Uma vida entre o café e o atelier – Ramalho
boémio e satírico – Traços gerais sobre o homem e sobre o artista.
Traços físicos e psicológicos – Como o artista
filosofa sobre a vida
Todas as tardes, entre as seis e as oito horas, é
fácil encontrar a alguma das mesas do café Martinho, em palestra
amena com os seus amigos, o pintor António Ramalho.
É um homem robusto e são, de formas esteticamente
proporcionadas, apesar da sua estatura meã sobrepujada por uma
cabeça leonina.
Com o seu grande chapéu mole, arquitectonicamente
acanalado ao meio, quase sempre empinado para a nuca; com a sua
fronte de forma muito especial, desafogada e ampla, delimitada em
toda a sua extensão por uma curva modelar, nascida da intercessão da
pele com os cabelos grisalhos, que parecem uma estriga de prata
fosca; brunida e desfiada; com os seus sobrolhos espessos e fortes,
de um negro retinto, em cuja ondulação vivaz se nos mostram
espetados e serpenteantes, dois ou três cabelos refilões, já
brancos; com os seus olhitos brilhantes e finórios a enterrarem-se
agarotadamente no ádipo das pálpebras papudas e sensuais; com as
suas faces gordas, em que há um não sei quê de abadengo e de
trocista, que lhe é disfarçado pelo farto e bojudo bigode à
Flaubert; com as suas orelhas delicadas e rijas, quase de cor de
morango, de onde irrompe um pasto negro de cabelos, a dar-nos a
evocação maliciosa das orelhas de algum fauno; eis o homem.
Acrescente-se a isto, que, todo este conjunto de
pessoa como que inventada nos fere a retina, logo à primeira vista,
por tão harmónica invulgaridade, e ter-se-á, esquissada, a física
individualidade de Ramalho.
Nada de doentio nem de mórbido, antes tudo saúde e
energia, tudo vigor, nessa criatura que vive exclusivamente para a
arte, numa época em que dizer artista é quase dizer flor de estufa
ou entidade à parte, com seu tanto ou quanto de morbidez adstrita,
uma como que anotação esmaecida e tracejada ao de leve, e a lápis, à
margem da pagina gritante e brutal da fecunda e verdadeira vida...
Calado e quedo, com a sua fisionomia gorducha
embuçada no seu tanto ou quanto de problemática, fugaz misantropia,
gestos e falas mansas de uma indolência de pachá, este homem
passaria por uma entidade muito material, se os seus olhinhos
ridentes, de um brilho muito especial, não nos falassem, lá de
dentro de suas pálpebras, uma linguagem aguda e inteligente, em que,
a clarões da mais espontânea bondade se misturam umas espicaçantes e
agressivas cintilações de investigação finória, como que
inquisitorial.
Apenas fale, Ramalho transfigurar-se-á. Por todo o
seu rosto se espalhará uma radiante expressão de intelectualidade, e
a sua voz coleante, de um arrastado melodioso, far-nos-á lembrar
algum cadenciado, terno marulhar de regato cristalino, brotando da
sua alma límpida e serena. E então, pela conversa adiante, ali se
nos irá mostrando o quadro encantador desse deslize de arroio
serpeando por entre pedrinhas e sarças verdejantes, aqui brincalhão,
na apreciação suave de algum facto
/ 4 / social ou de algum motivo
de arte, marulhante ali, em cachão, algum sarcasmo – amargo,
pedregulho da vida –, mais além, ressaltante, no recorte de algum
recife laminento, – alguma sátira cortante, e tudo para quê? Só para
mostrar, no rasgar das águas, o seu cristal mais puro, iriado pela
luz!
Tal a maneira do artista na sua conversação, porque
afinal, todos os seus pesares, todas as suas mágoas se lhe
transformam na alma em ironia calma, e em quebreira cantante de
musical optimismo.
De modo que, tudo quanto ali entre negro, ainda por
mais lutuoso e triste, sairá radiante e iluminado, como transformado
em policromia de sons, pela paleta do seu fino espiritualismo de
arte.
