4.1 –
Educação – Ciência e Filosofia
A dificuldade
está logo presente no adjectivo "científica". De facto, as recentes
posições etimológicas derivam "ciência" do indo-europeu skei
= cortar, separar, onde se enraízam os termos "cindir" e "cisão"
como o grego "skhizein". Para o pesado (porque “pensado”) raciocínio
humano, e para o seu penoso discurso, é preciso "separar para unir".
Mas até onde vai o "separar"? A história da ciência parece mostrar
iniludivelmente que o aprofundamento e classificação incessantes têm
criado duros enfrentamentos entre as próprias "ciências exactas", e
entre estas e as "ciências humanas". Expressão já ela paradoxal,
pois nem a humanidade pode ausentar-se da sua circunstância, em que
se aventura com maior ou menor cisão; nem o ser humano, como tal,
tolera ser considerado como mero "objecto" e muitos menos como o
somatório de investigações sujeitas a um certo esquizoidismo.
Se dermos um
sentido académico ao adjectivo "científica", ficaremos com o mesmo
problema do termo "pedagogia": alheamo-nos do significado primeiro,
mostrando saudável evolução semântica mas com o risco de exponenciar
a analogia própria de todos os conceitos, sobretudo dos conceitos
expressos, usando a terminologia de Paulo Freire, por "palavras
grávidas".
Parece
uma verdade de La Palisse, mas Bernfeld sublinha intencionalmente
como é difícil pensar cientificamente no assunto da educação (Brezinka,
1992, 1).
A complexidade
do tema, presente em inúmeros pensadores mais ou menos célebres, e
sempre sentido por todos os que se comprometem com o acto educativo,
é impossível de ser justificada por um aglomerado de pesquisas
“científicas". Haldane (1998, 112), ao debruçar-se sobre este tema,
nota que «a pretensão de que as acções podem ser explicadas na sua
totalidade é falsa». Não é possível identificar um elemento físico
ou comportamento objectivo como chave de interpretação da acção
humana. «As acções são mais do que movimentos corporais», como a
pessoa é mais do que o indivíduo (ibid.).
Contudo, há quem
procure justificar uma "ciência da educação". A primeira tentativa
de renome foi a de Trapp (1780), no seu Versuch einer Pädagogik
(traduzível por Ensaio de Pedagogia, 1º projecto de pedagogia
numa universidade alemã - Halle - em 1779) (Brezinka, 1992, 1, nota
2). Mas qual seria o domínio dessa ciência? E como iria resolver os
problemas de que trata?
Na realidade a
Pedagogia existe como disciplina e até "Faculdade" ou "Instituto".
Enquanto que para Montessori, segundo Brezinka, (o. c. 2)
apenas existe uma tentativa de ciência, a partir do caos das
experiências, Bernfeld (cfr. ibid.) acreditava no sucesso
desta tentativa, a ser fundamentada na Psicologia e Sociologia. Até
agora a Educação não passaria de "literatura".
Para outros autores, a Pedagogia é
demasiadamente "especulação" ou "filosofia", sem orientação para a
realidade e para um conhecimento comprovado. Há mesmo quem partilhe
a ideia de que uma ciência autónoma da educação não é nem necessária
nem possível. Seria antes uma "recolha" das muitas ciências que
repartem o domínio educacional – nomeadamente, Psicologia,
Sociologia, História, Filosofia... dando origem à Psicologia da
Educação, Sociologia da Educação, História da Educação, Filosofia da
Educação, etc. A ciência da educação não passaria do conjunto das
ciências que tratam da educação, assim como a realidade é objecto de
diferentes ciências.
Fullat (1990 a,
80) descreve uma «pedagogia científica» como «constituída por
aquelas ciências empíricas» enquanto tratam de temas educacionais;
usa o adjectivo científico «no sentido moderno, e não
clássico, de ciência». Situando-se numa visão mais abrangente,
Jacinto (1990, 865-866) toma a posição de que a acção educativa,
espantosamente complexa, exige profunda reflexão; e que esta
reflexão, enquanto património (herança) é uma disciplina científica,
que sobretudo sistematiza os gestos humanos educativos e se
transforma em ponto de referência. Enquanto tal, implica as
dimensões de diagnóstico – interpretativo e de prognóstico,
em que a decisão se insere numa planificação para o futuro.
Discordando
aparentemente, como se verá a seguir, da posição de Patrício (1993,
50-51), diria que a denominação ciência da educação não é
incompatível com a de ciências da educação. O singular aponta
para uma vastíssima área de conhecimento, bem estruturada à volta da
educação como realidade empírica (na acepção mais vasta da
experiência). O plural aponta directamente não só alguns complexos
temáticos suficientemente diferenciados, como também os diferentes
níveis em que se dá educação (empírico, teórico, filosófico,
normativo...) e, muito importante, as sinapses com ramos científicos
já existentes, com maior ou menor pujança – por exemplo: sociologia,
psicologia, filosofia, biologia, gestão, política, religião,
informática, comunicação, demografia... Talvez por isso, Fullat
(1990 a, 77) afirma que o uso de ciências da educação em vez
de pedagogia resulta da «má consciência» dos pedagogos,
confrontados com a indeterminação do seu objecto e campo de estudo,
aceitando assim o corte transversal com as mais diversas ciências.
Se bem que, continua o mesmo autor, deixam mascarado o papel da
filosofia, que, não sendo uma ciência exacta, é ciência como
reflexão sobre os dados e factos.
Bergson muito
provavelmente alinharia contra a pretensão científica de conhecer,
por esquemas tendencialmente dogmatizados, aquilo que continuamente
"foge das nossas mãos", como o é, por excelência, a realidade
educacional.
