SENHOR!
OS abaixo assinados,
proprietários de terrenos acessíveis às marés, na ria de Aveiro,
terrenos que desde longínqua data pagam contribuição predial e estão
inscritos nas matrizes desde que elas foram criadas,
e cuja posse foi obtida por legítimas compras ou por herança, achando-se
o domínio particular documentado em muitos deles por títulos autênticos
de origem remotíssima, vêm respeitosamente, e com o intuito de se
pouparem a futuros pleitos, despesas e inquietações de espírito,
solicitar a atenção de Vossa Majestade para o objecto que seguidamente
passam a expor.
Há na ria de Aveiro desde tempos imemoriais um regime
de propriedade particular com o qual a legislação moderna,
posterior a 1866, parece estar em desacordo. Desde remotos
séculos, que por motivo de doações régias, um grande número
de terrenos que constituem a parte alternativamente coberta e descoberta
pelas marés, e mesmo alguns que as marés nunca descobrem, passaram ao
domínio particular. Nos tombos das casas nobres que primitivamente ou
sucessivamente
os possuíram, foram descritos miudamente com as quatro
confrontações, sendo as extremas, umas vezes outros prédios
particulares, outras vezes esteiros, valas ou regueiras, outras
finalmente algum dos grossos veios de água funda a que na ria se dá o
nome de Cales. Em algumas destas descrições a minuciosidade chega ao
ponto da medição exacta das extremas, expressa em varas, trabalho aliás
difícil em terrenos
sempre lamacentos e muitas vezes cobertos de água. E, como
/
180 /
é sabido, estes tombos não eram simples escritos de carácter
particular, mas sim livros de arquivo de documentos autênticos oficiais, lavrados em vistoria, sob a presidência de um
juiz de direito, de nomeação régia e expressa para esse fim.
Tendo isto em vista, poder-se-á agora, depois de decorridos séculos sobre a época em que as concessões foram
feitas, afirmar em nome do direito que esses terrenos, cuja
posse por particulares tem sido mantida, não constituem propriedade privada por serem abrangidos pelo colo do máximo preamar das águas vivas (artigo 1.º,
n.º 1.º dó decreto de 1 de
Dezembro de 1892), quando, além de tudo, a referida posse
tem sido até estes últimos tempos corroborada e sustentada por uma série de actos todos acordes, uns dimanados
directamente dos reis no tempo do antigo regime; outros,
posteriormente, dimanados do Estado, outros finalmente,
provenientes das autoridades locais, tanto judiciais como
administrativas?
Para mais fácil compreensão porém do que temos a
expor, permita-nos Vossa Majestade que digamos algumas
palavras sopre a formação geológica da ria, e sobre o modo
por que os terrenos dela têm sido sucessivamente aproveitados pela actividade do homem.
Primitivamente esta parte do litoral da península, que
se estende desde Ovar até Mira, estava longe de ter a configuração que actualmente apresenta. Entre estes dois pontos
extremos uma grande reentrância da costa se oferecia aberta
às águas do oceano, que deste modo não só iam banhar
directamente os relevos abruptos que ainda hoje se vêem
junto a Vagos, Ílhavo, Aveiro, Esgueira, etc., mas penetravam mais e muito mais no interior das terras pelos numerosos vales que convergiam para esta espécie de baía. Pela acção
combinada das correntes oceânicas, e dos ventos do
largo, um cordão litoral de dunas a pouco e pouco se formou,
rectificando a costa entre os dois pontos extremos acima
referidos, e transformando em bacia interior o que pouco antes fazia
parte do oceano. Mas, consecutivamente a este
trabalho natural da deposição de aluviões marinhas, e tão
depressa as águas da bacia adquiriram a suficiente quietação,
um outro trabalho da natureza principiou a ter lugar
− o da
deposição das aluviões fluviais. As águas extremamente
sedimentosas dos diversos regatos e ribeiros e nomeadamente as do rio
Vouga, as quais, umas e outras, se vazavam até
então directamente no Atlântico, onde os seus detritos se
dispersavam pela acção das correntes marítimas, passando
depois a vazar-se nesta larga bacia de águas relativamente
quietas, encontraram de pronto as mais favoráveis condições
para a decantação dos seus sedimentos; a pouco e pouco se
/
181 /
foi fazendo a exalção dos fundos, se foram preenchendo as
anfractuosidades dos vales, e, sobretudo na zona de vazão do Vouga, os deltas foram aparecendo à flor da água em grande extensão
e em grande número. Mas, pelo próprio mecanismo da sua formação, tais
terrenos não podiam atingir nunca o nível máximo das águas. O facto é
geral e está de há muito bem explanado pela Geologia. Nesta bacia em
que, pela sua grande extensão, a amplitude das marés é pequeníssima,
pois é em média de 0,75 metros, e onde pela mesma razão pouco se faz
sentir a acção das cheias, a elevação dos terrenos acima das águas de
meia enchente não podia ser grande. A parte mais alta dos deltas da ria
acha-se em regra 20 a 30 centímetros abaixo dos
preamares de águas vivas de equinócio. E esta a cota a que ficaram as
planícies horizontais que constituem o que nós com mais ou menos
propriedade poderemos chamar o plató dos deltas; mas daí estes
depósitos de aluvião prolongam-se a distância, em plano muito suavemente
inclinado, até desaparecerem definitivamente no seio das águas de máximo
baixamar. Devemos porém observar que os referidos depósitos, os quais
naturalmente tiveram princípio na mesma época, não têm tido todos a
mesma marcha: uns subiram apenas até próximo do nível do preamar de
águas mortas, e, ou estacionaram, ou pouco têm progredido; outros ao
contrário, tendo atingido a cota máxima, têm sucessivamente perdido a
coroa ou plató, reduzindo-se dessa maneira às condições de nível dos
antecedentes. Digamos porém, o que para o nosso ponto de vista é
importante consignar, que estes dois factos, de interrupção e retrocesso
do trabalho da natureza, foram determinados por uma causa não natural,
−
a abertura, a que se procedeu no princípio deste século, da barra
actual, 10 quilómetros ao norte da antiga, e que, situada quase em
frente dos deltas do Vouga, originou nas águas que os banham um regime
de correntes diverso do anterior.