E assim passa Ramalho a vida, descuidadamente, fora
das suas horas de trabalho, como descuidadas lhes são aquelas em que
labora, porque, enquanto trabalha, tudo por amor à arte esquece.
Naquele hábito que lhe ficou da vida em Paris, ele é
o artista que reparte a sua vida entre o café e o atelier, vivendo
muito a seu modo, com a filosofia de que a vida são dois dias,
que o homem tem obrigação de ser morigerado nas ideias como nos
hábitos, de fazer bem aos outros sem que se prejudique a si e de
respeitar as leis e os cultos, para assegurar a felicidade dos
homens, se já algum dia eles se julgaram felizes, ou que mais não
seja para evitar discórdias e perturbações na tranquilidade desta
curta vida.
E assim, rindo de D. Quixote e não desdenhando o seu
Sancho Pança, vivendo filosoficamente, um tanto no Ecclipsastes;
positivamente na Terra, (especialmente no restaurante e no atelier);
e como artista, um tanto com a natureza, com a religião, e com o
Infinito, pelas lucubrações da sua arte esotérica e progressiva,
ei-lo pela vida adiante, de braço dado com o seu sorriso nem sempre
indefeso, porque às vezes é ele importuno e cheio de atrevimentos
felinos, quando de entre o seu farto bigode, lhe sai tilintante de
ironias a voz que desabrocha em sátira, algumas vezes fulminante
para os seus companheiros de
/ 5 / mesa, porque Ramalho, ao lado do
culto que professa, de bondade e de tolerância para com o próximo,
possui também finuras agatanhantes de gato escaldado, um belo
egoísmo de satânico, e uma incomensurável malícia de Silvano
desconfiado, como bom trasmontano de origem.
No íntimo, porém, Ramalho é o melhor dos homens, e os
seus amigos, se algum não desconfiou aí pela vida fora, foram e são
por ele conservados, com a mais perdurável e soberba das afeições
que possa dimanar de uma alma de boémio e de artista, e por
conseguinte: bondosa e dedicada.
O artista entre os seus amigos – Guerra de palestra
com balas de retórica
À mesa, com Ramalho, reúnem-se no «Martinho» ou no
«Leão» algumas das pessoas que ele mais estima, entre elas uma
pequena parte da elite da arte lisboeta, e que se destaca pela
severidade das suas apreciações, as intransigências
/ 6 / do mais
puro individualismo, e sobretudo, pela cáustica ironia com que
sublinha as conversações.
Vemos nessas reuniões familiares, quase diariamente,
as mesmas caras em que há um rictus entre gracioso e sarcástico, de
homens atreitos às pugnas da vida e da arte, tendo visto passar ante
si mais de trinta anos de sociedade alfacinha, conhecendo-lhe todo o
feitio e todas as manhas, apreciando-a através de um caleidoscópio
de riso, e fazendo, às vezes, curiosas, saudosas digressões ao
passado, criticando, satirizando.
Aparecem ali, entre outros indivíduos, o primoroso
actor Sr. Ferreira da Silva, o ilustre dramaturgo Sr. Marcelino de
Mesquita, o distinto crítico Sr. Fialho de Almeida, o cáustico
ironista Gualdino Gomes, etc.
De todos eles, Ramalho não é o menos animado nem o
menos cáustico. E se, nem sempre a sua ironia pode ser descrita com
vantagem, porque a sua sátira é mais de ocasião e de flagrante e
portanto legitimamente mímica e verbal, não é menos certo que, não
poucas vezes, a intensa e queimante ironia de Fialho tem ido às do
cabo, com alguns dos dizeres do nosso criticado. Não! Que ele
/ 7 /
não fala muito, mas tem um tal jeito de dizer as coisas!
Às vezes, não achando presa à mão, os bons dos
camaradas esgrimem uns com os outros, e então é que é vê-los! Não é
raro algum dos habitués sair pela porta fora, jurando no
incendido das faces e no esfuziar colérico dos olhos, lá com os seus
botões, que lhe não porão a vista em cima, pelo menos durante três
dias! Mas oh! Miraculoso poder da camaradagem e da palestra! Aquilo
passa com os primeiros borrifos de reflexão séria, e no dia
seguinte, lá os tereis a todos, despicando-se encarniçados, como se
foram galos de combate.
