se
diga fundamentadamente que o meu acto de conhecer, de amar, etc.,
existem e são objecto duma "logia"). O valor seria "o
sabor das coisas que conheço", uma dimensão intrínseca do acto de
conhecer. Acto este que é sempre subjectivo, quer quanto ao
pólo “afectivo” quer quanto ao pólo “intelectivo” (podia-se citar o
aforismo de S. Tomás: quidquid recipitur ad modum recipientis
recipitur). O esforço para conhecer cada vez mais, indicia a
nossa ignorância; na medida em que dela temos consciência, é lícito
supor, para além do “sabor” do objecto, a “força” do objecto, a sua
“massa metafísica” (perdoe-se o paradoxo): o seu lugar na ordem do
universo como totalidade do real que não podemos conhecer e muito
menos avaliar. Porém, eu posso hierarquizar os “sabores” descobertos
nas coisas, e classificar a “força”, embora a sua objectividade só
se possa construir como hipótese.
A
neutralidade científica, porém, continua a ser objecto de
debate. Talvez se possa dizer que equivale a uma teleologia
neutra, de tipo sartriano, que porém se avera
antropologicamente impossível, devido ao tropismo para o Bem
(caprichoso ou não) e ao exercício da razão, que implica
intersubjectividade e "saborear a realidade".
Considerando a
ciência como um conjunto de afirmações
relativas a um determinado tema – afirmações estas adquiridas pela
aplicação das regras gerais do método científico e de técnicas
especializadas de investigação – só se deve aplicar a neutralidade a
este conceito de ciência, como conjunto de afirmações.
Os métodos e
técnicas de informação já cairiam sob a alçada da deontologia e
portanto de juízos de valor – indissociáveis, factualmente, da
actividade científica, pois fundamentam os objectivos e regras dessa
actividade.
Contudo, não se
engloba aqui a consideração dos problemas morais decorrentes da
publicidade e aplicação do conhecimento científico.
As afirmações
científicas podem ser mais ou menos confirmadas – desde a certeza à
improbabilidade. Mesmo as mais certas, porém, na medida em que forem
generalizadas, adquirem apenas um grau satisfatório de
probabilidade.
Em educação, o
problema agudiza-se: quando é que determinada afirmação pode ser
publicada como legitimamente confirmada? Há muitos educadores que
aplicam indevidamente afirmações científicas que só valem na
generalidade. Praticam pois uma "valorização" indevida.
Por outro lado,
o tema dos valores pode ser abordado apenas descritivamente,
englobando, cientificamente, estas valorizações não científicas...
(aplicando, portanto, a neutralidade científica).
Para estudar os
valores e normas, dentro da preocupação pela neutralidade
científica, podem-se seguir segundo Brezinka, (1992, 89) pistas como
estas:
● Quais são os
valores educacionais de determinados agentes? Em que tempo? Em que
espaço? Em que circunstâncias?
● Qual é o
significado destes objectivos educacionais?
● Quais as
"normas básicas" de que dependem? De que modo se relacionam com a
situação histórica e com as interpretações particulares desta
situação?
● Os objectivos
educacionais apresentados não serão contraditórios entre si
logicamente, e incompatíveis psicologicamente?
● São
realizáveis?
● O que é que as
"pessoas" pensam deles?
● Se forem
implementados, que efeitos desejáveis e indesejáveis podem ocorrer?
● Quais os meios
de implementação? Quem os escolheu? Em que circunstâncias?
● Quais as
justificações apresentadas pró e contra estes meios?
A razão da
neutralidade científica baseia-se na diferença cognição / decisão,
afirmações de factos / juízos de valor, is / ought.
Na medida em que
um autor não respeita a diferença, corre o risco de influenciar o
leitor «para além das premissas» (id., ibid.).
Portanto, juízos de valor e
afirmações normativas não se podem confundir com afirmações de
factos, sempre que o trabalho seja de índole empírico-descritiva.
Como é
quase um estribilho anglo-saxónico, uma ciência empírica não pode
ensinar o que se deve fazer, mas o que é possível
fazer. As convicções pessoais ultrapassam este quadro científico.
Juízos de valor e afirmações normativas são, pois, empiricamente não
justificáveis: a sua justificação pertence a outra ordem, mas mesmo
aí não são "absolutamente" justificáveis.
Uma razão
histórica para trabalhar no campo da neutralidade científica é o
actual "desencantamento do mundo" provocado pela ciência. As
ciências sociais arriscam-se a preencher "indevidamente" (isto é,
"não cientificamente") este desencantamento. Pior ainda, se os "pseudo-cientistas"
camuflam de cientificidade as suas opiniões ou ilações que
ultrapassam o seu domínio próprio, afirmando como facto o que é de
outra ordem (como a ética).