Consideremos agora os terrenos de aluvião acima descritos sob o ponto de vista da sua produtividade e das suas aptidões
industriais.
Colocados, como vimos, a cotas de nível diversas, a saber: uns banhados
só pelas marés equinociais (1.º grupo), ouros banhados 12 a 15 dias em
cada mês pelas marés de águas vivas (2.º grupo), outros banhados mais
ou menos por todas as marés, mas só descobrindo nos baixamares de
quadratura, que, ao contrário do que sucede no mar, são dentro da ria os
mais pronunciados (3.º grupo), outros finalmente sempre submersos,
embora em regra cobertos por pequena espessura de água (4.º grupo),
estes diversos terrenos que assim acabamos de classificar e que, com
excepção
dos do 4.º grupo, se designam em Aveiro pelo nome genérico
/
182 / de
Praias, acham-se nitidamente diferenciados pelas
suas aptidões de produção ou de exploração.
Os do 1.º grupo constituem as chamadas Praias de
junco, por ser o junco a planta que neles se dá com maior
vantagem. O junco tem uma grande importância agrícola
como adubo das terras depois de ter servido para camas de
gado. O que atinge maior altura é também utilizado para
a confecção de cordas e de esteiras. Alguns proprietários têm dado tão
grande apreço à cultura desta planta, que têm
criado juncais artificialmente, em terrenos a uma cota de nível
inferior, construindo para isso diques submersíveis providos
de comportas reguladoras do excesso das águas das marés.
Os terrenos do 2.º grupo são, como tipo de cultura,
ocupados pelas chamadas Praias de bajunça, planta que
carece das condições de irrigação que lhe proporcionam
estes terrenos pela cota a que se acham. E também grande
o emprego que a agricultura faz da bajunça para camas de gado, e
consecutivamente para adubo das terras, mas o seu maior valor
provém-lhe de ser utilizada na indústria salineira para cobertura dos
montes de sal.
Os terrenos do 3.º grupo constituem o que localmente
tem o nome de Praias de moliço, sendo a palavra moliço
o termo genérico com que se designam as diversas variedades de algas que
eles produzem banhados pelas marés. Incontestavelmente são estes os mais
interessantes de todos os
terrenos da ria. São-no pela sua produção natural, o moliço,
e são-o ainda mais por ser nos terrenos a esta cota que se
estabelecem as marinhas de sal. Como é sabido,
«para que se possam construir marinhas nas praias, é indispensável que
estas fiquem descobertas na baixamar, e completamente alagadas na preamar: não tendo este meio termo de
nível
é impossível escoarem e tomarem água naturalmente quando transformadas
em marinhas». (Museu Tecnológico, pág. 53
−
Monografia sobre as marinhas
de Aveiro, pelo Dr. MANUEL
DA MAIA ALCOFORADO, 1877).
O moliço é empregado exclusivamente no adubo das terras,
e o seu
comércio, bem como a indústria da sua
colheita, são hoje consideráveis. Pode porém afirmar-se
sem receio de errar, que primitivamente, isto é, ao tempo
em que se fizeram as concessões a que acima nos referimos,
estes terrenos que hoje se denominam praias de moliço,
tinham um valor insignificante. Os maus caminhos e a falta
de estradas tornavam impossível o transporte deste produto
a grandes distâncias, e em consequência, o seu emprego
limitava-se a uma estreita cinta de terrenos nas margens da
ria. Hoje ao contrário é levado ao longe, não só em carros por numerosas
estradas, mas até por um caminho de ferro
/
183 /
estabelecido expressamente para este fim entre o Areão e Mira. As ditas
concessões eram pois recebidas e guardadas pelos respectivos proprietários, não tanto pelo interesse em
possuir terrenos produtores de moliço, como e principalmente
pelo de ficarem habilitados a construir salinas. Se desta
segunda vantagem fizeram uso bom ou mau, di-lo o desenvolvimento que em Aveiro tomou desde séculos a indústria
do sal. No ano 959 já havia salinas na ria de Aveiro, como
se verifica pelas seguintes palavras do célebre testamento de
Muma Dona, datado do referido ano: «TERRAS IN ALAUARIO ET
SALINAS QUE IBIDEM COMPARAVIMUS» (Diplomata et Chartae dos
Portugaliae Monumenta Historica, pág.46). Desde então,
ou de época mais recuada ainda, os terrenos deste 3.º grupo,
terrenos que, como dissemos, são diariamente cobertos pelas marés, foram
a pouco e pouco, e à medida que os meios
económicos dos seus proprietários o permitiam, sendo adaptados e aplicados ao estabelecimento de salinas. Assim, devido
à actividade e iniciativa dos particulares, foi crescendo o número destes estabelecimentos, e a tal ponto que, já no
reinado do rei D. Afonso IV, atingia a cifra de 500. Mas,
com o andar dos tempos, factos de ordem diversa tinham
de alterar este movimento, imprimindo-lhe alternativas de
retrocesso e de avanço, que se têm continuado até aos nossos dias.
