Neste momento, em que ecoam ainda nos nossos
ouvidos os gritos lancinantes de tantos desgraçados que pereceram
nas chamas do grande incêndio da rua da Madalena, um dos mais
notáveis dos últimos tempos, já pela sua origem, em que a justiça
descobriu, por indicação indignada da voz pública, um dos mais
repelentes atentados criminosos, já pelas peripécias terríveis, de
todos conhecidas, em que catorze vítimas encontraram a mais
afrontosa de todas as mortes, neste momento será talvez oportuno
relembrar, num simples memento noticioso, algumas das mais
memoráveis tragédias do incêndio, que têm alarmado a nossa formosa
cidade de Lisboa, destruindo na sua implacável fúria edifícios,
haveres e vidas dos seus cidadãos.
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Antigos incêndios dos séculos XV e XVI
ARECEMOS
de informação histórica, mas fácil é imaginar o que seriam antes do
terramoto, tais sinistros na velha cidade, cujo casario informe se
amontoava em apertadas ruas e vielas, de que nos dão ainda hoje
pálida ideia os bairros da Alfama, da Mouraria e do Castelo;
naqueles tempos em que os recursos contra o fogo, que lavrava de
casa para casa, se resumiam nos processos rudimentares de cortar e
atalhar a propagação do incêndio, que ou se apagava a baldes de
água, ou por falta de material que ardesse, combatido numa luta
estéril, anárquica, dos populares animosos que acorriam à salvação
das vítimas ou à pilhagem criminosa dos bens.
Não iremos remontar às trágicas e mal conhecidas
catástrofes, a que vagamente aludem as velhas crónicas, ocorridas
nos séculos XIV, XV e XVI, tempos em que sabemos, por exemplo, ter
ardido num pavoroso incêndio grande parte da famosa rua Nova, que
corria pelos sítios da actual rua dos Capelistas. Era a rua
principal da velha cidade, o Chiado daquele tempo, delineada desde o
reinado de D. Dinis, com 13 metros de largo, e mais tarde guarnecida
dos ricos bazares onde se vendiam as preciosidades artísticas do
Oriente. Pois uma boa parte dessa rua comercial e opulenta foi
devorada pelo fogo calamitoso de 30 de Janeiro de 1396, que alastrou
pela Confeitaria e Ver-o-Peso, vitimando inúmeras
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pessoas, e causando enormes prejuízos de prédios e de fazendas.
E contudo, naqueles tempos de costumes semi-bárbaros,
e ainda depois, a justiça não raro empregava contra lugares
condenados pelas leis, a pena extravagante de destruição pelo fogo,
do mesmo modo que, anos passados, a Inquisição procurava exterminar
ferozmente os incrédulos nos autos de fé da praça pública. Às casas
de tavolagem, ainda hoje perseguidas por assaltos ridículos,
aplicava-se a pena de serem reduzidas a cinzas, como em 1490, no dia
1 de Junho, se ordenou com respeito a uma da praça da Palha, casa –
«que se tornava escandalosa pelas juras e blasfémias dos jogadores».
– E um padre, que miudamente nos relatou mil factos curiosos na sua
obra tão consultada – O ano histórico –, comentava a pena
dizendo – «abrazem-se as casas de jogo já que o jogo tem abrazado
muitas casas».
Deixemos também as notícias do sinistro ocorrido na
antiga rua do Príncipe, ao Terreiro do Paço, em 1575 (18 de
Fevereiro), no qual o fogo devorou por completo um dos lados da rua,
e do incêndio que dois dias depois da partida de D. Sebastião para a
África lavrou numa tercena à beira rio, junto a Santos, onde se
armazenava trigo e pólvora. A explosão foi enorme, alarmando a
cidade e causando grande número de vítimas.
Os incêndios do Hospital de Todos os Santos e da
igreja do Loreto
Dos séculos XVII e XVIII temos porém notícias
numerosas e pormenorizadas de temerosos incêndios.
Bastaria citar o que em 27 de Outubro de 1601, depois
da meia-noite, devorou numa fogueira enorme a igreja e parte das
enfermarias do grandioso Hospital Real de Todos os Santos, ao Rocio,
fundação notável de D. João lI, e o outro não menos falado, que em
29 de Março de 1651 destruiu por completo a igreja italiana de Nossa
Senhora do Loreto, e os prédios contíguos, onde se alojava então o
depósito das décimas.
