Manuel Alte da Veiga, Um critério para a Educação?, Braga, 2004.


4 – Aporias da educação como área científica

 

4.1 – Educação – Ciência e Filosofia

A dificuldade está logo presente no adjectivo "científica". De facto, as recentes posições etimológicas derivam "ciência" do indo-europeu skei = cortar, separar, onde se enraízam os termos "cindir" e "cisão" como o grego "skhizein". Para o pesado (porque “pensado”) raciocínio humano, e para o seu penoso discurso, é preciso "separar para unir". Mas até onde vai o "separar"? A história da ciência parece mostrar iniludivelmente que o aprofundamento e classificação incessantes têm criado duros enfrentamentos entre as próprias "ciências exactas", e entre estas e as "ciências humanas". Expressão já ela paradoxal, pois nem a humanidade pode ausentar-se da sua circunstância, em que se aventura com maior ou menor cisão; nem o ser humano, como tal, tolera ser considerado como mero "objecto" e muitos menos como o somatório de investigações sujeitas a um certo esquizoidismo.

Se dermos um sentido académico ao adjectivo "científica", ficaremos com o mesmo problema do termo "pedagogia": alheamo-nos do significado primeiro, mostrando saudável evolução semântica mas com o risco de exponenciar a analogia própria de todos os conceitos, sobretudo dos conceitos expressos, usando a terminologia de Paulo Freire, por "palavras grávidas"[1].

 Parece uma verdade de La Palisse, mas Bernfeld sublinha intencionalmente como é difícil pensar cientificamente no assunto da educação (Brezinka, 1992, 1).

A complexidade do tema, presente em inúmeros pensadores mais ou menos célebres, e sempre sentido por todos os que se comprometem com o acto educativo, é impossível de ser justificada por um aglomerado de pesquisas “científicas". Haldane (1998, 112), ao debruçar-se sobre este tema, nota que «a pretensão de que as acções podem ser explicadas na sua totalidade é falsa». Não é possível identificar um elemento físico ou comportamento objectivo como chave de interpretação da acção humana. «As acções são mais do que movimentos corporais», como a pessoa é mais do que o indivíduo (ibid.).

Contudo, há quem procure justificar uma "ciência da educação". A primeira tentativa de renome foi a de Trapp (1780), no seu Versuch einer Pädagogik (traduzível por Ensaio de Pedagogia, 1º projecto de pedagogia numa universidade alemã - Halle - em 1779) (Brezinka, 1992, 1, nota 2). Mas qual seria o domínio dessa ciência? E como iria resolver os problemas de que trata?

 

Na realidade a Pedagogia existe como disciplina e até "Faculdade" ou "Instituto". Enquanto que para Montessori, segundo Brezinka, (o. c. 2) apenas existe uma tentativa de ciência, a partir do caos das experiências, Bernfeld (cfr. ibid.) acreditava no sucesso desta tentativa, a ser fundamentada na Psicologia e Sociologia. Até agora a Educação não passaria de "literatura".

Para outros autores, a Pedagogia é demasiadamente "especulação" ou "filosofia", sem orientação para a realidade e para um conhecimento comprovado. Há mesmo quem partilhe a ideia de que uma ciência autónoma da educação não é nem necessária nem possível. Seria antes uma "recolha" das muitas ciências que repartem o domínio educacional – nomeadamente, Psicologia, Sociologia, História, Filosofia... dando origem à Psicologia da Educação, Sociologia da Educação, História da Educação, Filosofia da Educação, etc. A ciência da educação não passaria do conjunto das ciências que tratam da educação, assim como a realidade é objecto de diferentes ciências.

Fullat (1990 a, 80) descreve uma «pedagogia científica» como «constituída por aquelas ciências empíricas» enquanto tratam de temas educacionais; usa o adjectivo científico «no sentido moderno, e não clássico, de ciência». Situando-se numa visão mais abrangente, Jacinto (1990, 865-866) toma a posição de que a acção educativa, espantosamente complexa, exige profunda reflexão; e que esta reflexão, enquanto património (herança) é uma disciplina científica, que sobretudo sistematiza os gestos humanos educativos e se transforma em ponto de referência. Enquanto tal, implica as dimensões de diagnóstico – interpretativo e de prognóstico, em que a decisão se insere numa planificação para o futuro. 

Discordando aparentemente, como se verá a seguir, da posição de Patrício (1993, 50-51), diria que a denominação ciência da educação não é incompatível com a de ciências da educação. O singular aponta para uma vastíssima área de conhecimento, bem estruturada à volta da educação como realidade empírica (na acepção mais vasta da experiência). O plural aponta directamente não só alguns complexos temáticos suficientemente diferenciados, como também os diferentes níveis em que se dá educação (empírico, teórico, filosófico, normativo...) e, muito importante, as sinapses com ramos científicos já existentes, com maior ou menor pujança – por exemplo: sociologia, psicologia, filosofia, biologia, gestão, política, religião, informática, comunicação, demografia... Talvez por isso, Fullat (1990 a, 77) afirma que o uso de ciências da educação em vez de pedagogia resulta da «má consciência» dos pedagogos, confrontados com a indeterminação do seu objecto e campo de estudo, aceitando assim o corte transversal com as mais diversas ciências. Se bem que, continua o mesmo autor, deixam mascarado o papel da filosofia, que, não sendo uma ciência exacta, é ciência como reflexão sobre os dados e factos.

Bergson muito provavelmente alinharia contra a pretensão científica de conhecer, por esquemas tendencialmente dogmatizados, aquilo que continuamente "foge das nossas mãos", como o é, por excelência, a realidade educacional.