A fortuna da indústria salineira está e tem estado sempre
na rigorosa dependência da situação mais ou menos próspera ou precária
do canal da barra. São inteiramente elucidativas
a este respeito as considerações escritas há 19 anos pelo
malogrado Dr. MAIA ALCOFORADO na monografia já citada:
«Se ela (a barra), diz o referido autor a pág. 49, se conserva larga e profundamente rasgada, as águas do Vouga, as do
Antuã e as dos rios e ribeiros afluentes têm saída fácil, e no fluxo a
ria enche-se de água do mar com o necessário grau de
salsugem, para que o seu clorureto de sódio possa ser extraído
por meio das marinhas. Se, pelo contrário, a corrente da barra
é diminuta, as águas doces conservam-se estagnadas na grande
bala, e, predominando sobre as salgadas, tornam inteiramente
impossível qualquer exploração salífera. Dada esta hipótese,
as marinhas são abandonadas; o comércio marítimo paraliza-se
por falta de vias de comunicação; e a ria transforma-se num paul vasto e
infecto. As febres paludosas desenvolvem-se neste imenso pântano, sempre
enxarcado de água esverdinhada e
putrefacta: as intermitentes assaltam as povoações ribeirinhas
e dizimam às centenas as vidas de seus habitantes. Estes factos
têm-se repetido infelizmente algumas vezes: apontarei apenas
um, porque deu ele origem aos trabalhos mais importantes que se têm
feito no porto de Aveiro. No meado do século XVII
principiou a barra a deslocar-se para o sul, na direcção de Mira,
onde chegou por fim, demorando-se por este modo afastada da
linha perpendicular à foz daquele rio mais de 15 quilómetros.
. . . . . . . . . . . . .. A indústria salineira, e o comércio marítimo,
/
184 /
que tinham feito de Aveiro uma povoação florescente, começaram então a decair de um modo tal que depois de meado o
século passado estavam quase abandonados. As marinhas, que
se estenderam outrora desde Vagos e desde a Costa Nova até
Estarreja, em número superior a 500, ficaram reduzidas apenas
a 178.»
Vê-se pois que o mau estado da barra, todas as vezes que se repete, tem
sobre a indústria salineira uma acção
duplamente desastrosa: não só o sal deixa de ter saída em
consequência da suspensão da navegação marítima, e o preço
baixa consideravelmente, mas, sendo a quantidade de água do
mar entrada pela barra insuficiente para dar às águas de toda a zona salineira da ria a salsugem necessária para o trabalho
de salinação, um certo número de marinhas não pode fazer
sal, outras o fazem em quantidade não suficientemente remuneradora. Nessas condições é preferível aos proprietários
explorar de novo nos respectivos terrenos a produção de
moliço: destroem os muros de vedação da salina, para que
as águas das marés possam entrar livremente, e bem assim
os barcos destinados a apanhar e a transportar o dito moliço.
Estas alternativas, digamos mesmo crises, da indústria salineira de Aveiro não são só dos tempos antigos; em maior ou menor
escala, mesmo no presente século, tiveram lugar
mais de uma vez. Sirva de exemplo a marinha hoje denominada «Garra» situada entre a cale de Marta e a cale do Espinheiro, que duas vezes durante este século deixou de ser
marinha para voltar a ser praia de moliço. Neste estado
pertencia em 1844 à Santa Casa da Misericórdia que, por
escritura feita nas notas do tabelião João António de Morais,
a aforou a João José Fernandes a 28 de fevereiro do referido
ano, e este último, algum tempo depois, mandando reedificar os diques, a
transformou mais uma vez em salina. Os casos
análogos sucedidos em outras praias da ria contam-se por
centenas, o que se torna evidente pela simples consideração
das cifras acima transcritas: na crise do século passado o
número de marinhas desceu de 500 a 178. Muitas foram
depois reconstruídas, mas o número de 500 não tornou mais
a ser atingido. Actualmente existem 325. No primeiro ardor
de construir marinhas muitas se fizeram em lugares menos
convenientes, umas por muito distanciadas da barra, e portanto fora da zona de águas suficientemente salgadas, outras
por má qualidade, ou falta de espessura, de solo argiloso.
Por estas razões, e porque ao mesmo tempo os moliços iam
adquirindo valor crescente, um grande número dessas marinhas não se reconstruiu mais, e os terrenos em que existiam
são explorados pelos respectivos proprietários como praias
de produzir moliço. Em outras os diques foram conservados,
e o terreno explorado na produção de junco e de bajunça.
/
185 /
Do simples estudo que acabamos de fazer destes terrenos denominados
praias, decorreria desde já, e mesmo na ausência de quaisquer
documentos, a prova evidente da existência na ria de propriedade
particular coberta diariamente pelas marés. Se o facto da destruição dos diques de uma marinha fizesse
perder ao terreno ocupado por essa marinha o seu carácter de propriedade
particular, é evidente que nunca proprietário algum destruiria semelhantes diques. E nem de
outra forma podia ser, visto que, inversamente, o direito de construir
marinhas se tem fundado sempre no facto anterior da posse do terreno no
estado de praia. Mas há mais: Quando se constroem os diques ou muros
exteriores de uma marinha, é de uso e costume, desde tempos imemoriais,
fazer
esses muros, não pelas linhas extremas do terreno que pertence ao
proprietário, mas sim por dentro dessas linhas, ficando por fora uma
dupla faixa de praia da largura total
de 3,50 metros aproximadamente, a qual, na terminologia técnica,
tem o nome de pé e baldeação. O pé é uma tira de praia mais estreita que
serve de base ou apoio exterior ao muro, e a baldeação, de largura dupla
do pé, é a faixa donde saem as lamas, para a construção ou reparação do
mesmo muro. Na linguagem dos marnotos há até para significar este facto
uma expressão consagrada: «Cada muro tem por fora 5 palmos de pé e 10 de
baldeação». O Dr. MAIA ALCOFORADO, quando descreve a construção das
marinhas (lug. cit., pág. 56) define-a: «uma faixa de terreno de 3,50 m.
de largura, que se deixa em volta da marinha, com o único fim de tirar
daí as lamas precisas para a construção».