Ardem os conventos de S. Francisco e da Trindade
O século XVIII não alvoreceu com bons prenúncios, com
relação a incêndios, visto que logo nos primeiros anos dele, grandes
e pavorosos sinistros aterraram a cidade. Na noite de 9 de Janeiro
de 1707, um foguete mal lançado caiu sobre o telhado da igreja do
grande convento de S. Francisco da Cidade, que padeceu neste
desastre graves danos.
No ano seguinte de 1708, noutro dos mais populosos e
importantes conventos de Lisboa, o da Trindade, o fogo devorava, no
dia 22 de Setembro vários lanços do edifício, deixando apenas
incólumes o templo, e cerca de 18 celas de religiosos. Depressa
porém os frades trinos reedificaram o seu convento, que o terramoto
de 1755 arrasou, acabando a destruição o fogo que se seguiu.
Do que era o edifício antes do incêndio de 1708 e
depois dele dão-nos ideia ligeira a gravura de Domingos Vieira
Serrão no precioso livro de Lavanha e outras antigas vistas da
cidade. O que ele era em 1833, antes de ser demolido para a abertura
da rua da Trindade, mostra-o o desenho de Luís Gonzaga Pereira,
conservado na sua memória manuscrita sobre igrejas de Lisboa,
existente na Biblioteca Nacional.
/ 405 /
Três pavorosos fogos – Novo incêndio em S. Francisco
e segundo grande incêndio do Hospital Real
O dia 10 de Agosto de 1734 é de triste memória para a
cidade de Lisboa. Nada menos de três grandes incêndios a apavoraram.
Assim no-lo conta Fr. Cláudio da Conceição, no Gabinete Histórico.
Foi um na rua nova do Almada, defronte dos
Oratorianos do Espírito Santo, fogo tal que condenou 18 prédios,
morada de 59 famílias, e chegou a ameaçar o convento, onde hoje
estão os Armazéns do Chiado. O segundo muito violento também,
devorou grande parte do convento das comendadeiras da Encarnação,
salvando-se a igreja; o terceiro foi junto à igreja do Paraíso, na
actual rua deste nome, e nele arderam algumas casas.
O convento de S. Francisco da Cidade era malfadado
como o edifício do hospital real. Repetidos e violentos incêndios os
assediavam a ambos. Em 1741, na madrugada de 30 de Novembro, volviam
chamas sinistras a destruir o dormitório e a livraria. Baldados
foram os esforços para as debelar; a voracidade do fogo, que durou
até ao dia seguinte, refere o Gabinete Histórico, apenas
respeitou a igreja. Reedificada logo, o terramoto arrasou-a, e a
reconstrução última nunca chegou a cabo, apresentando até princípios
de século XIX o aspecto que estampas antigas nos conservaram.
Às três horas da manhã de 10 de Agosto de 1750, soou
o momento da mais horrível catástrofe que antes do terramoto
alanceou os espíritos, em Lisboa. Ardia segunda vez o hospital real.
Resta-nos do desastre uma Relação impressa, folheto
hoje raro, daquele mesmo ano. Teve princípio o fogo num monte de
aparas na casa das tinas, e dali irrompeu com rapidez pelas
enfermarias, casas dos enjeitados, corredores, cozinhas, igreja,
casas do Provedor e da fazenda, botica e outras oficinas.
É fácil imaginar o horror deste quadro: via a cidade
arder o seu grandioso hospital, onde jaziam em leitos tantos
miseráveis, nada menos de 720, onde se encerravam em medonhos
cárceres 17 doidos, e onde se criava avultado número de infelizes
enjeitados.
Não se apura da relação o número de vítimas, que
devia ser grande. Acudiram os frades das ordens religiosas,
arrábidos, domínicos e outros, transportando os enfermos e as
crianças aos seus conventos e às casas vizinhas, à Calçada de
Sant'Ana, aos conventos de S. Domingos e do Desterro, às casas do
Senado e do Conde da Ribeira. Vieram logo os soberanos e toda a
nobreza opulenta da cidade a oferecer suas berlindas, coches e
carruagens para o transporte dos doentes, disputando entre si sobre
quem mais e melhor pudesse exercitar estes piedosos socorros de
humanidade cristã.