Segundo Patrício (1993, 50-51), Filosofia e Ciência «são de níveis diferentes, porque ao saber parcelar e analítico da ciência se opõe e sobrepõe o saber totalizante e sintético da filosofia». Ainda segundo o mesmo autor, a ciência limita-se ao "saber do como", e a Filosofia o "saber do por quê e de para quê" (ibid.). Relativamente ao termo "ciências da educação", acrescenta o mesmo autor carecer da unidade mínima de identificação. E quanto ao "da", levanta a questão: São «acerca da Educação» ou «sobretudo 'Ciências para a Educação', necessárias à realização de uma acção educativa cientificamente fundada?» (51). 

Althusser (Abbagnano, 1990, 155-157) fala da «filosofia espontânea dos cientistas, que vai muito para além dos resultados e dos limites da sua ciência», e entusiasma o labor aturado das suas investigações. Althusser, contudo, luta contra as ideologias, sempre falsas enquanto pretendem representar a realidade, e que podem ser opressoras da liberdade, mesmo da científica, como o idealismo e espiritualismo. Mas, nesta luta, «vê no materialismo uma filosofia aberta» em contínua reformulação. Convenhamos em que é elucidativo distinguir entre ideais ou teorias “vindas de cima” (impondo-se, mais do que dando-se) e ideais ou teorias emergentes de cada pessoa (cfr. o meu artigo sobre doutrinamento).

De Formosinho & Branco (1997, 178) achamos oportuno cotejar o parágrafo seguinte, embora não conseguindo evitar, como é compreensível, uma certa aplicação confusa do termo analogia: «O cientista reconhece que não pode demonstrar com absoluto rigor a universalidade das suas leis e, consequentemente, a sua verdade. Após muitas 'verificações', que nunca são absolutamente universais no espaço e no tempo, os cientistas passam a considerar tais leis como verdades. Portanto, a ciência não demonstra a ordem e a harmonia do universo, apenas as revela. E é inserida neste contexto que a ciência explica a realidade. Explica mas não lhe confere um sentido. O sentido das leis e teorias, dos fenómenos, dos objectos e dos seres cai no âmbito da teologia e da filosofia. Aqui se diferenciam as cosmologias religiosas das cosmologias científicas, pois as primeiras fundamentam os valores e conferem um sentido à vida enquanto as segundas são amorais. Porém não podemos ficar insensíveis às analogias entre a mensagem das cosmologias das origens e as recentes descobertas da ciência contemporânea. Claro que analogia não é demonstração, mas é um caminho».

Seja como for, a observação da diversidade do fenómeno educativo é e deve ser feita. Brezinka (1992, 43) propõe uma grelha para esta observação: a) Quem educa; b) Quem é educando; c) Em que circunstâncias (inclui a experiência do próprio mundo - "Weltanschauung"); d) Com que objectivo (geral e específico); e) De que maneira (métodos, técnicas, sistemas educativos...).

Esta grelha cobriria o objecto formal da "ciência educacional". O objecto material não seria propriamente o ser humano mas os "fenómenos psíquicos". (op. cit., 49) Posição esta que não me parece congruente com a vastidão da grelha, que abarca «o homem e a sua circunstância». Como diz Charbonnel (1988, 30), citando Félix Pécaut: «Nem o bom ensino nem a boa educação são o resultado seguro da ciência, ou o produto infalível da planificação mais sábia». 

No mesmo seguimento de ideias, William James escreveu estas linhas academicamente pouco apreciadas, na opinião de Charbonnel (ibid. 42): «Muito errado estaria quem julgasse poder deduzir da psicologia, ciência das leis que regem o espírito, as teorias e os métodos directamente aplicáveis na sala de estudo. A psicologia é uma ciência, a educação é uma arte, e as ciências nunca poderão gerar as artes, de si mesmas. Como nem a lógica faz uma pessoa raciocinar com justeza, e nem a ciência moral, se é que existe tal coisa, deu a alguém o bom comportamento».

 

O pensamento de Paulo Freire (1998) é bem condensado nestas linhas de introdução ao artigo mencionado: «a consciência não é uma cópia passiva da realidade, como defendem teorias mecanicistas e behaviouristas do ser humano. É antes a assunção da dimensão crítica que reorganiza o ser humano como agente activo da transformação do mundo».

Para alguns autores mais radicais, a "ciência educacional" devia-se mesmo limitar à descrição e explicação dos fenómenos educacionais (cfr. Charbonnel, 1988, 50).

Segundo Brezinka (1992, 53-77), uma vez que a ciência da educação «investiga as condições necessárias para atingir objectivos educacionais», não se pode limitar a descrever factos, afirmando-se como «uma ciência causal-analítica e teleológica». Infere-se que a ciência educacional não se pode reduzir às suas especializações (tecnologia, currículo, ética...).

Aliás, para muitos autores, a educação está necessariamente ligada a uma ideologia, filosofia ideológica, mundividência (Weltanschauung), como por exemplo, o Catolicismo, Liberalismo, Positivismo, Marxismo, Pragmatismo...

Brezinka (ibid.) sustenta que, neste caso, não se mantém o estatuto de ciência causal-analítica. Com efeito, a ideologia implica dogmas e valores próprios, que impedem a neutralidade descritiva da ciência educacional, (embora a "técnica educacional" possa ser usada para bem ou para mal). A ciência educacional deve afastar-se do discurso emocional (perigoso nos temas como autoridade, disciplina, obediência...) para se dedicar à clarificação de conceitos, evitando "chavões" e procurando a uniformidade terminológica. Para tanto, precisa de um «conteúdo informacional o mais rico possível».


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[1] Note-se que "palavra" deriva do latim parabola (comparação, semelhança - cfr. o grego parabolé = comparação, alegoria, como quem lança - ballein - ou coloca ao lado.

 


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