Hierarquia superior.

Manuel Alte da Veiga, Um critério para a Educação?, Braga, 2004.


2 – Introdução

 

Desde que há educação e desde que há filosofia, pode haver e tem havido, pela própria compreensão dos dois conceitos, filosofia da educação.

Do antigo património europeu, sobressaem classicamente Platão e Aristóteles. Porém, muitos séculos antes, já os gregos se preocupavam com a conjunção de educação e virtude – um hábito necessário para garantir a excelência da tékhne e da pôiesis convenientes ao sophós. E até ao nosso tempo, todos os filósofos reflectiram, uns mais explicitamente que outros, sobre a necessidade, conteúdos, objectivos, justificação e implicações da "educação".

Actualmente, não se aceita como genuína Filosofia da Educação uma mera aplicação do pensamento filosófico. Alguns autores dedicam-se a detectar, entre as ideias e sistemas educativos, a influência ou semelhança com as grandes correntes e grandes autores da História da Filosofia. Outros dedicam-se aos fundamentos epistemológicos; outros à dimensão ética, política, religiosa, etc., da educação; e outros ainda analisam os principais factores e problemas da educação, aprofundando-os filosoficamente, quer segundo um modelo fenomenológico e existencial, quer segundo um modelo analítico ou mesmo neotomista. Como é natural, o eclectismo existe e pode ser enriquecedor.

Procura-se evidenciar, nesta obra, a possibilidade de estabelecer alguns fundamentos da Filosofia da Educação, como núcleos resistentes à dispersão característica desta área.

Tendo presente que a palavra fundamento tanto pode designar a "razão suficiente", a "explicação causal", como a solidez da base das proposições, é a este segundo significado que se dará maior atenção. Porém, não nos podemos iludir quanto à interrogação inquieta sobre esta "solidez". No parágrafo sobre o critério da educação, procura-se justamente tirar partido deste solo movediço, próprio da única espécie animal que tem história (no estado actual do nosso conhecimento).

Não se pretende uma fundamentação epistemológica stricto sensu. Em várias universidades portuguesas já podemos dispor de disciplinas de epistemologia educacional. Mas pareceu necessário prestar atenção a autores desta especialidade, procurando ser sensível às implicações, a nível da filosofia da educação aqui exposta, dos problemas para que esses autores procuram alertar. Vem a propósito chamar a atenção para um perverso costume de considerar um autor estrangeiro melhor, a priori ou tendenciosamente a posteriori, do que um autor português. Temos muitos pioneiros em todas as áreas. Sejamos nós pioneiros ou não, não devemos formar "seitas" na cultura: todos somos devedores uns dos outros, ao longo do "tempo e do espaço", e devemos muito, por vezes, a quem mais esquecemos ou até ignoramos. A Filosofia da Educação, no espírito com que nestas linhas será discutida, pretende restaurar no grupo a consciência de "autores" partilhando a "autoridade" mais ou menos definida da grande corrente da cultura humana, com nascentes e um delta sempre a desafiar a nossa imaginação e pioneirismo.

A área de conhecimento, aqui apresentada como Filosofia da Educação, é caracteristicamente reflexiva, o que implica, na orientação adoptada, uma interdisciplinaridade que depende primordialmente da investigação e interesses pessoais dos professores e alunos.

Trata-se de uma reflexão quer sobre a actividade pessoal (de aluno, de professor ou da projecção do futuro professor) quer sobre temas centrais na área da educação, de ordem epistemológica, axiológica e existencial – referindo particularmente os conflitos característicos do processo educacional no nosso tempo e ao longo dos tempos, tentando não esquecer a «filosofia perene» das águas profundas e calmas sob uma superfície facilmente revoltosa.

Esta interdisciplinaridade e até "dispersão", no seu conjunto, é que talvez possam ser olhadas como um modo de exprimir a área científica da Filosofia da Educação – a própria EDUCAÇÃO, tão universal, abstracta, transcendente, inconceitualizável e por outro tão concreta, inesperada e instável como o ser humano na sua unicidade, o que levanta graves problemas de conhecimento. (Este problema de conceitualização poderia ser aprofundado com a ajuda de Bergson e Dilthey, por exemplo).