As comunidades saíram pelas ruas em peditórios; quase
todas as famílias os socorreram com os seus óbolos.
Cinco anos depois o terramoto acabava de destruir o
grande hospital real, de que já restavam apenas o gracioso pórtico,
cujo desenho se conserva, com seu tabuleiro e escadarias, bem como
parte da fachada do edifício.
Outros sinistros no fim do século XVIII
Assim como deixámos em esquecimento na resenha do
século XVII os incêndios que em 1651 e 1694 devoraram o convento de
Santa Brígida (Santos), e o edifício do Noviciado da Companhia de
Jesus, à Cotovia, também agora, no memento do século XVIII,
passaremos de relance pelo fogo que em 1745, a 13 de Fevereiro,
pegou nas casas da pólvora à Ribeira, causando explosão medonha, em
que pereceram 28 vítimas, ficando perto de 100 pessoas feridas, das
quais algumas morreram pouco depois; pelo que em 14 de Dezembro do
mesmo ano rompeu violento às 4 horas da madrugada nos aposentos da
rainha, no paço da Ribeira; pelo que em 1751 lavrou surdamente, como
conta o sempre minucioso autor do Gabinete histórico,
causando quase completa ruína naquele velho e soberbo palácio; e
finalmente pelo que em 1753 a 5 de Agosto, se ateou em prédios da
rua das Canastras, causando avultados prejuízos em boas casas, lojas
e armazéns bem recheados.
O incêndio da Patriarcal
No decorrer da tarde de 10 de Maio de 1769, os
habitantes da capital ouviam o desesperado rebate dos sinos, e de
todos os pontos da cidade se avistava a densa coluna de fumo que se
levantava do alto da Cotovia. Estava ardendo com força o enorme
edifício onde se instalara a nova Patriarcal, construído havia pouco
no sítio das obras do conde de Tarouca, espaçoso terreiro que depois
teve as denominações
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populares de Patriarcal queimada, e de Largo das pedras,
e onde actualmente vicejam árvores e plantas do jardim do Príncipe
Real.
Neste grande e voraz sinistro logo a voz do povo
indigitou um crime: recaíram suspeitas sobre o armador antigo da
igreja Alexandre Franco Vicente, que tinha a seu cargo as
arrecadações dos riquíssimos paramentos e alfaias. Chamado a
explicações o indiciado autor do crime fugiu, mas preso logo em
Faro, e confessado o crime, praticado no intuito de encobrir
avultados roubos, o Incendiário da Patriarcal condenado
segundo as justiças feras do tempo, por acórdão de 28 de Janeiro de
1773, foi com baraço e pregão amarrado à cauda de um cavalo,
açoitado e conduzido ao alto da Cotovia, onde no próprio sitio do
seu crime o amarraram a um poste e o queimaram vivo.
Estava ainda recente o exemplo das execuções sumárias
que o marquês de Pombal ordenara se fizessem pelas ruas aos
malfeitores e incendiários, que aproveitavam os momentos sinistros
da medonha catástrofe de 1755, para roubar as casas e activar o
braseiro enorme em que se consumia a cidade. Descreveu-nos esses
horrores, com a sua frase colorida e viva o ilustre escritor
Pinheiro Chagas, no seu romance O Terramoto de Lisboa.
A vida do Incendiário da Patriarcal, cheia de
pormenores e incidentes curiosos, foi aproveitada pelo romancista
popular Leite Bastos para um dos volumes da colecção em que
historiou alguns dos grandes criminosos dos últimos tempos, como o
Matos Lobo, o Diogo Alves e o último Carrasco.
Alguns fogos com que se inicia o século XIX
Observemos agora a crónica dos sinistros pelo fogo no
decurso do século que passou. Logo ao alvorecer desta quadra, em que
na cidade cresce sensivelmente a população e em que os novos
costumes, a iluminação a gás, os teatros, as noitadas, reuniões e
soirées aumentam as facilidades e os perigos de tão funestos
acontecimentos, veremos iluminar-se a cidade em 1819 com o fogaréu
em que arde ao cimo da calçada da Graça o grande palácio dos duques
de Loulé.