Mas, na demonstração da existência deste regime especial de propriedade, desnecessário se nos torna insistir com provas
deste género, quando para o mesmo fim não faltam documentos autênticos,
antigos e modernos. Teremos adiante ocasião de os passar em revista.
Para concluir porém as nossas considerações sobre os terrenos da ria
resta-nos ainda falar do 4.º grupo, isto é, daqueles que por se acharem
a uma cota de nível inferior, nunca são descobertos pelas marés.
A posse por particulares dos terrenos deste grupo
funda-se igualmente em razões e direitos que não podem ser refutados,
pois que se acha documentada por títulos antigos: convindo notar porém,
que nem todos devem à mesma origem a cota de nível a que actualmente se encontram, e,
sob este ponto de vista, é essencial distinguir três casos:
1.º
−
terrenos que já eram inferiores às marés ao tempo da sua descrição
em tombo, como nitidamente se demonstra pelo texto dos respectivos
documentos;
/
186 /
2.º
−
terrenos que eram altos quando foram descritos, mas que com o
andar dos tempos foram a pouco e pouco sendo escavados e rebaixados pelo
embate das águas, ou rasgados pela força das correntes;
3º
−
canais de navegação que os proprietários abriram
em terreno seu, e para serviço dos seus prédios.
Em todos estes três casos o proprietário explora nos respectivos terrenos os moliços que eles produzem.
Fundados no princípio da jurisprudência de todos os tempos e de todos os países, segundo o qual «a lei civil não tem efeito retroactivo», princípio consignado na nossa
Carta Constitucional (art. 145.º § 2.º), e no nosso Código Civil (art.
8.º), os abaixo assinados entenderam sempre que quaisquer códigos ou
decretos, promulgados recentemente, não podiam fazer cair direitos de
propriedade que têm séculos de existência. De ânimo tranquilo viram o
n.º 2.º do artigo 380.º do Código Civil, que não é senão uma regra, a
que o artigo 8.º estabelece nitidamente a excepção. E de facto o regime
de propriedade particular, a que nos referimos, não só continuou
a ser acatado pelo Estado e pelas autoridades locais, como
até o Estado, por actos seus, mais radicou ainda o espírito de confiança
no referido regime, mandando proceder, por diversas vezes, e anos depois
da promulgação do Código Civil, a vendas nacionais de terrenos que as
marés cobrem e descobrem, e mesmo dalguns que estão sempre submersos.
Vieram depois a carta de lei de 6 de Março de 1884 organizando os
serviços hidráulicos, o decreto de 2 de Outubro de 1886 regulamentando
esses serviços, e por último o decreto ditatorial de 1 de Dezembro de
1892, regulamentado pelo decreto de 19 do mesmo mês.
Não só o regime policial criado por esses decretos contém excessos que
embaraçam fortemente os proprietários na introdução de melhoramentos e
reparações nos seus prédios,
mas, o que é mais, no penúltimo atribui-se categoricamente
o carácter de públicos aos terrenos que são atingidos pelo colo do
máximo preamar. É certo que isto não pode invalidar o artigo
fundamental da Carta, mas é igualmente evidente que os funcionários da
repartição hidráulica, cuja missão não é apreciar ou cotejar leis, tendo
as suas atribuições traçadas num regulamento, em que não há artigo algum
que expressamente lhes ordene que acatem os direitos de terceiros, são
sistematicamente levados a pretender dar-lhe cumprimento, e daí se tem
originado uma série de conflitos, em que os ditos funcionários, embora vejam a justiça da
causa do proprietário, nem sempre lha reconhecem oficialmente, e, quando
o fazem, é com o espírito timorato de quem
tem diante de si o espectro do regulamento. Mas o que sobretudo
/
187 / emociona e inquieta os proprietários, é a oposição que,
em nome do mesmo regulamento, lhes é sempre levantada
pela repartição hidráulica junto dos tribunais.
Deve porém dizer-se que esta situação anormal dos proprietários de terrenos da ria de Aveiro era de prever.
O mesmo que lhes está sucedendo aconteceu igualmente em
França aos proprietários de terrenos análogos, sobretudo
de 1840 a 1866, quando se quis dar aplicação às medidas que
acabavam de ser introduzidas na lei sobre a delimitação entre
o domínio público e o domínio particular. Aí também o
desassossego e incómodos dos proprietários não foram pequenos; mas conseguiram que se lhes fizesse justiça. As pretensões de reivindicação por parte dos funcionários da
marinha
e obras públicas em favor do domínio público, foram mandadas suspender pelo Governo, porque «não tinham ressalvado
os direitos de terceiros».
A história das discussões, processos e debates que se
levantaram em França até se chegar à resolução desta questão,
é lucidamente exposta em uma interessante monografia publicada em Paris em 1887, escrita por M. LÉON
AUCOC, membro
do Instituto, e antigo presidente de secção no Conselho de
Estado, e intitulada «De la Délimitation du rivage de la mer
et de l'embouchure des fleuves et rivières». Como membro
do Tribunal dos Conflitos teve este jurisconsulto de tomar
parte nos referidos debates, quando se tratou de estatuir
sobre a forma do processo, e sobre os casos especiais em
que o proprietário, não podendo ser mantido na posse, tem
de ser indemnizado pelo Estado. O referido autor é pois
uma autoridade neste assunto, e, como tal, não podemos eximir-nos a
transcrever aqui alguns períodos do seu trabalho, que dispensam todo o comentário, e têm, para a solução
da questão entre nós, um valor que as nossas palavras não
poderiam ter.
