Este rápido e
necessariamente redutor olhar sobre a perspectiva histórica é
suficiente para pôr em relevo a insofismável necessidade do grupo
como integrante do processo educativo, e da existência de
objectivos suficientemente claros para nortear uma acção externa
sobre o educando, que é, normalmente, um membro novo da sociedade e
que nesta aspira "conquistar" ou ver reconhecido o lugar que lhe
compete como direito de nascença.
Como diz Soëtard
(1997, 40) comentando Rousseau, o grande "problema da pedagogia", ou
a preocupação central da Filosofia da Educação, é «associar, no
coração duma natureza humana doravante alerta ao infinito do seu
desenvolvimento, o princípio da perfectibilidade e o da liberdade».
Peters (em
Philosophy of Education especialmente) explicita os critérios do
homem educado: capaz de agir porque é bom agir (e não por
interesses "menores"); domina uma área de conhecimento mas é
consciente da imensidão para além dos seus limites; orienta-se o
mais possível relativamente ao conhecimento que não domina,
ultrapassando a estreiteza da especialização (que corre o risco de
desenquadrar-se do seu próprio objecto, impossibilitando uma visão
relativizadora e perdendo assim a referência aos significados por
ventura mais valiosos para o sentido da vida); reage ao que vai
conhecendo, e considera-se contínuo "adolescente"; reconhece como
qualquer tipo de acção/profissão é melhorada, facilitada e mais
agradável, em função do nível de educação; ser educado é viajar com
novas maneiras de ver as coisas novas; e sabe ser tudo isto sem
submissões ideológicas. Peters (1978, 239-248) considera já
ideológica a definição de educação como «desenvolvimento das
potencialidades do indivíduo», provavelmente devido à imagem pública
e doutrinante que vários tipos de poder podem dar aos conceitos
implicados A ideologia, de facto é facilmente manipuladora, ao
"encaminhar" a pessoa, sub-repticiamente, para a submissão a um
plano cuja concreção é atentatória da pessoa "como fim". Por isso,
adverte Patrício (1993, 51): «O conhecimento ideológico é uma forma
degradada do conhecimento exacto e rigoroso, pela qual o sujeito é
sempre cognoscitivamente utilizado ou utilizador dos outros».
Esta capacidade
de visão das coisas, comprometendo-se na acção sem nela se perder,
pode ter por lema a posição de Espinosa: uma pessoa educada é capaz
de ver tudo o que faz sub specie aeternitatis. Vem A
propósito a citação de Carvalho (1998/1999, 75): «A filosofia da
educação, essa, emerge com um nítido pendor antropológico através do
seu próprio projecto de incessante criação e recriação de um
conceito de pessoa que desafia os pressupostos e os resultados da
prática educativa, da progressiva realização pessoal do indivíduo.
Remete a pessoa, portanto, para os percursos do devir,
emprestando-lhe os traços positivos da utopia. Curiosamente, mesmo
para dois pensadores de inspiração cristã, como Mounier e Lacroix,
a referência ao absoluto acaba por inspirar uma concepção dinâmica
da pessoa, designadamente, pela adopção dos princípios de que a
pessoa é uma transcendência imanente (sic) e de que é um
centro de reorientação do universo objectivo (sic)».
Ainda segundo a
perspectiva de Peters, o homem educado é um homem insatisfeito
por conhecer e compreender, sempre inquieto porque não possui (nem
pode possuir) a quietude, e por isso lança continuamente uma
pergunta nova. Procura dar exemplo da extraordinária amplitude
humana, que pertence ao vocábulo «razão»: sabedoria, razão bem
orientada (phrónesis); pensamento sagaz, eliminador do
irracional, «inteligente», no sentido dado por Anaxágoras (nous);
lógos, derivado do verbo légein: recolher, reunir, e
portanto dizer, contar com sentido, o que implica a inteligibilidade
da realidade. Enquanto tal, o homem educado tem que encarar o
problema do absoluto, tornar-se sensível e permitir que os
outros se tornem sensíveis ao "contacto com o absoluto".
Consequentemente, tem que valorizar o relativo, o que exige
maior número de informação possível sobre o que se pretende
valorizar, e uma confiança fundamentada nos juízos de terceiras
pessoas. Husserl é um exemplo clássico de quem, voltando-se sobre a
experiência humana (relativa e confusa) para encontrar nela as suas
"essências", vivia o apelo da verdade, que o levou desde a
matemática e psicologia até à filosofia.