A 3 de Janeiro de 1830 ardia o prédio da arcada, no
canto do Terreiro do Paço, pertencente ao barão de Sobral. O fogo
foi terrível, e nele pereceu, entre outras vítimas, um conhecido
pasteleiro da rua dos Capelistas, de nome Luís Ferreira da Silva.
Como ardeu o antigo palácio da Inquisição, ao Rossio
A revolução de 1820 tinha abolido a ominosa
Inquisição, e o povo indignado invadiu o palácio, sito ao topo do
Rossio, destruindo e exterminando os instrumentos de tortura, e
pondo em liberdade, como na tomada da Bastilha, os míseros que ainda
apodreciam em seus cárceres. O palácio passou a chamar-se Paço da
Regência e a ter aplicações várias, instalando-se nele algumas
repartições entre elas as do Erário régio, do crédito público
e do papel selado. Assim estava, quando no dia 14 de Julho de 1836
um pavoroso incêndio o devorou, reduzindo tudo a um montão de
ruínas, e deixando apenas intactas as grossas paredes, com o aspecto
que gravuras da época nos conservaram.
Suspeitou-se de crime neste fogo, que tão grandes
prejuízos causou aos cofres do Estado. Depois de longas hesitações,
as ruínas foram demolidas, e no lugar delas se fez
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em 1841 o largo de Camões e o teatro de D. Maria.
Semelhantemente persistiram por muitos anos as ruínas
em que o terramoto deixara o palácio dos duques de Bragança, ao
Tesouro Velho, até que um grande incêndio devorou em 1841 as
barracas e construções provisórias e mesquinhos casebres, que pouco
a pouco ali se tinham ido construindo, e onde vivia como nos
casebres do Loreto e nas ruínas do palácio Vidigueira, a S. Roque,
numerosa população de vadios e galdérios. Destruídos os casebres
pelo fogo de 1841, edificaram-se os grandes prédios que hoje ali
existem.
Grandes fogos destroem a Escola Politécnica e parte
do Convento de Xabregas
Um dia, a 22 de Abril de 1843, pelas três horas da
tarde, um incêndio, cuja causa se ignora, levanta-se de súbito num
dos extremos de edifício, que antes fora o Noviciado da Companhia de
Jesus (salteado pelo fogo de 1694, como dissemos) e depois
transformado em Colégio dos Nobres pelo grande Marquês, e em Escola
Politécnica, em 1837, por Passos Manuel.
O fogo lavra violento; os sinos da cidade dão rebate
que se comunica de torre a torre, chamando ao lugar do sinistro as
bombas, as tropas, os artífices, obrigados pelo seu dever, e a
multidão de voluntários, populares, estudantes, militares,
autoridades, e a tripulação dos navios nacionais e estrangeiros
surtos no Tejo. O espectáculo, como o descreveu Castilho, na
“Revista Universal Lisbonense” (Obras compl., vol. 42), era medonho:
– «rolos de fumo negro que, torcidos, espedaçados e abertos em
grandes florestas de nuvens, denunciavam que, ajudado do vento
impetuoso de nordeste, o fogo, não só poderia em breve engolir o
edifício que o borbotava, mas algum largo trato da povoação contígua
e subjacente».
De facto, soprado pelo vento o incêndio recrudescia,
a despeito dos esforços dedicados dos que diligenciavam atalhá-lo e
salvar as preciosidades do ensino, manuscritos, livros,
instrumentos, museus. Ao cabo de 5 horas estava tudo reduzido a um
montão de cinzas, guardado pela tropa, e no qual se procedia às
últimas operações do rescaldo.
O ano imediato de 1844 foi mais terrível ainda. Logo
a 11 de Janeiro, depois da meia-noite, declarava-se fogo no antigo
Convento de Xabregas, em parte do qual estava estabelecida a fábrica
de fiação e tecidos. O povo atribuiu este fogo a origem malévola e
criminosa, chegando a julgar-se que os ingleses, que já nos haviam
queimado fábricas, pretendiam assim destruir o início da
reconstituição da indústria em Portugal. Felizmente, porém, a
fábrica não ardeu, e só a parte ocidental do casarão, que àquele
tempo se destinava a prisão penitenciária, ficou totalmente
destruída, e com ela uns 20 teares ordinários, salvando-se a igreja,
que dividia a meio o edifício, e a parte oriental dele. Transformado
em fábrica de tabacos, o antigo convento padeceu há dois anos novo e
terrível incêndio.