Diz a pág. 1:
«A variedade dos factos que se produzem sobre a extensão considerável
das costas da França, e que provém da natureza e da configuração dos
terrenos em que os rios e ribeiras vêm lançar-se no mar, tem conduzido
a soluções que, em certos casos, parecem contraditórias.»
E adiante, a pág. 8:
«Trata-se aqui de uma questão especial a certos departamentos do
meio-dia da França. Existem sobre as costas do Mediterrâneo,
nomeadamente nas proximidades de Narbone, de
Cette, de Aigues-Mortes, das embocaduras do Ródano e de Marselha, bacias
salgadas, umas muito consideráveis e que formam pequenos mares
interiores, como a bacia de Berre e a bacia de Thau, outras de uma
extensão muito menor, mas muito
/
188 /
mais numerosas. Estas bacias alimentam frequentemente salinas em que se
fabrica, todos os anos, uma quantidade considerável de sal. Muitos destes estabelecimentos têm uma origem
muito antiga, por exemplo as salinas de Peccais, perto de Aigues-Mortes,
que fizeram parte do domínio real.
Quando se estuda de perto esta questão, como nós o fizemos, numa memória
apresentada à Academia das Ciências
Morais e Políticas em 1882, reconhece-se que a maior parte das
bacias salgadas, cujo número excede setenta, não está em comunicação directa e permanente com o mar, que está por consequência fora do domínio público, que esta excepção se aplica
mesmo a bacias que comunicam com o mar, e que os direitos
dos particulares e dos municípios que são proprietários delas,
direitos justificados por circunstâncias físicas e históricas inteiramente especiais, fundados sobre títulos regulares; sobre decisões da justiça, foram reconhecidos pela administração da marinha e pela
administração dos domínios representando o
Estado.
Esta situação jurídica bastante anormal das bacias salgadas
explica-se sobretudo pela sua origem e pela sua constituição
física.
O litoral do golfo de Lyon sofreu, em épocas muito antigas,
profundas transformações que criaram, em muitos pontos, uma
dupla margem e formaram em consequência bacias salgadas.»
Descreve em seguida a marcha dos fenómenos geológicos na formação destas bacias, e a acção das aluviões do Ródano na
constituição dos deltas do mesmo rio, fenómenos
essencialmente análogos aos que determinaram a formação
da ria de Aveiro, e dos terrenos que dela emergem; e, depois de ter
exposto que, pelo direito comum, as bacias salgadas
que não comunicam com o mar, não fazem parte do domínio
público, acrescenta, (pág. 10):
«Mas a propriedade privada pode estender-se também, em
circunstâncias especiais, a bacias salgadas que comunicam
ainda com o mar e que são, ao menos em parte, navegáveis,
assim como aos canais que lhes estão ligados. Não foi sem
uma luta enérgica e prolongada que os proprietários destas
bacias e canais acabaram por fazer reconhecer a validade dos
títulos que justificavam uma derrogação às regras gerais sobre
o domínio público.»
E mais adiante (pág. 11):
«De mais sabe-se que, para a França, o princípio da imprescritibilidade do domínio público não é considerado como entrado
definitivamente na legislação senão a partir do édito de Moulins, de Fevereiro de 1566, e que as concessões anteriores a essa
época são incontestavelmente válidas.
Pelo seu lado, o conselho de Estado (conseil d'État) declarou para as
bacias salgadas, como o tinha feito para as outras partes do domínio
público, que o princípio da inviolabilidade das vendas de bens
nacionais, provenientes do domínio da
coroa, do clero e dos emigrados, proclamado pela carta de 1814,
/
189 /
não permitia contestar a alienação feita em 1812 de uma bacia do antigo
leito do Ródano, situada na ilha de Camargue, apesar de ser uma bacia
salgada em comunicação directa com o mar.
Depois da promulgação do decreto de 21 de Fevereiro de 1852, que tem
força de lei, a administração da marinha julgava ter encontrado um meio
seguro para fazer entrar no domínio público as bacias e canais salgados
navegáveis. Sobre as ordens do ministro, muitos prefeitos tinham
expedido, em execução do § 2.º do artigo 2.º desse decreto, declarações
de dominialidade fundadas em que, pela sua natureza, estas águas não
podiam ser objecto de um direito de propriedade privada. Nós
discutiremos adiante o alcance do texto em que se fundava a
administração. Basta dizer por agora que as determinações dos prefeitos
foram todas anuladas por excesso de poderes, pelo motivo de que tinham,
delimitando o mar, invadido o poder reservado ao chefe do Estado, e que
além disto não tinham ressalvado os direitos de terceiros.
A administração da marinha terminou a luta pela verificação geral dos títulos que se lhe opunham.
Assim os proprietários de bacias salgadas, de canais, de pescarias, sem
abandonar o direito de recorrer ainda, se necessário fosse, aos
tribunais, não hesitaram em produzir os seus títulos, e ao cabo de um
exame aprofundado feito em comum
pela administração da marinha e a administração dos domínios,
o ministro da marinha expediu a 30 de Julho de 1864, uma decisão
colectiva, completada em alguns pontos por duas decisões do 1.º de Abril
e de 30 de Dezembro de 1865, pouco conhecida porque não recebeu
publicidade, que reconhece formalmente os direitos de um grande número
de proprietários de bacias salgadas, de canais, de planos de água e de
pescarias.