Aquele vício de ironia e de disputa ficou a alguns,
do tempo em que uma grande plêiade de artistas, quase todos ainda
hoje vivos, se reunia ali no «Grupo Leão», onde se travavam
polémicas notáveis no género, havendo duelos verdadeiramente
sangrentos entre Ramalho e um estudante da médica, hoje distinto
clínico, Fortunato da Fonseca, satírico consumado, mas que apesar de
tudo, com Ramalho, não as levava a melhor.
Mas, para não demorar muito os que me lerem, na sua
expectativa, e sem pretender fazer aqui registo da serie de anedotas
mais ou menos notáveis, que dariam muito boas páginas,
permita-se-me, no entanto, dar no resumido esboço de estudo de uma
personalidade artística, alguma coisa sobre a sua maneira de ser
satírica.
Três anedotas: – Casado, solteiro e viúvo, ou a
anedota do ai! – Fialho, tomas alguma coisa? – Matadores infalíveis
Um dia estava Ramalho no Martinho, tomando com todo o
seu ripanço o seu café, acompanhado de alguns amigos.
Nisto, entra Fialho, relanceando às furtadelas,
incertamente, os seus olhinhos vagabundos e dissimulados de
espertalhão e de manhoso, naquele olhar muito especial com que ele
vê tudo, fingindo nada ver... E ou por que ele não tivesse visto o
artista, ou
porque não estivesse para o cumprimentar, foi sentar-se
a outra mesa, e começou falando, com os que a ela estavam de umas
decorações
/ 8 / que deviam dentro de pouco ser encomendadas. E
levantando a voz, Fialho, naquela maneira cintilante e persuasiva
que todos mais ou menos lhe conhecemos, e em que cada palavra tem já
o seu lugar marcado, disse: «Ora, essas decorações deviam, a meu
ver, ser feitas por um artista de pujança, com o verdadeiro culto do
desenho e da anatomia, em suma, por um decorador a valer, como
Ramalho. O Ramalho é, a meu ver, o pintor tipo para o caso de que se
trata.» Calou-se Fialho, e nesse instante o artista, que estivera de
ouvido à escuta, ao acabar de ouvir o elogio,
/ 9 / inclina a cabeça
para o lado, num gesto muito seu, e piscando os olhinhos, a mão
espalmada e estendida, grita de lá ao crítico, com umas falinhas
mansas, muito sardónicas:
– Ó Fialho, tomas alguma coisa?
O efeito produzido pela piada e principalmente pelo
tom em que foi dito causaram o maior efeito, tanto mais que Fialho,
voltando-se, teve de agradecer a oferta, muito solenemente.
De outra, vez estava o artista com seus amigos a uma
das mesas do mesmo café. Entre os interlocutores havia três que se
lamentavam muito da má sorte, que os perseguia. Queixava-se um da
sua viuvez, de uma vida quase sem eira nem beira, sem carinhos nem
afagos; um outro lamentava-se da vida sensaborona de solteirão, aos
baldões dos estranhos; um terceiro vociferava pela sua vida de
casado, vida acorrentada a visitas, a etiquetas, a convenções, a
despesas demasiadas, cuidados pelos filhos, o diabo!
Ramalho, que não via nos três razões muito cabais
para tanta tristeza, deita-lhes um olhar muito enternecido, e quando
eles esperavam, talvez, ouvir da sua boca alguma palavra compassiva,
levanta-se ele, põe o chapéu devagarinho, e olhos postos no céu,
entreabrindo os lábios num gesto seráfico de puro frade cuja alma
quisesse emigrar para o seio do Senhor, solta um ai muito comovente
e dolorido, e saindo, deixou os três tão desconcertados, que, quem
estava próximo não pôde furtar-se a rir.
Um dia destes, ao procurá-lo para que me dissesse do
paradeiro dalguns de seus quadros que eu apenas conhecia de
catálogo, falando-lhe no picaresco caso disse-me ele:
– Que queria o meu amigo que eu fizesse perante
desgraças tão irremediáveis? Eles representavam os três estados,
casado, solteiro e viúvo; não havia mais nenhum a dar-lhes, restava
carpir aquela triste sorte. Ora eu, como para carpideira nunca tive
jeito, dei um ai para os aliviar...
