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Instrumentos de sopro
FLAUTAS
ATRIBUI-SE ao assobiar do vento nos canudos, abertos dos profusos
canaviais enfileirados nas margens do Nilo, a invenção dos
instrumentos de sopro, o primeiro dos quais é a flauta. Sugeriu
talvez o facto a ideia de se as soprar em bocados de cana maiores,
ou menores, e dessa variação notariam os egípcios a diferença de
som, e de experiência em experiência, ajudados pelo acaso,
descobriram a flauta.
Alguns autores de grande nomeada dão como certo atribuírem os
egípcios a invenção da flauta a Osíris.
São antiquíssimas as flautas no Egipto, e bem o atestam as
catacumbas de Elétia, que apresentam diversas espécies de flautas.
As flautas primitivas eram uns canudos simples, abertos nas suas
extremidades e com furos repartidos pelo comprimento; em um destes
se soprava, tendo-se o instrumento quase paralelo ao corpo. Estas
flautas eram quase sempre de cana, algumas de madeira, tal como a do
lódão e buxo, e ainda, mas poucas, de marfim, osso, prata, ferro e
raras de bronze. Quase o mesmo se dava noutras civilizações, e assim
é que do osso tíbia veio o nome em latim à flauta, quer esta fosse,
como se vê em Plínio o Naturalista(1), feita de buxo, lódão, osso de
jumento, ou prata.
Havia três espécies de flautas: a flauta-direita; a flauta
transversa (fotíngia); a flauta dupla.
Era pouco usada a flauta-direita, a qual consistia num tubo direito
e igual; não excedia em comprimento mais do que de 456 milímetros a
693 milímetros, como as que existem no museu de Florença; havia-as
muito mais curtas, 228 milímetros, e menos ainda, como a do museu de
Berlim, que mede 214 milímetros, e também as do museu de Leida;
tinham de 1 até 5 furos; e estas flautas tão curtas só serviam para
a gente do campo.
A
flauta transversa era muito usada; bastante comprida, excedia por
vezes o braço do tocador; era, como a antecedente, tocada só por
homens e empregada nas cerimónias fúnebres.
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A flauta dupla, ao contrário desta, era tocada não só por homens,
mas também por mulheres e principalmente por estas; era a flauta
mais usada, servia em todas as ocasiões alegres, ou tristes,
harmonizava-se com todos os outros instrumentos e as dançarinas
tocavam-na ao mesmo tempo que dançavam.
Esta flauta tinha dois tubos, umas vezes iguais, outras desiguais;
um era destinado à mão direita, o outro à mão esquerda; o tubo para
a mão direita era feito da parte superior, delgada, da cana, tinha
muitos mais furos do que o outro e dava as notas agudas; o tubo, ou
flauta da mão esquerda, era da parte inferior, a grossa, da cana,
tinha muito menor número de furos e dava as notas graves.
Gregos e latinos usavam flautas semelhantes, duplas, e a que em
certo caso especial davam o nome de tíbias pares (no mesmo tom e
oitava), e noutros de tíbias ímpares (sons agudos e sons graves),
como direi se escrever acerca de música na Grécia e em Roma.
Entre sírios e hebreus tinha o nome de ambuba.
TROMBETAS
A
trombeta, quase anafil, era instrumento muito usado pelos egípcios.
Não tinha variedade nenhuma; era de cobre, curta, e de forma
singela: a de um tubo que se ia alargando pouco a pouco para a
extremidade da saída do som, na qual se abria logo em curto mas
alargado cone.
Há uma trombeta de cobre dourado no museu do Louvre, a qual mede ao
todo 54 centímetros; esta trombeta tem o som muito agudo, dá duas
oitavas acima das trombetas em ré das nossas orquestras.
Serviam as trombetas para regular a marcha das tropas, comandá-las e
dirigi-las nas evoluções.
Deviam ser de som muito forte e estridente, pois que nas cidades não
era permitido tocá-las, só no campo e nos quartéis fora da cidade.
Instrumentos de pancada
Os instrumentos de percussão, ou como dizemos de pancada, são: o
tamboril, o adufe, a tábale ou darabuca, os címbalos (pratos e
castanholas), os crótalos; direi ainda o sistro.
De que tivesse havido no Egipto Faraónico tambor propriamente dito,
caixa de rufo e em que se batesse com baquetas, não possuem os
egiptólogos documentação incontestável: os monumentos não na dão e o
tambor de Tebas, de que falam alguns egiptólogos(2), é objecto
contra cuja autenticidade há suspeitas.
