Desde que há
educação e desde que há filosofia, pode haver e tem havido, pela
própria compreensão dos dois conceitos, filosofia da educação.
Do antigo património europeu,
sobressaem classicamente Platão e Aristóteles. Porém, muitos séculos
antes, já os gregos se preocupavam com a conjunção de educação e
virtude – um hábito necessário para garantir a excelência da
tékhne e da pôiesis convenientes ao sophós. E até
ao nosso tempo, todos os filósofos reflectiram, uns mais
explicitamente que outros, sobre a necessidade, conteúdos,
objectivos, justificação e implicações da "educação".
Actualmente, não se aceita como
genuína Filosofia da Educação uma mera aplicação do pensamento
filosófico. Alguns autores dedicam-se a detectar, entre as ideias e
sistemas educativos, a influência ou semelhança com as grandes
correntes e grandes autores da História da Filosofia. Outros
dedicam-se aos fundamentos epistemológicos; outros à dimensão ética,
política, religiosa, etc., da educação; e outros ainda analisam os
principais factores e problemas da educação, aprofundando-os
filosoficamente, quer segundo um modelo fenomenológico e
existencial, quer segundo um modelo analítico ou mesmo neotomista.
Como é natural, o eclectismo existe e pode ser enriquecedor.
Procura-se evidenciar, nesta obra,
a possibilidade de estabelecer alguns fundamentos da Filosofia da
Educação, como núcleos resistentes à dispersão característica
desta área.
Tendo presente
que a palavra fundamento tanto pode designar a "razão
suficiente", a "explicação causal", como a solidez da base das
proposições, é a este segundo significado que se dará maior
atenção. Porém, não nos podemos iludir quanto à interrogação
inquieta sobre esta "solidez". No parágrafo sobre o critério da
educação, procura-se justamente tirar partido deste solo movediço,
próprio da única espécie animal que tem história (no estado actual
do nosso conhecimento).
Não se pretende
uma fundamentação epistemológica stricto sensu. Em várias
universidades portuguesas já podemos dispor de disciplinas de
epistemologia educacional. Mas pareceu necessário prestar atenção a
autores desta especialidade, procurando ser sensível às implicações,
a nível da filosofia da educação aqui exposta, dos problemas para
que esses autores procuram alertar.
Vem a propósito chamar a atenção para um perverso costume de
considerar um autor estrangeiro melhor, a priori ou
tendenciosamente a posteriori, do que um autor português.
Temos muitos pioneiros em todas as áreas. Sejamos nós pioneiros ou
não, não devemos formar "seitas" na cultura: todos somos devedores
uns dos outros, ao longo do "tempo e do espaço", e devemos muito,
por vezes, a quem mais esquecemos ou até ignoramos. A Filosofia da
Educação, no espírito com que nestas linhas será discutida, pretende
restaurar no grupo a consciência de "autores" partilhando a
"autoridade" mais ou menos definida da grande corrente da cultura
humana, com nascentes e um delta sempre a desafiar a nossa
imaginação e pioneirismo.
A área de
conhecimento, aqui apresentada como Filosofia da Educação, é
caracteristicamente reflexiva, o que implica, na orientação
adoptada, uma interdisciplinaridade que depende
primordialmente da investigação e interesses pessoais dos
professores e alunos.
Trata-se de uma
reflexão quer sobre a actividade pessoal (de aluno, de professor ou
da projecção do futuro professor) quer sobre temas centrais na área
da educação, de ordem epistemológica, axiológica e existencial –
referindo particularmente os conflitos característicos do processo
educacional no nosso tempo e ao longo dos tempos, tentando não
esquecer a «filosofia perene» das águas profundas e calmas sob uma
superfície facilmente revoltosa.
Esta
interdisciplinaridade e até "dispersão", no seu conjunto, é que
talvez possam ser olhadas como um modo de exprimir a área científica
da Filosofia da Educação – a própria EDUCAÇÃO, tão universal,
abstracta, transcendente, inconceitualizável e por outro tão
concreta, inesperada e instável como o ser humano na sua unicidade,
o que levanta graves problemas de conhecimento. (Este problema de
conceitualização poderia ser aprofundado com a ajuda de Bergson e
Dilthey, por exemplo).