Se não temesse aborrecer os leitores com o
prolongamento da prosa deste artigo, muitas anedotas interessantes
lhes poderia contar. No entanto, não me propondo abusar, permito-me
descrever mais uma:
Estava um dia jantando no Leão de Ouro, segundo o seu
hábito, Ramalho, e acompanhavam-no, como quase sempre, à mesa, em
cavaqueira, alguns artistas. Entre os convivas contava-se um médico,
ao que parece muito célebre ao tempo, pelos prodígios da sua
clínica, porque doente que lhe caísse nas unhas, era com certeza
homem morto...
/ 10 /
Discutia-se uma das últimas toiradas e a
conversação recaíra naturalmente na apreciação dos melhores
cavaleiros, os melhores espadas e lidadores.
Uns eram pelo Espartero, outros pelo Reverte e as
opiniões desencontravam-se e dividiam-se, quando de repente o
artista faz menção de tomar apalavra, e numa grande seriedade diz:
– Eu, matadores infalíveis, só conheço dois: o
Reverte, e aqui o nosso Dr. X.»
Algumas considerações ao correr da pena sobre a vida
de Ramalho e a sua obra como generalidade.
Nem sempre a vida de Ramalho foi assim alegre e
descuidada.
Os primeiros trâmites da sua existência foram uma
verdadeira senda de espinhos; esta, porém, foi curta, e a alma do
artista, vendo-se acolhida benevolamente, cristalizou numa gratidão
para com o mundo, tendo dele, através de todas as ideias e
vicissitudes, uma visão optimista que, longe de o prejudicar o
engrandece, porque o faz tolerante e bondoso, como na arte o ensina
a ser proporcional e belo. Ocuparia bastante tempo e espaço, um
estudo detido sobre esta inconfundível, típica organização de
artista, e não poderia sintetizar-se no curto campo das colunas de
uma revista, nem é, por ora, esse o nosso desideratum;
contudo, publicando nestas páginas a reprodução de alguns dos seus
quadros, necessário se torna o fazer algumas considerações sobre a
sua obra.
Ramalho tem a sua vida na mais pura e completa
correlação com a sua arte. Esta é sentida e sincera, como a sua
personalidade é distinta e bem marcada. Vida e arte irmanam-se tão
bem nessa esotérica criatura, que uma e outra são nela inseparáveis.
Como trabalha ele? Por que processos visiona e dá
corpo aos seus trabalhos? Eis uma pergunta a que seria muito difícil
responder. Na opinião de alguns, Ramalho tem passado por mandrião.
Puro engano. O contrário atesta a sua obra enorme, em grande parte
desconhecida, devido ao feitio retraído e modesto do artista. Tal
opinião, porém, se pode radicar-se, por momentos, naqueles que só de
longe lhe tenham visto a obra, cairá pela base, depois de mais
demorada análise. A tal respeito, condenam-no, é certo, as
aparências, pela morosidade com que trata os seus quadros. O que ele
é, é um artista de produção morosa, como todos aqueles cuja alma é
insaciável
/ 11 / de perfeição. Sequioso do seu ideal, em vez de
apressar-se a dar corpo à sua obra, não quer correr o mais leve
risco de a fazer soçobrar, e dia a dia procura aproximá-la mais do
seu ideal de Beleza. Artista puro e convicto, fazendo da arte o seu
único cuidado, sem aspirações a enriquecer pelo pincel, sem ambições
nem ganâncias materiais – porque como ele diz: «não se pode levar
para a cova um rio de oiro, nem a alma levará para o infinito
tesouros nem palácios», artista puro e convicto, – dizia eu – com
aquele feitio boémio de serenidade e de descuido, sem a mais leve
ambição de vanglória, e creio até que nem de glória, porque, como
ele também diz com o Ecclesiastes: tudo é vaidade, o seu ser
integra-se e concretiza-se todo no seu único ideal, o da pura arte.