Neste acto de
investigação, é preciso exercitar os requisitos de se impor um
propósito ou objectivo, como é bem sugerido pelo verbo inglês "to
aim" que significa primeiramente atirar, lançar, fazer mira, e
provém do latim "aestimare" = fazer uma estimativa, calcular: são os
requisitos de concentração da atenção, especificação de um
objecto preciso, aceitação da dificuldade de acção, da
possibilidade de erro, coordenação de meios, etc.. É o
exercício da humildade como reconhecimento da minha situação e
possibilidade (Goethe escreveu com humor: «Deus do céu, que me
concedestes todos estes dons, por que não ficastes com uma parte,
para me dardes em seu lugar a jactância e a presunção!»). Aliás, tem
muita verdade o seguinte comentário: «O pensamento é um sistema de
factos sociais, cuja função é a produção de crenças. Mantenho no
entanto que as crenças implicam a criação em nós de regras de acção
ou de hábitos. Crer é promessa de acção» (Martins, M., 1997, 221).
Note-se que a
inserção do projecto pessoal nos vários tipos de organização da
sociedade, e nomeadamente nos enquadramentos educacionais, como os
da família, empresas, escolas, nações ou de outros grupos humanos de
extensão variável, levanta o problema do conflito entre o sujeito do
projecto e as regras, ideologias ou mesmo a mera intervenção de
outro “agente educativo”, especialmente se este representa a
sociedade enquanto “meio educador”. É um tema específico de
doutrinamento (cfr. Veiga, 1998a), do que é elucidativa a
seguinte citação de Carvalho (1992, 160): «O projecto, expressão da
liberdade e da capacidade criativa do homem, assente no conhecimento
das regras objectivas dessa liberdade e dessa capacidade, tem
logicamente de evitar tornar-se o seu agente demolidor, sob pena de
negar, através do processo da sua concretização, aquilo que
constitui o seu princípio, a sua essência, a sua identidade, a sua
possibilidade e a sua legitimidade. De facto, o projecto começa,
isto é, distingue-se, desenvolve-se e fundamenta-se na plataforma
antropológica da liberdade. Porém, é exactamente aqui que entronca
uma outra frente crítica da pedagogia do projecto. Na realidade, ao
protagonizarem propostas e perspectivas educativas, as pedagogias do
projecto partilham necessariamente dos grandes impasses interiores à
educação em geral, os quais passam pelo exercício de uma actividade
modeladora para a qual ela parece estar por natureza vocacionada.
Mesmo que o modelo de referência seja a própria construção e
realização do projecto. Há sempre, no mínimo, o risco de o único
sujeito real do projecto ser o pedagogo ou a escola pedagógica que
delineou a formulação de uma dada pedagogia do projecto».
A aceitação de
todos os objectos como relativos, não implica uma teoria
relativista: esta nega a verdade absoluta e pretende que a
validade do juízo, quer gnoseologicamente, quer eticamente, depende
totalmente das condições ou circunstâncias em que é enunciado. Mas o
relativismo absoluto leva ao cepticismo radical e ao niilismo. Ora a
possibilidade de erro e de todo o condicionalismo da investigação,
bem como o posicionamento de objectivos, só se compreendem dentro da
intencionalidade que visa a verdade e valor absolutos. Doutro modo,
tudo o mais correria o risco de se "esvaziar" de valor, e a própria
intersubjectividade (que implica comunicabilidade) se veria sem
fundamento. De facto, todo o sujeito coloca o objecto (e a si
próprio) no "horizonte do ser" enquanto uno, verdadeiro e perfeito.
Aliás, negar o absoluto é uma afirmação absoluta. Portanto a nossa
relatividade é à medida da nossa relação com o absoluto, justamente
enquanto o tem presente. É a descoberta do “peso” desta nossa
relatividade que constitui o nosso valor, vivendo na aventura
contínua, com estados intermitentes de inquietação e quietação, na
demanda utópica da perfeição.
A consciência da
"imperfeição" em todas as coisas está na raiz do anti-dogmatismo e
da "educação liberal", no sentido de que a razão pretende ser livre
de qualquer instrumentalização, instrumentalização esta que a
colocaria no órbita de um objectivo limitado, definitivo
(como uma prisão perpétua), incapaz portanto de criticar
livremente e de poder intencionalmente ultrapassar essa dada
situação concreta. Tudo o que historicamente temos considerado ou
vamos considerando “verdades” seja nas ditas «ciências exactas»,
religião, filosofia...) são degraus para posterior aventura, nos
vários tipos e níveis do saber e experiência humanas, como que
seguindo um padrão de intencionalidade dirigida ao absoluto.