Porém, quer a dispersão quer a interdisciplinaridade, têm que manifestar coerência interna, e um núcleo forte, que actue como o "reduto" na retaguarda de grandes e pequenas aventuras (e desventuras).

O "reduto" actua a nível científico e psicológico: neste último nível, transmite confiança, a possibilidade de uma excursão bem preparada, e o conforto de um tempo e templo onde sempre nos podemos recolher; a nível científico, fornece-nos uma base teórica suficiente para enfrentar o sempre desconhecido, orientando-nos e evitando uma dispersão destruidora, mas sem deixar de ser flexível e aberta (não só ao transcendente como a toda a interrogação inquietante), e portanto capaz de evoluir.

Diríamos assim, que o "reduto" tanto se forma qual ponto de partida como ponto de chegada. Aventuras e desventuras significam a porfia pela verdade e aceitação da nossa condição "errante". Falta-nos coragem para analisar, para distinguir e unir – como se mesmo a este nível, "diferenciar" fosse "antidemocrático", ou contra o moderno sentimento de integração ou consenso. É necessário aprender a argumentar, para que o progresso seja real e claro (cfr. Wilson, J., 1979, 128).

Dos capítulos seguintes, pode-se levantar a “acusação” de que, stricto sensu, a Filosofia da Educação não é definida. Falha metodológica? Ou opção consciente contra uma corrente demasiado obcecada pela definição de cada ciência que se pretende nova? Ora nem a Filosofia se alienou ao longo dos tempos do problema educativo, nem a Filosofia da Educação se deve perturbar com limites (fines). «A confrontação com o limite parece ser o élan da vida» (Carvalho, 2000, 73). Da Filosofia é próprio, aliás, rasgar limites, e é ao fazê-lo que penetra nos "mistérios" da educação facilmente "recalcados" (no sentido psicanalítico) por sequelas positivistas. Boavida (1993, 363) denuncia claramente: «A Filosofia é em si própria indefinível». Este tema poderia ser exemplificado ao falar-se da oposição amor – classificação: esta última nunca pode prevalecer, como redutora que é. Levanta-se o problema da avaliação, ainda não suficientemente explorado pela Filosofia da Educação. É por isso que o seu desejo de sabedoria se vai "definindo" pela sua acção, e ao "definir-se" cria o seu esqueleto como um recife de coral contribuindo para o "progresso" resultante da «herança + criatividade» (Veiga, 1996, 959).   

A Filosofia da Educação parece assim tomar corpo não como apêndice da Filosofia sistemática nem da história da Filosofia: brota da "ingénua" maiêutica socrática «que põe de lado o seu saber para caminhar ao lado do jovem em busca da verdade», (Söetard, 1997), e vai encorpando com o eclectismo próprio da floresta – às vezes quase virgem – da educação.

Verifica-se, de facto, que «nos chamados 'tempos críticos', mas sempre que a sociedade reflecte sobre a sua 'qualidade de vida', a educação é a preocupação central. Gera-se uma autêntica Filosofia da Educação independente da Filosofia sistemática (mais ou menos 'pura')», correspondendo à vontade de fundamentação dos processos educacionais, manifesta em muitos professores de todos os níveis e especialidades de ensino, entre toadas as pessoas cultas que se atrevem a pensar sobre este tema pondo em causa os preconceitos de origem.   

A Filosofia da Educação, aqui apresentada, é portanto um convite a procurar um olhar liberto de medos e de convenções acríticas, avesso ao comodismo ou a políticas, cujo interesse é fechar o nosso ângulo de visão, impedindo-nos de explorar a riqueza escondida, mas indiciada, na turbulência do dia-a-dia.

É preciso prestar atenção a tudo quanto pudermos, caso contrário arriscamo-nos a perder aquilo que vale a pena. Clemente de Alexandria soube guardar este "simples" pensamento de Heraclito: «É necessário que os homens filósofos sejam perscrutadores do maior número possível de coisas». (Heraclito, 14, A102).

 


  Página anterior Página inicial Página seguinte