3.1
–
Um percurso do «homem educado»
É um dos
exercícios de «assumir-se como testemunha de muitas e diversas
coisas» e de verificar que mesmo uma sintética abordagem histórica
já mostra a dispersão e por vezes contradição entre os "conceitos
universais" de educação, ao longo dos tempos.
O homem culto
contemporâneo (no sentido “publicamente aceite”), que procura um
saber enciclopédico "moderado" (isto é, "medido", "temperado",
"ponderado" e "pensado") pode conceber – como exemplo duma
perspectiva publicamente aceitável – os seguintes modelos históricos
de homem educado: o homem educado da sociedade primitiva
como aquele que foi iniciado no modelo de vida do grupo alargado a
que pertence, adaptando a sua energia pessoal à necessidade de
perpetuação dos rituais desse grupo, garantindo assim a respectiva
concretização de felicidade (transcendente ou não); o homem
educado do Oriente Antigo (fruto, particularmente, da
sabedoria Indiana e Chinesa) como aquele que se reconhece numa
relação transcendente relativamente aos "outros", à "Totalidade" e
ao "Outro" única realidade: preocupado portanto com a vida
espiritual, com a adesão à verdade fundamental e com o respeito pela
ordem social, consciente dos limites humanos e do "limite",
tolerante, asceta e bondoso, podendo ser filósofo, cientista e
místico; o homem educado da Grécia Antiga (Ateniense),
como aquele que sendo "homem livre", obteve um desenvolvimento
harmónico de todas as suas virtualidades, para bem da polis,
procurando manter-se aberto a todas as possibilidades humanas,
questionador contínuo do "que é que vale a pena", do que é o Bem e o
Prazer, e de como a razão, na sua busca da verdade, pode reger o
comportamento, originando hábitos que facilitam o progresso do homem
virtuoso; na Roma Antiga, é o homem dotado de um senso
prático, simultaneamente austero, epicurista e estóico, cultor da
família, do eclectismo, do Direito e da Oratória; na Civilização
hebraica, é aquele que se rege pela Lei de Deus, cuja revelação
reconhece, defensor da justiça (dos fracos, dos pobres...) e da
integridade do seu Povo, procurando a Sabedoria humana e divina,
através de toda a criação e dos Textos Sagrados, desenvolvendo uma
relação pessoal com Deus, Bem supremo a quem ama sobre todas as
coisas, e, por injunção, amando o próximo como a si mesmo;
particularmente difícil e conflituoso é o estudo do que tem sido e
do que deve ser o homem educado cristão, devido quer à
pretensão universalista do Cristianismo, quer ao seu peso
extraordinário em todo o mundo e especialmente na chamada
"civilização ocidental": a sua definição antiga é objecto da
perspectiva teológica e pastoral, sobrepondo-se à moderna, e a
concretização histórica coincide com a dita História do Ocidente; a
interacção, frequentemente conflituosa, entre fé e ciência, e a
secularização fruto do próprio cristianismo, também dificultam uma
definição – pelo que nos remetemos à característica básica do "homem
educado cristão" – como viver a tensão própria da exigência do
convite de Jesus Cristo e amar Deus sobre todas as coisas e a todos
os homens não só como a si próprio mas como imagem do próprio Deus,
aceitando o amor como origem e fim de todo o desenvolvimento técnico
e dos conhecimentos científicos (exemplo histórico é a visão
unitária e teocêntrica do universo, na Idade Média); o
Renascimento é antropocentrista, voltando ao homem educado
do mundo clássico, "humanista", empirista, racionalista, naturalista
e defensor da crítica livre (mesmo no campo religioso), aceitando
porém, genericamente, os valores sociais e espirituais do
Cristianismo; ainda nesta linha, mas pretendendo maior independência
do Cristianismo institucional, a Idade Moderna, a partir de
Rousseau e da Revolução Francesa, acentua as ideias que ainda hoje
se discutem em História, Filosofia, Psicologia, Sociologia,
Antropologia e Pedagogia (para não mencionar a Teologia e as
"Ciências exactas"); surge assim o homem educado como
independente, culto, respeitador e dominador da natureza,
participante da organização política e social, tolerante, consciente
do bem comum, cheio de iniciativa e habilitado para a pôr em
prática, defensor da justiça, igualdade, paz, compreensão,
altruísmo, diálogo, da riqueza da tradição e do progresso, capaz de
crítica objectiva e racional, sem desvios emocionais (deixa a emoção
concorrer para o desenvolvimento pessoal e da comunidade), defensor
da liberdade de pensamento, da busca da verdade, da dignidade da
pessoa humana; segundo Mayer (1976, 38-42), o homem educado
actual poderia ter as seguintes características: Pensamento
reflexivo; Apreço à cultura; Desenvolvimento da criatividade;
Compreensão e aplicação da ciência, metodologia e tecnologia;
Contacto com grandes ideias; Valores morais e espirituais;
Habilidades fundamentais; Eficiência vocacional; Educação eficaz;
Cidadania efectiva; Saúde física e mental; Dinamismo e
personalidade; Interesses permanentes e aventura; Obtenção da paz;
Perpétuo renascer do homem.
Estas
características encontram-se cada vez mais actualizadas nas actas
dos congressos promovidos pelo Conselho Nacional de Educação e
Fundação Calouste Gulbenkian, e pelos relatórios da UNESCO, desde o
célebre de E. Faure até aos actuais, dirigidos por J. Delors.
Se quisermos
concretizar a imagem "oficial" do homem educado português,
basta remeter para os objectivos gerais e específicos do sistema
educativo nacional, segundo a Lei de Bases do Sistema Educativo,
in Diário da República, Lei nº 46/86 de 14 de Outubro
(estudado em muitas teses de mestrado e de doutoramento na
especialidade da Filosofia da Educação).
Vale assim a
pena abordar uma nova tentativa de clarificação do acto educativo. O
que se tem feito sob o nome de educação e sob que legitimidade. No
horizonte deste problema, encontra-se o que se entende que deve
ser feito e sob que legitimidade.
____________________________
|