TAMBORIL
Era uma caixa de madeira ou de cobre, do feitio de barril, um
elipsóide de 60 a 75 centímetros no eixo maior, e de uns 25 a 35
centímetros no eixo menor, truncado nas extremidades do eixo maior.
Nestas assentavam peles, uma de cada lado, estiradas por um certo
número de correias finas, encruzadas em roda da superfície da caixa
elipsoidal.
Suspendia-se a tiracolo, ficando quase horizontalmente para a frente
do tocador, que batia nele com os dedos, e ficando verticalmente
quando deitado para as costas para se caminhar em marcha.
O
tamboril era usado nas bandas militares; associava-se a qualquer
outro instrumento, trombeta, etc., servia para marcar a evolução
militar, ou o ritmo na dança, na qual o dançador era quase sempre
quem o tocava com ambas as mãos, ao mesmo tempo que dançava.
Este instrumento já era muito conhecido e bastante usado no século
XVI antes da nossa era.
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ADUFE E PANDEIRO
O
pandeiro era de fasquias de tábuas estreitas, juntas em uma só
cercadura ou anel.
O
adufe era quadrangular; os arcos dele eram curvos, côncavos para
fora, e formavam, para os lados da cobertura, em cada um dos dois
tampos, ângulos agudos; dentro havia soalhas de cascavéis ou
metálicas. Um e outro, ambos estes instrumentos eram tangidos com os
dedos, excepto o polegar, com o qual se segurava o instrumento.
TÁBELE ou DARABUCA
A
tábele (que só deste modo poderemos aportuguesar o vocabulário
egípcio tabl) era de forma composta de um cone de ângulo
estreito, truncado, ficando com pequena altura e encimado na parte
mais estreita por uma secção esférica de menos de meia esfera; era
de barro; deverei em rigor dizer que esta forma grotesca era a de um
dos nossos fogareiros de barro, sem a base em que estes assentam.
Era todo oco e tapado nos extremos por uma pele em cada um;
tangia-se como hoje em dia a darabuca (de forma igual) tocada pelas
mulheres egípcias dos campos e pelos barqueiros do Nilo: a mão
direita tocava o canto com os dedos, a mão esquerda o acompanhamento
com sons graves, tirados da semi-esfera por pancadas com a palma da
mão.
O
instrumento trazia-se suspenso aos ombros.
CÍMBALOS
Os címbalos eram proximamente os pratos das nossas orquestras e
bandas.
Havia, porém, címbalos pequenos, que não eram tocados por pancadas
de um no outro, o da mão direita, no da esquerda, mas eram usados
aos pares em cada uma das mãos, como as castanholas em Espanha.
Wilkinson diz que nestes címbalos de dois pares está a origem das
castanholas, cujo uso introduziram em Espanha os mouros.
É
possível; mas é certo que os povos itálicos conheciam e usavam, na
dança, de pratinhos, de pratos e de castanholas; o que bem se pode
ver s. v. crusmata e cymbalista e cymbalistria
no «Dictionnaire des Antiquités Romaines et Grecques», de
Antony Rich, tradução de Chéruel.
CRÓTALOS
Alguns autores confundem crótalos com címbalos de um
par em cada mão, isto é, com castanholas, assim Ramsay; a razão é o
significado do vocabulário grego krótalon. Adoptei-o, como em
geral os egiptólogos cujos trabalhos li, para designar os
instrumentos de pancada formados por duas peças iguais, geralmente
de bronze cada uma delas, composta de uma ou duas cabeças, em cujo
interior há cascavéis ou soalhas metálicas, as quais cabeças
assentam
pela nuca em cabos mais ou menos curvos, por onde se trazem
os crótalos nas mãos, para os sacudir e dar tilinto, ou bater uma
peça contra a outra, para o som ser maior.
Algumas vezes aparecem figuras com um par empunhado em cada mão.
Usavam-se os crótalos nas bandas militares e noutros serviços
músicos, como os ferrinhos na Europa.
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SISTRO
Supôs-se durante muito tempo que o sistro fosse o principal
instrumento da música egípcia. Rigorosamente nem se deveria falar
nele, como instrumento músico; é propriamente, como a campainha da
igreja, talvez pelo menos em parte, como a sineta e o sino.
Como instrumento, porque dá som, é o instrumento sagrado por
excelência, mas só, sem combinação nenhuma com outro instrumento.
Nunca se encontra nos monumentos associado a instrumento de corda,
sopro, ou pancada, nem ao lado, ou na mão de cantores.