Daí o encontrarmos nas suas telas essa serenidade, essa firmeza,
reveladoras do mais acrisolado estudo, e em que se nota a factura
por um caminho recto e sem tergiversações, na grande viagem da sua
imensa, insatisfeita, e sempre calma aspiração.
A característica mais geral da sua obra, a que
sobressai através de todas as outras, é a harmonia mais completa,
dada por uma sábia e muito bem escolhida atenuação de cores, pelo
desenho firme e consciente, feito com rasgada energia, como a
característica geral do homem é, através de todas as vicissitudes da
vida, a harmonia das ideias e aspirações, também atenuadas por essa
filosofia de desprendimento muito seu, e a energia com que as
mantém, emolduradas no esoterismo doce e firme em que a sua vida,
ainda nos momentos mais amargos, cristalizou, sempre fina, delicada
e optimista.
Na decoração, Ramalho transporta se com toda a alma à
situação dos assuntos, de modo que, sendo a sua maneira artística
sempre a mesma, em digressão através dos seus quadros a nossa vista
nunca se monotoniza, antes se distrai sempre, pela empolgante
diversidade que o seu pincel imprime à tela, vestindo-a e variando-a
com as nuances mais raras, e os mais harmónicos e sentimentais
coloridos, em que ao lado da vida palpitante há um envolvido doce
que a suaviza idealmente.
Na paisagem o artista afirma-se com a mesma
dulcificante suavidade, e os assuntos que escolhe e executa
participam da doce e embaladora melancolia do seu envolvido de
atenuação; a sua paisagem é vigorosa e sentimental, preferindo o
pintor as concentrações outonais da natureza às cores gritantes que
a ferem e irritam.
O seu pincel, irrequieto e nómada, imagem do espírito
vagabundo do artista insatisfeito, vai com a mesma facilidade da
paisagem para a decoração, da decoração para a pintura de género, do
impressionismo para o realismo, sempre livre, intenso e
característico.
Como o artista é variável nas suas modalidades de
arte, assim o homem é variável na sua vida. A não ser à hora de
palestrar com os seus amigos, Ramalho tanto poderá ser encontrado a
jantar às duas, como às sete, como à meia-noite, e não lhes garanto
que seja em ponto. Também, como artista, hoje o encontrareis
trabalhando na Escola Médica de Lisboa, amanhã no Grande Hotel do
Buçaco, e qualquer dia no Japão, na América, ou em casa de Deus
verdadeiro.
Às vezes, repentinamente, Ramalho desaparece, e então
daríamos um doce a quem
/ 12 / lhe pusesse a vista em cima. Não é
raro ouvir nessas ocasiões entre os seus amigos: – Onde estará
Ramalho? – Que será feito de Ramalho? Onde diabo se meteria o
Ramalho?
Consultado sobre o caso, no primeiro dia de
aparecimento, se nos disser que foi à Lua, teremos que acreditá-lo,
porque na sua jocosa afirmativa, desenvolverá um talento à Bergerac.
No retrato, o artista faz gala em nos dar em vez dos
fundos neutros os historiados, para que não se diga que para fazer
sobressair os seus retratos precisa de recorrer a chavões.
É uma espécie de desafio artístico que o acompanha
desde as suas primeiras obras, com o qual ele se diverte a domar a
arte, tornando-a mais difícil propositadamente, para depois com ela
esgrimir, para degladiar-se com o dragão que está à entrada do
palácio encantado, para o vencer, para lá entrar triunfante!
E como generalidade, em todas as suas telas, uma
maneira técnica de dar os toques, a um tempo sóbria e vitalizante,
fazendo ressumar nas suas figuras a vida, sem que nelas se veja
ressumar a tinta.
Fino observador da natureza, quebra continuamente com
tudo o que possa parecer-lhe artificial, e criticando ao mesmo tempo
que pinta, não larga de mão uma das suas obras enquanto não haja
posto para ali toda a sua ciência e vitalidade artísticas.
Finalmente, pela mesma forma que a sua vagarosa e suave maneira de
ser psíquica nos revela, na conversação, um grande e original
espírito, também a sua detida e concentrada maneira de artista nos
revela um original e inconfundível pintor
EUGÉNIO VIEIRA
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