As horrorosas catástrofes da rua da Madalena
Foi porém, em Novembro de 1844, que na malfadada rua
da Madalena se ateou uma das mais horríveis tragédias que nesta
rápida notícia podemos registar.
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Altas horas, quando no prédio, então designado pelo n.º 121, todos
dormiam tranquilos e descansados, sob uma calamitosa noite de
inverno, de vento que rebramia furioso, de chuva que desabava em
cataratas do céu, ao ribombar dos trovões, o incêndio lavrava
surdamente, e só quando as ondas de fumo e o cheiro acre das
madeiras ardidas se elevaram e cresceram, os habitantes espavoridos
despertaram; correm às portas e janelas, e tomadas as saídas pelo
fogo, soltam um alarido aterrador clamando angustiadamente por
socorro.
Vinte e cinco pessoas se achavam ali perdidas; o
bramir da tempestade abafava-lhes as vozes; as ruas desertas, as
casas cerradas; só ao cabo de muito tempo acordaram ao sobressalto
os vizinhos; acodem ao rebate, que logo se produziu, espectadores
impotentes para remediar a iminente catástrofe.
Rompia a alvorada sombria, quando as bombas e
escadas, desnorteadas por toques errados dos sinos da Sé, depois de
perder tempo em caminhadas sem tino, chegam por fim, e em grande
confusão iniciam trabalhos desordenados. As chamas recrudescem, as
escadas faltam; os moradores dos andares baixos descem à rua por
cordas ou salvam-se pelos prédios vizinhos; o resto perece em
tristíssima hecatombe.
Mil peripécias lancinantes, dramáticas, se desenrolam
neste quadro. No 2.º andar, o dono da casa tenta descer por lençóis
atados uns aos outros, mas esta cadeia de salvação não chega a meia
altura, e o infeliz despenha-se e morre; neste momento o sobrado da
sua casa abate engolindo no fogo o resto da família. Chegam as
escadas; não atingem bem o 3.º andar. Perante o primeiro salvador
que desponta ao cimo da escada, oferecem-se duas mulheres aterradas,
a filha e a criada da casa, que numa luta extraordinária de
generosidade debatem qual delas há de descer primeiro, forcejando
cada uma pelo salvamento da outra.
Desce a criada; e a ama, a aflita e gentil menina
vendo subir a alterosa escada o seu destinado noivo, que corria a
buscá-la nos braços vigorosos, sente-se tomada de pejo, e na
diligência de buscar roupas com que se cubra, perece precipitada nas
chamas.
Os moradores do quarto andar fogem pelos telhados,
deixando no incêndio todos os seus haveres. O fogo irrompendo pelas
janelas da traseira do prédio, passava ao lado oposto, destruindo a
casa contígua, que era o n.º 4 da rua da Padaria.
Assinala uma triste fatalidade a rua da Madalena; já
em 28 de Janeiro de 1787, uma vingança de ciúme causara ali horrível
incêndio criminoso, em que pereceram trinta vítimas, e do qual se
conservou longos anos a memória sinistra no espírito de nossos avós.
Foram estes, como o recente incêndio na mesma rua, as
mais horripilantes tragédias do fogo, na cidade de Lisboa!
Os incêndios na Boavista e no teatro das Laranjeiras
Em 1858 ateava-se o incêndio numas carvoarias à
Boavista, onde em 1826 já outro incêndio enorme abrasara e destruíra
a cordoaria e algumas estâncias de madeira. Nas estâncias de Gomes &
C.ª e na tipografia do Arquivo pitoresco se declarou o fogo
de 9 de Dezembro de 1858, reduzindo extensos edifícios a um montão
de ruínas.
