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A Banalização da Dor

 

Luís Jordão

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1

O avô foi conhecido por Manel da horta, talvez porque aquela família, tanto quanto se sabe, desde sempre viveu (dela e para ela) numa horta. Ao pai, lembro-me bem dele, chamavam-lhe Chico do Manel da Horta. Ao meu amigo de várias décadas, e há outras tantas afastado do seu lugar de origem, de seu nome completo Manuel Francisco da Alcaria Velhinho, ainda hoje, prova de que não foi totalmente esquecido, os amigos de escola e brincadeiras, tal como as pessoas mais velhas, chamam Manel da Horta. De salientar, que essa horta já não existe, e que foi o facto de ela já não dar o que dava, ser longe, e as pernas tal como o peito de Chico da Horta não serem as mesmas de outrora, que levaram o que restava do aglomerado familiar, com relutância e alguma (para não dizer muita) dor, a abandonar as suas raízes, radicando-se nos arredores de Lisboa, mais concretamente na margem esquerda do Tejo, já vai para meio século.

2

Como em quase todas as povoações do interior do Alentejo, predominam as casas baixas caiadas de branco, muitas com barra junto ao chão em tom de ocre ou azul, aqui e ali com o mesmo espaço preenchido por pedra da região, assente com mais ou menos gosto. No meio de toda esta harmonia há algumas habitações de primeiro andar, a meu ver em excesso e algumas a destempo, e, muito mais grave, terríveis e aberrantes excrescências em forma de varanda ou parecendo pombais, e outras que tais.

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O piso das ruas, como em quase todo o país, salvo raras e honrosas excepções, está estupidamente impermeabilizado com betuminosos, levando a crer que os autarcas, ou outros mandantes, não entendem que é feio, em alguns casos até chocante, e, sobretudo, contranatura.

O tamanho da povoação aumentou. Em contraponto, estranhamente se não pensarmos muito, o número de pessoas diminuiu. As adegas/tabernas, passaram a ser qualquer coisa a que chamam SnaK Bar. Baptizaram as mercearias de mini-mercados, tudo profusamente decorado com horríveis balcões e prateleiras de metais cromados pejados de espelhos. É óbvio, que valem em tudo isto, felizmente, como sempre, as excepções.

3

Em todos os regressos, o meu amigo Manuel, no primeiro impacto, era assaltado por estranhos e desencontrados sentimentos: alegria, satisfação, recordações (boas e más), estranheza, desencanto... , todos em catadupa.

Desta vez a ausência tinha sido maior, mas a permanência também o foi. Correu tudo, Freguesia após Freguesia, rua por rua, devagar, cumprimentando um ou outro conhecido, aqui e ali trocando impressões/notícias, a maior parte de pura e simples circunstância. Lavou os olhos e a alma (como diria Victor Paquete) na vastidão levemente ondulada da planície junto à fronteira. Petiscou e bebeu vinho novo em muitas tabernas. Ouviu cantar e cantou, mesmo consciente de que não o sabia fazer. Também bebeu e fumou sozinho, todas as noites, sentado junto ao lume.

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Hoje, dia da abalada, no ponto mais alto do Concelho (o Manuel da Fonseca chamar-lhe-ia o cerro maior), observando a esmagadora paisagem, as casas, especialmente os seus telhados e as grandes chaminés de aspecto fálico, reviu tudo, até as recordações vistas no fundo de cada copo bebido sozinho, e chegou à simples conclusão de que não gostou do resultado do balanço final, no que toca às gentes. Achou-lhes uma intencional ausência de memória, em muitas uma falta de inteireza que o velho Chico do Manel da Horta não acreditaria alguma vez ser possível naquele recanto, às vezes parecia até que lhes tinha sido feita uma lavagem ao cérebro.

E o meu amigo Manel da Horta (o neto) veio-se embora, com medo de que se prolongasse a estadia, ainda chegava à conclusão de que os seus conterrâneos, que até já acreditavam na autenticidade da figura caricata do gordo barbudo (americano cocacola) vestido de vermelho a que tem o desplante de chamar pai natal, também tinham aderido, definitivamente, (consciente ou inconscientemente) ao grupo daqueles que, em nome de um desequilibrado e inescrupuloso desenvolvimento, defendem, sem qualquer tipo de restrições, a globalização total e amorfoseante.

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