A notificação dirigida aos interessados consigna que, depois do exame
dos títulos produzidos, a administração da marinha não levanta mais
reivindicação alguma a respeito das suas propriedades.»
É também importante o que o mesmo autor relata (pág. 23)
sobre o modo por que se procedeu com os proprietários marginais do rio Seudre:
«Uma das decisões mais notáveis neste género (para estabelecer a
delimitação entre as jurisdições marítima e fluvial) é o decreto de 19 de
abril de 1852, lavrado a respeito do rio Seudre. (Charente-Inférieure),
o qual fez remontar o mar até à eclusa de Riberou a 22 quilómetros a
montante da foz, apesar das reclamações dos ribeirinhos que alegavam que
esta delimitação atribuiria à praia do mar mais de 18.000 parcelas
cadastradas cobertas pelas águas do rio no momento das marés, das quais
eles eram proprietários em virtude de títulos autênticos ou
de uma transmissão hereditária. Na verdade, a administração recuou
perante as dificuldades que arrastaria a execução desta decisão.
A história merece ser contada em detalhe, e é um relatório de ministro
da marinha inserto no Bulletin Officiel em 1866 que nos fornece os
elementos desta exposição.
Desde um tempo muito antigo já, os terrenos situados por fora das
marinhas de sal, nas margens do rio Seudre e que se chamam sartières,
têm sido em parte consagrados ao estabelecimento de ostreiras; .........................................
/
190 /
Ainda que estes terrenos fossem cobertos pelas águas das marés vivas, e
que se não pudessem cercar de diques insubmersíveis sem destruir a
indústria a que estavam consagrados, nem por isso deixaram de ser
considerados, no que respeita a um certo número de parcelas, como
propriedades privadas; concessões tinham sido feitas anteriormente a
1789, e os tribunais, chamados a pronunciar-se, reconheceram a validade
dos títulos invocados.
Mas pouco a pouco, tendo alguns destes estabelecimentos invadido uma
parte do próprio leito do Seudre, a administração entendeu dever fazer
cessar um estado de coisas prejudicial à navegação.
Uma portaria de 5 de Outubro de 1841 prescreveu uma delimitação tendo
por objecto determinar por um lado o que importava deixar livre de todo
o obstáculo, de todo o estabelecimento privado, enfim o que devia ser
considerado como pertencente ao domínio público; pelo outro o que podia
sem inconveniente entrar no domínio útil do Estado, salvo bem entendido
os direitos que os ribeirinhos poderiam fazer valer.
Esta portaria, no seu artigo 3.º, diz que o leito do Seudre e de seus
afluentes, e os caminhos necessários para sirgadoiro dos barcos, serão
limitados por uma linha traçada sobre as aluviões (relais) de cada
margem, a 10 metros pelo menos da linha em que o solo deixa de estar
actualmente coberto de ervas.
Tal era o estado das coisas quando o decreto de 19 de Abril
de 1852 fixou o limite entre o mar e o Seudre na eclusa de Riberou.
Apesar da reserva dos direitos de terceiros inserta no decreto de
delimitação, os ribeirinhos consideraram que a sua situação tinha
mudado, que os terrenos cobertos pela maior vaga de Março, com mais
forte razão aqueles que eram cobertos pelas marés ordinárias ou pelas
altas marés de cada mês, podiam ser reivindicados pela administração
como uma dependência do domínio público imprescritivel e inalienáveI.
Eles puderam recear que a sua posse, mesmo muito antiga, fosse
contestada, se não estivesse fundada em títulos anteriores a 1566
ou em vendas nacionais. Numerosas petições, apoiadas pelo conselho geral
da Charente-lnférieure, requereram uma decisão nova. O governo, sem
revogar expressamente o decreto de 19 de Abril de 1852, anulou-lhe os
efeitos. Um decreto de 26 de Maio de 1866 ordenou que os terrenos das
margens do Seudre, situados por fora dos limites traçados em execução
do artigo 3.º da portaria de 6 de Outubro de 1841, seriam entregues à
administração dos domínios sob reserva dos direitos de terceiros.
Conseguintemente, em lugar de se acharem em face do domínio público, os
ribeirinhos não tinham já por adversário senão o domínio do Estado. A
prescrição ordinária podia ser invocada. Os seus títulos e a sua posse
tinham já um outro valor.
Esta decisão, benévola a respeito de certos ribeirinhos, estritamente
justa a respeito de um certo número deles, era talvez inspirada por uma
sentença do conselho de Estado no contencioso dada a 27 de Maio de 1863
que tinha anulado ....................... »
Assim procedeu o governo em França, e assim esperam
os signatários que se proceda em Portugal a respeito da ria
de Aveiro, onde a propriedade privada não está menos bem
documentada, como vamos verificar.
/
191 /
*
O domínio e posse por particulares de terrenos acessíveis às marés na ria de Aveiro, é anterior à fundação da monarquia,
como provámos na citação acima feita do testamento de Muma Dona, mas na
colecção já citada, em que este testamento vem transcrito, outros
documentos se encontram de data pouco posterior, referentes igualmente a
terrenos salgados da ria: assim o testamento de páginas 247, datado
de 1057, e um outro documento transcrito a páginas 334 e datado de 1077.
É pois tão afastada de nós a época em que alguns, ou talvez mesmo muitos
desses terrenos, foram entregues ao
domínio particular, que a prova documental das primitivas doações reais
se perde na noite dos tempos.
Mas há felizmente doações feitas mais tarde, depois de constituído o
reino, das quais o texto é conhecido, e para demonstrar o que
pretendemos, bastar-nos-á citar apenas duas.