Quatro anos passados, a 9 de Setembro de
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1862, pelas 2 horas da tarde, motivado talvez por alguma brasa que
operários soldadores deixaram cair no forro do telhado, rompia
violento fogo no teatro das Laranjeiras, esse recinto onde o
opulento e artista Conde de Farrobo reunira em repetidas festas,
cuja memória se não extinguirá, tudo o que havia de mais selecto na
sociedade portuguesa. Teatro e sala de baile foram pasto das chamas,
que se elevavam em labaredas de vistosas cores, originadas pelas
tintas do cenário que ardia.
Ainda persistem, por detrás do severo peristilo de
cantada, as ruínas daquele recinto elegante.
O fogo do Banco
Citaremos mais alguns destes dramas, ocorridos em
tempos modernos. Em 1863, pelas nove horas da noite de 19 de
Novembro, um dos mais extensos fogos de que há memória, destruiu
quase todo o vasto quarteirão, que ocupava a área desde o Pelourinho
à rua do Ouro, e onde estavam o Banco de Portugal, a Casa da Câmara,
a Companhia das Lezírias, e nos baixos alguns estabelecimentos, como
a pastelaria Coquejo, um chapeleiro, e um forrageiro.
Tudo o fogo destruiu; perderam-se os magníficos
quadros a óleo e ricos panos de Arrás das salas pombalinas da
Câmara; apenas escapou a casa forte do Banco e um prédio à esquina
da rua dos Capelistas, defendido por sólido guarda-fogo do resto do
quarteirão em que estava encravado. Conta-se que no terceiro andar
morava um comerciante
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/ que conseguira fugir, mas ao chegar à rua lembrou-se de que
deixara valores grandes no cofre; subiu quando abatiam os telhados e
ficou soterrado nos escombros.
Outros incêndios na rua do Crucifixo, Chiado e Praça
de Luís de Camões
Quase do mesmo tempo temos nota dos incêndios na
Madre de Deus, antigos paços reais e mosteiro anexo, em 1867, e na
rua do Crucifixo, nas cocheiras da antiga Companhia dos Ónibus, fogo
que se comunicou até à rua Nova do Almada, e onde morreram muitos
cavalos, soltando lancinantes relinchos de dor. Abertas as portas,
os sobreviventes, partindo as cadeias que os prendiam, fugiram em
medonha correria, espavoridos pela cidade.
Sem poder precisar a data, lembraremos ainda o fogo
num prédio ao Corpo Santo, onde havia um hotel, em que um gato se
salvou saltando do 3.º andar à rua, e o corpo de bombeiros praticou
actos de temeridade e valor, dignos de reparo; e o dos hotéis que
estavam no palácio Barcelinhos, ao fundo do Chiado, hotel Gibraltar,
da Europa e dos Embaixadores, que ficaram destruídos, bem como a
fotografia Camacho.
Este fogo, muito notável, porque nos hotéis estavam
hospedados grande número de ilustres estrangeiros, membros dos dois
congressos de jornalistas e de antropologia, que então se reuniam em
Lisboa, os quais todos teceram os maiores elogios ao serviço de
socorros de incêndios, rebentou em 30 de Setembro de 1880.
Tomou logo grandes proporções, e assinalou-se
tristemente pela morte de um bombeiro que caiu à rua do alto das
paredes, e pelo salvamento de uma menina de 18 anos, já sufocada e
atordoada pelo fumo, salvamento feito pelo polícia n.º 103.
No Chiado houve depois outro grande fogo, no prédio
em frente da igreja dos Mártires, onde estava a casa de espelhos e
molduras Varela, e no qual os populares prestaram a princípio
valiosos socorros, como talvez sucedesse no recente incêndio da
Madalena, se não fosse a inépcia da oposição do guarda-nocturno e do
polícia.
Na Praça de Luís de Camões arderam também
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no decénio de 1880 a 1890, o grande prédio ao fundo, propriedade do
falecido e opulento capitalista Monteiro, e outro, entre a rua do
Norte e a rua das Gáveas, causado por uma tocha que ardia na câmara
ardente de um defunto, cujo corpo se achou depois nos escombros
carbonizado.