Com os
educadores, acontece aos mais activos e zelosos serem descuidados,
ou menos preparados, para com estas distinções, sobretudo porque são
sensíveis à importância dos juízos de valor e das normas – que,
devido à sua profissão, procuram impor aos outros justificadamente;
por outro lado, alguns caem na tentação do "cientismo", validando as
suas opiniões como de “nível científico”. Têm a pretensão de derivar
normas e juízos de valor de meras afirmações científicas, empíricas
e descritivas.
Note-se que esta
distinção estimula a fundamentação rigorosa das normas e juízos de
valor – o rigor, aliás, parece ser a ideia nuclear do muito
citado livro de Brezinka.
Procurando
seguir ainda o pensamento deste autor, a ciência educacional não
terá o objectivo de persuadir os educadores a aceitarem certas
posições, nem quaisquer objectivos ou meios. A ciência educacional
"apenas" produz conhecimento o mais confirmado possível e o mais
compreensivo possível, interessando-se principalmente por descobrir
e verificar regularidades nomológicas.
Este estudo
exige grande número de observações sob várias perspectivas. A
descrição pormenorizada destas situações é importante quer para a
descoberta do conhecimento nomológico quer para a sua
aplicação.
Surgem assim
dois tipos de estudo: a) Explicação (descrição) do singular; b)
Formulação de regularidades nomológicas (Brezinka, 1992, 90-94).
Mas em educação,
nenhum tipo de estudo pode esquecer o homem. Como diz Taylor (1989,
130), «o mundo que eu conheço é experimentado por mim, pensado por
mim, tem um sentido para mim». Eu sou o agente que procura
"objectivá-lo", pelas chamadas ciências naturais, através de um
ponto de vista sempre muito condicionado. É preciso nunca esquecer
que todo este trabalho de objectivação é para a nossa causa, seres
inteligentes.
Para tanto, é
fundamental a História da Educação (que engloba a história
dos preconceitos) e a crítica da história (pois esta é
facilmente desviante).
Fica assim em
relevo a globalidade da pedagogia geral, pois a situação actual não
tem sentido (nem conteúdo) sem incluir a dimensão histórica, sem
cairmos, porém, no historicismo.
Perante a
realidade actual difusa e confusa da Educação como "área científica"
e atendendo a que a expressão de pedagogia sistemática também
se aplica a qualquer conhecimento organizado, Brezinka (op. cit.,
95-97) sublinha o estabelecimento de leis ou afirmações gerais,
propondo a expressão ciência educacional nomotética.
Há quem proponha
teoria da ciência educacional. De facto, a teoria pode
ser considerada um sistema de afirmações nomológicas, mas
também recebe muitas outras conotações (cfr. o capítulo sobre
Teorias da Educação).
O próprio
Brezinka, (ibid., 89), porém, reconhece que a neutralidade
científica não deixa de ser um conceito um tanto ou quanto ambíguo.
Por outro lado,
a indução empírica também não é absolutamente justificável, nem
sequer na ordem lógica. Acresce que talvez se possa dizer que todo o
juízo é "siamês" de um juízo de valor, o que dificulta ainda mais a
pretensa clareza empírica.
O que a
experiência tem provado, isso sim, é que, à medida em que a ciência
avança, mais afazeres cabem à filosofia, que não se pode cansar do
incomodativo «porquê».
Como elo de
passagem para o capítulo seguinte, admitamos que, no campo da
educação, não há lugar para o conceito científico de "prova".
Mas é útil, e de
algum modo verdade, aceitar que «se queremos discutir qual é o
melhor tipo de educação, temos que partir do que é que pensam as
pessoas educadas, e sobretudo o que é que, no processo educativo, as
pessoas mais apreciam e desejam» (Warnock, 1978, 112).
Esta posição
remete-nos, por um lado, para o primeiro capítulo, onde se fala do
«homem educado»; por outro lado, remete para o tema da democracia
(elemento importante em filosofia da educação): aí se poderá
reflectir sobre a moderna e agudamente actual questão da
justificação da Lei, da escolha vicariante, ou mais terra a terra,
do caminho que dizemos abrir a cada novo ser humano, e que é sempre
de algum modo imposto – quando não é uma desoladora paisagem de
destruição.
Nos capítulos
seguintes, procurar-se-á uma investigação mais filosófica do «homem
educado», que procura a sua identidade enquanto tal através do
emaranhado de esforços por saber teorizar sem destruir o “húmus” da
sua humanidade.
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