Segundo Patrício
(1993, 50-51), Filosofia e Ciência «são de níveis diferentes, porque
ao saber parcelar e analítico da ciência se opõe e sobrepõe o saber
totalizante e sintético da filosofia». Ainda segundo o mesmo autor,
a ciência limita-se ao "saber do como", e a Filosofia o
"saber do por quê e de para quê" (ibid.).
Relativamente ao termo "ciências da educação", acrescenta o mesmo
autor carecer da unidade mínima de identificação. E quanto ao "da",
levanta a questão: São «acerca da Educação» ou «sobretudo 'Ciências
para a Educação', necessárias à realização de uma acção
educativa cientificamente fundada?» (51).
Althusser (Abbagnano,
1990, 155-157) fala da «filosofia espontânea dos cientistas, que vai
muito para além dos resultados e dos limites da sua ciência», e
entusiasma o labor aturado das suas investigações. Althusser,
contudo, luta contra as ideologias, sempre falsas enquanto pretendem
representar a realidade, e que podem ser opressoras da liberdade,
mesmo da científica, como o idealismo e espiritualismo. Mas, nesta
luta, «vê no materialismo uma filosofia aberta» em contínua
reformulação. Convenhamos em que é elucidativo distinguir entre
ideais ou teorias “vindas de cima” (impondo-se, mais do que
dando-se) e ideais ou teorias emergentes de cada pessoa (cfr. o meu
artigo sobre doutrinamento).
De Formosinho &
Branco (1997, 178) achamos oportuno cotejar o parágrafo seguinte,
embora não conseguindo evitar, como é compreensível, uma certa
aplicação confusa do termo analogia: «O cientista reconhece
que não pode demonstrar com absoluto rigor a universalidade das suas
leis e, consequentemente, a sua verdade. Após muitas 'verificações',
que nunca são absolutamente universais no espaço e no tempo, os
cientistas passam a considerar tais leis como verdades. Portanto, a
ciência não demonstra a ordem e a harmonia do universo,
apenas as revela. E é inserida neste contexto que a ciência
explica a realidade. Explica mas não lhe confere um
sentido. O sentido das leis e teorias, dos fenómenos, dos
objectos e dos seres cai no âmbito da teologia e da filosofia. Aqui
se diferenciam as cosmologias religiosas das cosmologias
científicas, pois as primeiras fundamentam os valores e conferem um
sentido à vida enquanto as segundas são amorais. Porém não podemos
ficar insensíveis às analogias entre a mensagem das cosmologias das
origens e as recentes descobertas da ciência contemporânea. Claro
que analogia não é demonstração, mas é um caminho».
Seja como for, a
observação da diversidade do fenómeno educativo é e deve ser
feita. Brezinka (1992, 43) propõe uma grelha para esta observação:
a) Quem educa; b) Quem é educando; c) Em
que circunstâncias (inclui a experiência do próprio mundo - "Weltanschauung");
d) Com que objectivo (geral e específico); e) De que
maneira (métodos, técnicas, sistemas educativos...).
Esta grelha
cobriria o objecto formal da "ciência educacional". O objecto
material não seria propriamente o ser humano mas os "fenómenos
psíquicos". (op. cit., 49) Posição esta que não me parece
congruente com a vastidão da grelha, que abarca «o homem e a sua
circunstância». Como diz Charbonnel (1988, 30), citando Félix Pécaut:
«Nem o bom ensino nem a boa educação são o resultado seguro da
ciência, ou o produto infalível da planificação mais sábia».
No mesmo
seguimento de ideias, William James escreveu estas linhas
academicamente pouco apreciadas, na opinião de Charbonnel (ibid.
42): «Muito errado estaria quem julgasse poder deduzir da
psicologia, ciência das leis que regem o espírito, as teorias e os
métodos directamente aplicáveis na sala de estudo. A psicologia é
uma ciência, a educação é uma arte, e as ciências nunca poderão
gerar as artes, de si mesmas. Como nem a lógica faz uma pessoa
raciocinar com justeza, e nem a ciência moral, se é que existe tal
coisa, deu a alguém o bom comportamento».
O pensamento de
Paulo Freire (1998) é bem condensado nestas linhas de introdução ao
artigo mencionado: «a consciência não é uma cópia passiva da
realidade, como defendem teorias mecanicistas e behaviouristas do
ser humano. É antes a assunção da dimensão crítica que reorganiza o
ser humano como agente activo da transformação do mundo».
Para alguns
autores mais radicais, a "ciência educacional" devia-se mesmo
limitar à descrição e explicação dos fenómenos
educacionais (cfr. Charbonnel, 1988, 50).
Segundo Brezinka
(1992, 53-77), uma vez que a ciência da educação «investiga
as condições necessárias para atingir objectivos educacionais», não
se pode limitar a descrever factos, afirmando-se como «uma ciência
causal-analítica e teleológica». Infere-se que a ciência
educacional não se pode reduzir às suas especializações
(tecnologia, currículo, ética...).
Aliás, para
muitos autores, a educação está necessariamente ligada a uma
ideologia, filosofia ideológica, mundividência (Weltanschauung),
como por exemplo, o Catolicismo, Liberalismo, Positivismo, Marxismo,
Pragmatismo...
Brezinka (ibid.)
sustenta que, neste caso, não se mantém o estatuto de ciência
causal-analítica. Com efeito, a ideologia implica dogmas e valores
próprios, que impedem a neutralidade descritiva da ciência
educacional, (embora a "técnica educacional" possa ser usada
para bem ou para mal). A ciência educacional deve afastar-se do
discurso emocional (perigoso nos temas como autoridade, disciplina,
obediência...) para se dedicar à clarificação de conceitos,
evitando "chavões" e procurando a uniformidade terminológica. Para
tanto, precisa de um «conteúdo informacional o mais rico possível».
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