O fogo da travessa da Palha. Morte de cinco vítimas
Resta-nos ainda, nos apontamentos que se nos
oferecem, falar nos incêndios da rua da Betesga e de S. João da
Praça No primeiro a tragédia foi horripilante, e em tudo parecida
com a da rua da Madalena, excepto no crime. O prédio, de quatro
andares, era o da esquina da travessa da Palha, e tinha no 1.º andar
o grande guarda-roupa Cohen, onde as chamas tomaram pavoroso
incremento, invadindo a escada de fumo sufocante. Deu-se às onze
horas da manhã de 29 de Dezembro de 1887. Os habitantes do 3.º
andar, a família Brandão, pereceram nas chamas. Quando um bombeiro
chegava ao cimo da escada Magyrus, deparou com duas senhoras
trazendo uma delas nos braços um cãozinho, cujo salvamento pediam.
O incidente produziu momentos de hesitação; as chamas
irromperam violentas; o bombeiro recuou, e as senhoras foram
engolidas pelo temeroso inimigo.
Este fogo de 1887 deu origem a longos debates na
imprensa acerca do serviço de incêndios, aposentando-se o antigo e
dedicado inspector Carlos José Barreiros, que publicou sobre o caso
uma Memória do incêndio da travessa da Palha.
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Em S. João da Praça, em 3 de Maio de 1896, foi destruída a grande
fábrica de moagens e a igreja paroquial, hoje reconstruída.
Como se acudia aos incêndios antes do terramoto
Ocorre naturalmente dizer duas palavras mais, acerca
do modo e processos usados no decorrer dos séculos para atalhar e
extinguir os incêndios.
Primitivamente os socorros eram apenas os que a
população dedicadamente sabia ou podia prestar, abafando-se o fogo a
baldes de água acarretada pelos ribeirinhos, que vendiam pela cidade
em cavalgaduras, pelos negros escravos e pelos soldados, marinheiros
e gente do arsenal.
A Câmara tinha depósitos de machados, picaretas e
baldes, que se distribuíam pelos populares. Em 1670 o senado
adquiriu, à imitação, de que lhe constava haver em Paris, escadas
ferradas, compridas hastes de pau, e baldes de couro, e assalariou
30 oficiais de ofícios para, de obrigação, acudirem aos fogos. Era o
início do exército de salvação. Estabeleceram-se-lhes ordenados
fixos de 6:000 réis e 4:000 réis anuais, fazendo uma despesa total
de 104:000 réis por ano, com aquele pequeno exército incumbido por
dever de ofício, de se expor a todos os perigos e trabalhos, para
evitar as confusões que resultavam, como até ali, de só acudir o
povo que mais confundia que remediava. Pedia a Câmara então, que os
artífices da Ribeira das Naus acudissem prontos, e que as justiças
policiassem devidamente o lugar dos incêndios.
Em 1681 a câmara mandou vir da Holanda baldes,
picaretas, enxadas, arpéus e esguichos, o que tudo custou 470$000
réis e foi distribuído pelos bairros, cabendo 50 baldes e 12
ferramentas a cada um.
Só em 1685 se adquiriram cinco bombas, cinco! Que
trabalhavam em toda a cidade, como sucedeu no memorável incêndio do
Hospital Real de 1750, no qual se queimaram duas delas, ficando as
outras muito deterioradas!
Neste incêndio, como nos outros daquele tempo,
acudiam pressurosos – contam-no minuciosas relações, os religiosos
das diferentes ordens, que acarretavam água, em bilhas e quartas, a
soldadesca, a marinhagem, e a mestrança da Ribeira das Naus.
Só em 1714 a Câmara estabeleceu o primeiro regimento
do serviço de incêndios, a
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cargo do vereador das obras (Elementos para a história do
município de Lisboa).
A reedificação da cidade, após o terramoto de 1755,
tendo em vista opor àquelas calamidades sísmicas a maior resistência
possível nas construções, aceitou o nosso sistema de construir,
usado ainda hoje em Lisboa, ligando todo o prédio com um esqueleto
de madeira. Óptimo remédio para os abalos de terra, mas veículo
perigoso por onde o incêndio alastra e invade de alto a baixo um
edifício. Conta-se que se apercebeu logo disso a inteligência
perspicaz do grande Marquês de Pombal, e atribui-se-lhe o dito, ao
aprovar o sistema proposto – «livrem-se dos incêndios que dos
tremores de terra os garanto eu agora.»
