índice do almanaque
 

Virado a Sul

 

Nuno Rebocho

   
1.

Virado a sul

no sentido das boletas

fixo o rumo

(como as frágeis corvetas)

aos plainos da solidão

 

e vou indo – para o sul

como as cegonhas vão.

   
2.

Virado a sul

com o corpo entreaberto

desfaço a mágoa na água

do concreto

 

e descubro o som

em algueirões de paciência

enquanto o tomilho chora

a incontinência desta ausência.

   
3.

Virado a sul

onde judeus fomos

e com lagartas de vício nos lavaram

(namoravam os corvos os chaparros).

aqui – no sul

nos arderam os madeiros

da intolerância.

mouros fomos

e nos arderam

em autos de circunstância.

   
4.

Virado a sul

atendo à chamada da charneca

quando a carraceira

lastima a seca

 

mas não supliques

nem a chuva nem a dádiva

 

e cresta-te no barro:

muito sofre o sobro

para não ser chaparro.

 

não supliques, aprende

a cerzir o canto

que o caldo da tua noite

é o dia do teu pranto.

 

aprende com o tordo

a esgarçar a claridade

até que o girassol

corole a liberdade

 

e a charneca desfibre

as papoilas em negrazul

e apronte a mortalha

de viver a sul.

   
5.

Virado a sul

descuro de asas rotas

a angústia das gaivotas.

 

vou por aí.

e lá chegando:
 

ó pezinhos de coentrada comidos em estremoz

ó sopa da panela festejada no chaparral

ó perninhas de rã no afoguear do couço

ó caldeirada de bacalhau às portas do cabeção

ó ensopado de borrego nas escapadelas da vidigueira

ó cachafrito de coelho nos derrames de marvão

ó sopa de cação amoirada em beja

ó migas carvoeiras

ó arroz de lingueirão

ó chouriço de barrancos

ó queijo de ovelha de partir os dentes

ó muges grelhados à beira guadiana

ó tordos fritos em tasco de monforte

ó azeitonas amurradas nas sedes de arronches

ó buchos de porco

ó sopas de miúdos no quente da matança

ó mioleiras à moda da beirã

ó túbaros.

 

virado a sul

por onde eu vou

levo mais olhos que barriga.

não devias ter dito – david –

que era ao sul.

o sul

é o caminho das experiências.

   
6.

Virado a sul

sonhei as armas e seus arados.

foi o tempo da monda

– é tempo de finados.

 

sonhar outra vez o que o sonho desfez

entre lençóis de ilusão

é ter o inverno maduro

para tristezas de verão.

 

mas eu vejo (porque vejo)

que florescem as oliveiras

e logo os sonhos se renovam

de diferentes maneiras.

 

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