Porém, quer a
dispersão quer a interdisciplinaridade, têm que manifestar coerência
interna, e um núcleo forte, que actue como o "reduto" na retaguarda
de grandes e pequenas aventuras (e desventuras).
O "reduto" actua
a nível científico e psicológico: neste último nível, transmite
confiança, a possibilidade de uma excursão bem preparada, e o
conforto de um tempo e templo onde sempre nos podemos
recolher; a nível científico, fornece-nos uma base teórica
suficiente para enfrentar o sempre desconhecido, orientando-nos e
evitando uma dispersão destruidora, mas sem deixar de ser flexível e
aberta (não só ao transcendente como a toda a interrogação
inquietante), e portanto capaz de evoluir.
Diríamos assim,
que o "reduto" tanto se forma qual ponto de partida como ponto de
chegada. Aventuras e desventuras significam a porfia pela verdade e
aceitação da nossa condição "errante". Falta-nos coragem para
analisar, para distinguir e unir – como se mesmo a este nível,
"diferenciar" fosse "antidemocrático", ou contra o moderno
sentimento de integração ou consenso. É necessário aprender a
argumentar, para que o progresso seja real e claro (cfr. Wilson, J.,
1979, 128).
Dos capítulos
seguintes, pode-se levantar a “acusação” de que, stricto sensu,
a Filosofia da Educação não é definida. Falha metodológica? Ou opção
consciente contra uma corrente demasiado obcecada pela definição de
cada ciência que se pretende nova? Ora nem a Filosofia se alienou ao
longo dos tempos do problema educativo, nem a Filosofia da Educação
se deve perturbar com limites (fines). «A confrontação com o
limite parece ser o élan da vida» (Carvalho, 2000, 73). Da
Filosofia é próprio, aliás, rasgar limites, e é ao fazê-lo que
penetra nos "mistérios" da educação facilmente "recalcados" (no
sentido psicanalítico) por sequelas positivistas. Boavida (1993,
363) denuncia claramente: «A Filosofia é em si própria indefinível».
Este tema poderia ser exemplificado ao falar-se da oposição amor –
classificação: esta última nunca pode prevalecer, como redutora que
é. Levanta-se o problema da avaliação, ainda não suficientemente
explorado pela Filosofia da Educação. É por isso que o seu desejo de
sabedoria se vai "definindo" pela sua acção, e ao "definir-se" cria
o seu esqueleto como um recife de coral contribuindo para o
"progresso" resultante da «herança + criatividade» (Veiga, 1996,
959).
A Filosofia da
Educação parece assim tomar corpo não como apêndice da Filosofia
sistemática nem da história da Filosofia: brota da "ingénua"
maiêutica socrática «que põe de lado o seu saber para caminhar ao
lado do jovem em busca da verdade», (Söetard, 1997), e vai
encorpando com o eclectismo próprio da floresta – às vezes quase
virgem – da educação.
Verifica-se, de
facto, que «nos chamados 'tempos críticos', mas sempre que a
sociedade reflecte sobre a sua 'qualidade de vida', a educação é a
preocupação central. Gera-se uma autêntica Filosofia da Educação
independente da Filosofia sistemática (mais ou menos 'pura')»,
correspondendo à vontade de fundamentação dos processos
educacionais, manifesta em muitos professores de todos os níveis e
especialidades de ensino, entre toadas as pessoas cultas que se
atrevem a pensar sobre este tema pondo em causa os preconceitos de
origem.
A Filosofia da
Educação, aqui apresentada, é portanto um convite a procurar um
olhar liberto de medos e de convenções acríticas, avesso ao
comodismo ou a políticas, cujo interesse é fechar o nosso ângulo de
visão, impedindo-nos de explorar a riqueza escondida, mas indiciada,
na turbulência do dia-a-dia.
É preciso
prestar atenção a tudo quanto pudermos, caso contrário arriscamo-nos
a perder aquilo que vale a pena. Clemente de Alexandria soube
guardar este "simples" pensamento de Heraclito: «É necessário que os
homens filósofos sejam perscrutadores do maior número possível de
coisas». (Heraclito, 14, A102).
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