Organiza-se o serviço de incêndios no século XIX
Muito depois, sob o novo regime político, a Câmara de
Lisboa, em 1834 desejosa de reorganizar eficazmente estes serviços,
tão atrasados e imperfeitos, criou 3 distritos na cidade,
determinando como se deveriam ordenar os socorros nas respectivas
áreas, entrando no quadro não só as bombas municipais como também as
do ministério das obras públicas.
Muitos edifícios e instituições particulares de certa
importância mantinham bombas suas. Citaremos por exemplo a da Santa
Casa da Misericórdia, que já a possuía ao certo em 1788, servida por
16 homens, e que acudia a qualquer incêndio.
Criadas as
Capatazias,
ou comando do pessoal das bombas, formado na sua quase totalidade
pelos aguadeiros galegos arregimentados por companhias, havia como
medida preventiva a ordem de se conservarem sempre 140 barris cheios
de água, para se acudir de pronto a qualquer sinistro.
Foi por esta época de 1834 que se adquiriram novas
escadas, e se fizeram de lona as primeiras mangueiras de salvação.
Estabeleceu-se a tabela do toque dos sinos nas freguesias, abolida
depois por Carlos José Barreiras.
Aposentado este, foi nomeado em 1889 o novo
inspector, o saudoso engenheiro Augusto Ferreira, a quem se deve a
total reorganização dos serviços, instalação e compra do óptimo
material que presentemente serve, e a orientação disciplinada do
corpo de bombeiros municipais, actualmente formado por 100 bombeiros
de 1.ª e 2.ª classe, 150 de 3.ª e mais 720 condutores das bombas,
exército dedicado de salvação, querido da população lisbonense, que
os estima e aplaude com tanto carinho como aos seus marinheiros.
Forma o batalhão em 33 estações de serviço, munidas de bombas, e de
escadas Magyrus, com tracção animal permanente, e a ele se
adiciona ainda o das beneméritas corporações de bombeiros
voluntários, com duas secções de 50 bombeiros cada uma, e o corpo
auxiliar de salvados.
As medalhas de salvação
Para complemento destes árduos e humanitários
serviços, não bastavam as provas constantes de consideração e de
reconhecimento manifestadas pela população da cidade, a uma falange
de heróis, que tanta vez arrancam à morte horrorosa pelo fogo as
pobres vítimas espavoridas.
Não bastava nem esse reconhecimento, nem os prémios
pecuniários que os regulamentos estabeleceram. Por isso, desde 1852,
se entendeu por Decreto de 3 de Novembro a necessidade de criar a
medalha de salvação, que se destina a ser conferida a todo aquele
que por magnânimo e heróico esforço presta serviços humanitários na
salvação de vidas, em naufrágios ou em incêndios.
Descreveu-as largamente o distinto conhecedor de
medalhística Sr. Dr. Artur Lamas, na sua valiosa e interessante
memória sobre Medalhas de salvação (1905).
É, presentemente, esta a medalha na qual se lê o
significativo dístico – Ao MÉRITO, FILANTROPIA, GENEROSIDADE uma das
condecorações / 414 /
mais respeitáveis, conferida sempre com escrúpulo, como mercê
honorífica, pelos generosos actos de salvação de vidas.
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Vemos portanto que se felizmente a cidade de Lisboa
não teve nunca a lamentar dentro da sua extensa área alguma dessas
medonhas hecatombes que ficaram tristemente célebres, como as do
Bazar de Caridade e da
Comédie Française,
de Paris, como a do teatro Baquet do Porto, ou como a do Clube de
Santarém, ainda assim a enumeração dos seus incêndios mais notáveis,
nesta lista muito incompleta e apenas organizada com apontamentos e
notícias colhidas de relance, constitui um longo sudário de
desgraças sobre o, qual só nos cumpre lançar o véu de uma recordação
compadecida e saudosa como epílogo desta crónica das angústias que
repetidas vezes têm sobressaltado os espíritos da grande cidade, e
enlutado a boa alma do povo de Lisboa.
25 de Abril de 1907
VICTOR RIBEIRO
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