A primeira, a mais antiga em data, é o testamento do rei D. Sancho I,
pelo qual foi legada ou antes doada, a vila
de Esgueira à infanta rainha D. Teresa, sua filha.
São conhecidas as contendas que houve entre D. Afonso II
e suas irmãs,
por causa desse testamento, que não ficaram cabalmente terminadas ao
tempo da morte do soberano.
Coube a D. Sancho II findá-las, e por uma concordata celebrada entre
ele e suas tias, na era de 1261, entre muitas outras estipulações, se
diz o seguinte: «ET POST MORTEM NATURALEM REGINÆ DOMINÆ
THARASlÆE ET
REGINÆ
DOMINÆ
BLANCÆ, ISGUEIRA DEBET REMANERE MONASTERIO DE LORBANO
PRO HEREDITATE».
Finalmente D. Teresa, em Março da era de 1272, depois de se achar
completa senhora da sua herança, fez doação ao referido mosteiro de
Lorvão da sua vila de Esgueira, segundo
o que fora estipulado na Carta de concórdia com el-rei D. Sancho, seu
sobrinho.
Por Carta de D. Dinis, da era de 3 de Abril de 1347, foi mandado
proceder à demarcação entre Esgueira e o lugar de Sá, demarcação que se
executou metendo-se marcos, na presença do procurador do convento, a 24 de Maio do
mesmo ano.
No foral reformado por D. Manuel, em 1514, se declara
que
−
«as marinhas são do mosteiro, e quanto às lezírias em
que o Conselho não estava ainda de todo concordado com o mosteiro, não
podia determinar, por tanto use cada um do seu direito e o que for justo
se decidirá».
−
Correndo em seguida questão entre o dr. Francisco
Mendes, por causa das ilhas do Fusil, Perrexil e Trovisco (que as
freiras lhe
/
192 /
haviam emprazado) e o Concelho, este, examinados o foral e documentos,
por todos foi dito: «que considerando a verdade neste caso como as
laziras todas eram do dito Mosteiro e nam do Concelho, eles aceptavam e
recebiam em bem a dita sentença e de todo o contheudo nela eram
contentes e por elo nam queriam demanda com ho dito mosteiro e que doje
em diante prometiam reconhecer em todo o tempo ao dito mosteiro. . . . .
. . . . . . . . . . . por mero senhorio das ditas ilhas». (Aprovado o contrato por Carta régia de 18
de Junho de 1517).
Para bem se saber quantos e quais eram os terrenos da
ria compreendidos nesta doação, é preciso consultar os livros
de tombo do mosteiro de Lorvão, mas a eles se referem
também muitos outros documentos das chancelarias reais. Nos ditos livros
encontram-se descritos os seguintes: ilha de Beiró, Gaga, Gramatais,
Testada, Garças, Sepa, Esteiro Covo, Madalhoal, Pedras, Comendador, Arêa,
lezíria de Marco António, praia de Palha-Cana, Praia da Galega, ilha da
Matança, ilha dos Ovos e Muacha do Mestre de Campo, ilhote dos Amorosos,
praia dos Amorosos, ínsua das Muachas, Muachas do Roque, ilha do Ronca,
ilha do Fusil, do Perrexil e ilha do Trovisco ou do Privado.
Todos estes terrenos foram sucessivamente dados de aforamento pelo Mosteiro a diversos indivíduos, e o número actual dos seus
proprietários é considerável. Com excepção dos lugares onde se fizeram
marinhas e de um trato de terreno na parte central da ilha Testada,
tudo o mais, não só nesse prédio como nos restantes, é nas vivas de
equinócio completamente coberto pelos preamares. Compreendem-se nesses
prédios terrenos dos quatro grupos que acima descrevemos, e alguns, como
por exemplo a praia de Palha-Cana, são exclusivamente formados por
terrenos que as marés cobrem todos os dias. E tudo isto se tira bem a
claro, não só pelas confrontações dos ditos prédios exaradas nos
livros de tombo, do Mosteiro, como pelos contratos de emprazamentos
feitos pelo mesmo Mosteiro, em alguns dos quais se diz que o enfiteuta
irá tornando susceptíveis de cultura as praias, que «ainda eram
alagadiças», e em outros são estipuladas condições para o caso de se
fazerem salinas; e estas, como dissemos, não podiam nem podem fazer-se
senão em terrenos diariamente cobertos e descobertos pelas marés.
Os proprietários destes terrenos possuem como título de propriedade as
certidões do tombo; mas os originais, bem como a história completa do
que deixamos dito sobre os prédios compreendidos nesta doação, podem ser
estudados nos numerosos livros do Mosteiro de Lorvão, e outros das
Chancelarias Reais, que se acham guardados no Real Arquivo da Torre do
Tombo.
/
193 /
[Vol. XII - N.º 47 - 1946]
A segunda doação a qua acima nos referimos, é da era
de 1448. Por Carta ou Alvará de 10 de Dezembro desse ano,
foi doado pelo Infante D. Pedro à Câmara Municipal de
Aveiro o prédio denominado
−
Ilha de Sama
− o qual em um dos livros de
tombo da mesma Câmara (fl. 21 verso) se acha inscrito nos termos
seguintes:
«Número oito.
−
Item: Mais tem a dita Vila e concelho uma Insua ou Ilha
que chama Sama que parte do Suão pelo Esteiro que chamam puxadouro e da
travessia com mar e carreira que vai para a dita Vila, e do Norte donde
se chama o Torrão parte com o mar e da banda da sul parte com marinhas
e aljubés do Mestre Tomás e de Fernão Gonçalves e Estêvão Jorge e tem de
comprido de Norte ao sul 1.356 varas de medir e de largo do Suão a
Travessia pelo meio tem 640 varas, a qual morre da banda do norte, onde
chamam o Torrão em agudo. Desta Ilha de Sama fez mercê primeiramente a esta Vila o Infante D.