Na
relativização do seu olhar, o homem educado mostra mais
claramente e mais criticamente a fidelidade ao
projecto pessoal – que de certo modo se vai absolutizando à
medida que o passado é experiência adquirida e vectorizada para a
verdade, continuando, com uma boa dose de virtude estóica ou com a
versão cristã de força do espírito, os seus ensaios de
tentativa-erro. Esta "vectorização" não é pois consentânea com o
valor sartriano, inteiramente redutível à escolha do momento como
"pura" liberdade (será possível, mesmo nessa teoria?). A dialéctica
erro-verdade aparece como constituição do homem, e o absoluto como a
superação dessa cisão. A meditação espiritual, o "diálogo
espiritual" (aquele que visa libertar o mais possível a
comunicabilidade) podem ser experiências da superação da cisão.
Na construção do
projecto pessoal, manifestam-se novamente as virtudes do
homem educado: congruência, fidelidade (na própria
posição de tentativa-erro), sensibilidade ao que surge como
novo, e portanto na seriedade com que se leva ao fim um trabalho que
foi julgado como valendo a pena. Neste juízo, liberta-se o
homem do egocentrismo, pois procura razões para além dos seus
desejos e preconceitos: procura a precisão, o respeito dos
factos, a clareza, e a determinação de atingir o
fundo do problema. Nas relações humanas, estas virtudes
transformam-se em justiça, tolerância, prudência,
independência, humor, entusiasmo... Como diz
Lavelle (1951-1955), o valor é descoberto interactivamente.
A "seriedade"
acabada de referir bem que se pode ligar com o "rigor" apontado por
Brezinka como o que mais falta em tudo o que se faz sob o nome de
educação. John Wilson (1980, 85 et passim) medita longamente
sobre o conceito de "serious":
A pessoa em "sério" processo de educação esforça-se "a sério" na
aplicação, concentração, e pensamento divergente. O que está muito
para além do interesse por isto ou aquilo e do conceito comum de
"aprender pela experiência". E na pág. 127, apresenta a "seriedade"
como bem patente nos diálogos de Sócrates: «são diálogos, e não
monólogos; combinam a intensidade da procura da verdade com um
estilo relaxante e até humorístico» e não pretende apressar
conclusões; representam um estilo de vida em que a pessoa manifesta
o respeito por si própria ao pôr-se disponível para contínua
"iniciação", ao recolher-se dentro de si.
Seria "excelente"
que o homem educado manifestasse a sua persistência em procurar
fazer "o melhor possível" (areté, excelência). Contudo, o
"melhor possível" é, na realidade o "Bom condicionado". Por ser
difícil este equilíbrio estagirita, é que Barrow (1990, sub v.
education) comenta «são as pessoas com muita educação que
sustentam ou deixam cair uma civilização» – ideia que Nietzsche
desenvolve com o seu característico entusiasmo.
Se considerarmos
algumas definições de educação, já modernas, podemos evidenciar as
seguintes como significativas:
«Sucessão de
operações pelas quais o adulto (geralmente os pais) exercitam os
indivíduos mais novos da sua espécie e favorecem neles o
desenvolvimento de certas tendências e hábitos» (Lalande 1962).
«Emprego dos
meios próprios para formar, para desenvolver fisicamente,
afectivamente, intelectualmente, socialmente, moralmente, uma
criança, um adolescente, pela exploração, orientação, valorização
dos recursos do seu ser» (Leif, 1976).
«A educação é o
estabelecimento dum comportamento que representará, no futuro, uma
vantagem para o sujeito e para os demais» (Skinner, 1971).
«A educação tem
como finalidade desenvolver no indivíduo toda a perfeição de que
este é capaz».
(Kant. In Curtis & Boultwood, 1977).
«O homem, que a educação deve realizar em
nós, não é o homem tal como a natureza o fez, mas tal como a
sociedade quer que ele seja». (Durkheim, 1984).
«Educar quer
dizer levantar, restaurar, aperfeiçoar. É o exercício harmónico e
conveniente das potências, faculdades e actuações do homem, para que
se aperfeiçoe e o ajude na sua felicidade temporal e eterna». (Ossó,
1977)
«O objectivo dos
educadores é que os seus educandos adquiram e retenham certas
habilidades, capacidades, conhecimentos, atitudes, sentimentos e
convicções» (Brezinka, 1992, 38).
«Educação é o
conjunto das acções pelas quais os seres humanos pretendem produzir
melhoramentos duradoiros na estrutura das disposições psíquicas de
outras pessoas, de modo a reter componentes consideradas positivas
ou a impedir a formação de disposições consideradas negativas» (ibid.
40-41).
A. Simões fala de
educação enquanto actividade dirigida à especificidade do Homem,
diferente de todos os outros animais pelo pensamento e liberdade:
«só ele é capaz de se propor e de realizar projectos de existência,
de aprender a ser» (1989, 15).