Só no templo se podia usar e era subido privilégio tocá-lo; só
rainhas, ou damas de grande nobreza, devotas no serviço da
divindade, denominadas mulheres de Amum.
As mulheres dos faraós desde a XVIII dinastia até à XXII são músicas
dos templos; tangem umas o tamboril, outras tocam a harpa ou teorba,
há-as que batem os crótalos, e há-as mais excelentes, as que sacodem
o sistro.
O
sistro era inteiramente de bronze, ou do que chamamos metal amarelo,
uma espécie de bronze; havia-os com embutidos de prata, de ouro, no
cabo; a ornamentação era em alguns riquíssima.
A
forma do sistro era a de arco, redondo ou ogival no alto, cujos
lados rectos se inclinavam um para o outro e assentavam distando
entre eles mais do que 2/3 da corda do arco, na mesma superfície, à
qual se ligava o cabo tão comprido como o sistro, sonoro e
aformoseado com ornatos, escolhidos não só para graça, mas porque
ficassem bem adequados ao serviço divino a que era destinado o
instrumento.
Os ramos, que da parte encurvada descem até pousarem na superfície
superior do cabo têm um e outro três ou quatro (raros) buracos,
pelos quais passam outras tantas varas metálicas, que têm enfiados
anéis também de metal bem-sonante.
Junção dos Instrumentos
Associavam-se estes instrumentos por formas diferentes: sós, ou em
duetos, tercetos, quartetos, quintetos, sextetos, etc.; por vezes
juntavam-se em número considerável. É impossível dizer quais os
princípios ou regras, que serviam para estas distribuições.
Acompanhavam diversos instrumentos um só cantor; muitos cantores
eram acompanhados por um só instrumento; ou qualquer instrumento se
tocava a solo.
Os instrumentos mais usados para acompanhar o canto eram a
flauta-dupla, a harpa e a lira; por vezes juntavam-se duas, três
harpas, e chegavam a juntar-se em maior número.
De baixos-relevos e pinturas tem-se conhecimento da junção desses
instrumentos:
Em duetos da seguinte forma:
Duas harpas;
Duas liras;
Guitarra e adufe;
Harpa e lira;
Harpa e flauta dupla;
Harpa e pandeiro;
Guitarra e pandeiro;
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Em tercetos da seguinte forma:
Duas harpas e flauta transversa;
Harpa, flauta direita e flauta transversa;
Harpa e duas guitarras;
Harpa, flauta dupla e guitarra;
Duas harpas e lira;
Harpa, flauta dupla e pratos;
Harpa, lira e flauta dupla;
Lira, guitarra e flauta dupla;
Trombeta, pratos e tamboril;
Em quartetos da seguinte forma:
Duas harpas, flauta direita e transversa;
Harpa, duas guitarras e flauta dupla;
Harpa, guitarra, flauta e adufe;
Harpa, guitarra e duas flautas transversas;
Harpa, guitarra, lira e tamboril;
Em quintetos da seguinte forma:
Harpa, guitarra, lira, flauta dupla e adufe;
Lira, duas harpas, guitarra e flauta dupla;
Em sextetos da seguinte forma:
Harpa, duas liras, guitarra, flauta dupla e adufe;
E
como estas muitas outras combinações; mas isto basta para se fazer
ideia.
Quanto ao sistema musical dos egípcios não é possível dizer nada,
pois neste ponto os monumentos e túmulos são impenetráveis e nada se
pode dizer acerca do modo como os egípcios compreendiam tonalidade,
ritmo, melodia, harmonia, tudo quanto a composição musical encerra
por mais simples e curta que seja; em todo o caso não se deve daqui
deduzir que fossem mal concebidas e mal desenvolvidas as composições
musicais.
De ouvido aprendiam e de memória conservavam, ensinavam e
transmitiram os orientais as mais difíceis e largas composições, não
só de música, mas também de literatura, por muitos séculos.
Cada homem douto era uma biblioteca de muitos volumes, cuja doutrina
transmitia com exactidão, embora por vezes sem conhecimento do valor
e nem em muitos casos, quanto a literatura, da linguagem que a
exprimia.
Lisboa – Abril de 1906
JOSEFINA DE VASCONCELOS ABREU
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(1)
– Trad. de Emílio Littré, XVI, 36.
(2)
– Conheço apenas Gardner Wilkinson, "A Popular
Account of Ancient Egyptians", voI.
I, pág. 106-107; Paul Pierret no "Dictionnaire d'Archéologie
Egyptienne", s. v. tambours refere-se à obra maior de Wilkinson,
que não existe na biblioteca de meu Pai, e cita o voI. II, pág. 266.
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