Como ideia geral,
talvez se possa dizer que a educação é o processo de alcançar a
perfeição própria da pessoa humana. Até que ponto é que esta
perfeição se pode sujeitar a ideologias pragmatistas, sociológicas
ou religiosas? Será por acaso que os mais independentes e abertos
pareçam ser Kant e Ossó? Note-se também como Brezinka abre uma
brecha ao perigo do doutrinamento e da educação minimalista.
Outro grande
leque de definições equaciona a educação com a construção da
"felicidade própria", "auto-realização", "felicidade dos outros",
"dialéctica enriquecedora" do educador e do educando, ou ainda como
"adaptação" contínua às situações novas ou à vida como imprevisto
(cfr. J. Mialaret, 1980).
Note-se também
como a maioria das definições se preocupa com a educação do outro,
não incluindo o “educador” como participante e companheiro no longo
caminhar para os ideais da educação.
Hirst (Warnock,
1977, 99), dentro da sua preocupação pela "logia" da educação (não
esqueçamos que se chegou a propor o termo "educologia"), sublinha
que a educação não é uma aprendizagem da verdade – uma vez que a
verdade não existe para aí, como um dado; consiste, sim, em
aprender uma linguagem, comum e pública, que nos permite dizer
coisas verdadeiras ou falsas, sensatas ou estúpidas, o que lembra o
papel da comunicação em Habermas. Pelo que não basta o sufrágio
universal, em que «a matéria extensa» (a força da maior massa
humana) é sobreposta, sem honesta fundamentação, à racionalidade
discursiva, quer no sentido fático quer no sentido ascético e
perseverante de enfrentar o «dis».
Na opinião de L.
Santos (1989, 150-151), Nietzsche acusava a sua época de «desumana,
vil e bárbara» porque os jovens eram incentivados a uma «cultura
rápida que permita ganhar dinheiro o mais depressa possível,
transformando-se em fiéis seguidores da situação». Este saber
«massificado e rápido» «visa apenas tornar o homem corrente, no
sentido em que a moeda também o é».
Por isso não
basta ser mero professor (Lehrer) – mas educador (Erzieher).
E também por isso
se chama "Educação Liberal" àquela que não é vocacional, mas
válida intrinsecamente. A sua justificação assenta apenas em
critérios educacionais – e não estranhos, como por exemplo os
políticos. Podemos mesmo afirmar que a educação vocacional só é
positiva, só garante uma criatividade geradora de “progresso”, na
medida em que assenta numa educação liberal.
* * *
É nesta linha que
a Pedagogia Crítica pretende evidenciar um movimento
pedagógico que não recue perante desafio algum em tempo algum.
É necessariamente
uma pedagogia aberta à suspeita, mas também aos valores que a
tradição mais ou menos "solidificou" (e por vezes dogmatizou);
necessariamente inovadora, por muito que reconheça os valores
da herança da humanidade. Em suma, é uma pedagogia capaz de se
ambientar num mundo plural e instável. É uma pedagogia
autenticamente jovem.
Utilizando um
pequeno texto de Houssaye (1996, 56), concordamos em que a libido
educandi é optimista, quanto ao seu ideal de sociedade perfeita
e de um ser humano realizado, que «arde com o desejo de rivalizar
com a criação divina» confiante no poder da razão.
Na nova
perspectiva de educação, «o homem deixa de se equacionar como um ser
natural, ou como um animal racional; passou a ser um animal que se
pode tornar racional, para ele e para os outros, por meio de uma
formação difícil» (ibid. 58).
Assim se poderá
justificar o mote que «educar crianças é habituá-las
progressivamente a deixarem de necessitar de nós» (G. Mauco) – ideia
que se pode generalizar a qualquer relação educando-educador.
Porém, por mais
"belas" ou mais "científicas" que pareçam ser, estas definições
exemplificam a imprecisão fundamental dos termos e conceitos
ou a redução ao âmbito biológico ou sociológico, deixando
injustificada ou mesmo passando sobre a questão do que é bom e do
que é mau. Seria muito grave esquecer que o "deve ser"
educativo não se reduz ao "é" empírico, e por sua vez, o "é"
empírico "de nada vale" sem a preocupação pelo que deve ser.
Talvez seja a
razão da reflexão analítica sobre educação, que produziu as
características do "homem educado", antes de (algum dia?) chegarmos
a consenso sobre o que é educação. Como diz Séneca (1990),
particularmente nos capítulos II e III do seu De Beata Vita,
o bem pode definir-se de muitas maneiras, da mais lacónica à mais
prolixa. Mas é sempre o mesmo Bem em causa, cujas definições o podem
esconder em vez de iluminar.
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