Pedro por sua Carta ou Alvará feito a 10 de Dezembro de 1448 que está
transladado no Livro Velho de purgaminho a folhas 36 e demandou-a o Mestre a esta Vila, foi a Vila absolta
por sentença do Corregedor Francisco Fernandes no Livro delas a folhas
313, e neste Livro das Sentenças a folhas 315 está também treslado em
público da Carta ou Alvarã do Infante D. Pedro.»
No mesmo livro de tombo, por um termo de reconhecimento inscrito a
fl.
41, datado de 13 de Fevereiro de 1768,
se vê que a Ilha de Sama foi dada de aforamento pela Câmara,
sendo enfiteutas a essa data D. Joana Filipa Aurélia Teles de Novais e
João da Fonseca da Cunha de Pinho Teixeira.
No ano de 1843, precedendo autorização da Câmara, datada de 2 de Agosto,
os enfiteutas fizeram doação ou trespasse gratuito do domínio útil do prédio ao Dr. José Joaquim
de Sousa Monteiro por escritura pública da mesma data.
Por sentença de 30 de Maio de 1888 do Juiz de Direito da Comarca, a qual
passou em julgado, foi a Ilha de Sama, em acção ordinária, requerida
pelo enfiteuta contra o Estado,
mandada demarcar na conformidade das confrontações e medições constantes da certidão do tombo. Para compreensão porém da
importância deste facto, e do espírito da doação em que ele se fundou,
é-nos preciso dizer que dentro dos limites
da mesma doação se acha compreendida uma grande extensão de terrenos de
praia que as marés cobrem e descobrem todos os dias, e outra extensão
também grande de terrenos que
estão sempre submersos.
Cremos, pois, achar-se claramente demonstrado, que este
regime de propriedade particular não foi capciosamente inventado pelos proprietários, que a propriedade dos terrenos acessíveis às
marés, foi legitimamente adquirida; e que o foi num
tempo em que nas leis não havia disposição que os incluísse
no domínio publico.
/
194 /
Mas, somos obrigados a ir mais longe, porque nos resta ainda considerar
os numerosos actos com que, nos tempos modernos, o Estado, quer por si,
quer pelas autoridades locais, tem conservado o mesmo estado de coisas e
mantido no espírito dos proprietários a plena confiança no dito regime.
1.º As matrizes da contribuição predial.
− O estudo das matrizes da contribuição predial das freguesias ribeiririnhas da
ria é de tal modo importante, que bastaria só por si para resolver a
questão. A matriz de cada uma destas freguesias acha-se dividida em duas
partes, a primeira das quais compreende os terrenos lavradios, os
pinhais, as povoações; a segunda, sob a designação de zona alagada diz
respeito aos terrenos da ria, a saber: praias de junco, praias de
bajunça, praias de moliço e marinhas.
Todas as vezes que se têm feito novas matrizes uma comissão especial de
louvados tem sido nomeada para proceder aos trabalhos da zona alagada.
É impossível reproduzir aqui todos os elementos valiosos que decorrem da
leitura destas matrizes, mas bastará certamente dizer, a respeito de uma
qualquer das freguesias do concelho de Aveiro, o número de prédios
inscritos, excluindo as marinhas, e o teor da descrição dalguns.
Examinemos por exemplo a última matriz da freguesia
de Ílhavo, feita de 1886 a 1888 e posta em execução desde 1894:
Existem aí inscritos sob a designação de praias 332 prédios, e, entre
estes, 130 são praias de junco, e 54 são praias de moliço. Para se
julgar porém da importância destes terrenos na economia agrícola dos
respectivos proprietários, bastará notar que o número destes é muito
superior ao dos prédios inscritos: assim por exemplo, o prédio inscrito
na matriz sob o n.º 10.843 é uma praia de moliço pouco extensa, mas que
pertence, em
partes iguais, a 18 proprietários.
O exame das matrizes das outras freguesias ribeirinhas, tais como Nossa
Senhora da Glória, Vera-Cruz, Esgueira, Cacia, conduz a resultados
idênticos.
A praia de Palha-Cana e a praia da Galega que, como vimos, entram no
número dos prédios doados pela Infanta D. Teresa ao mosteiro de Lorvão,
acham-se inscritas na matriz da freguesia de Esgueira nos termos seguintes:
«N.º 4326.
−
Uma praia denominada "Palha-Cana», que produz moliço.
Pertencia em 1866 a Simão José Pinto Guimarães, da Quinta
dos Lagos. Em 1875 passoú para Luís Nunes Freire, de Cacia.
N.º 4325.
−
llhote denominado o da «Galega», que se compõe de cabeços de junco e Praia que produz moliço.
Pertencia em 1866 a Adrião Pereira Forjaz de Sampaio./
195 /
Destes dois prédios o primeiro é todos os dias completamente coberto
pelos preamares e o segundo é-o também na sua quase totalidade.
Para melhor concluirmos sobre a importância dos factos
que acabamos de passar em revista, tomaremos a liberdade
de transcrever aqui alguns períodos de uma memória intitulada La
propriété foncière, inserta na Revue de Paris de 1 de Janeiro de 1895,
firmada pelo comissário especial do governo francês junto aos congressos
universais da exposição de Chicago de 1893, M. DE CHASSELOUG-LAUBAT, e
escrita sob a impressão dos princípios que, a respeito da propriedade
imobiliária, foram no respectivo Congresso, proclamados como
doutrina definitivamente assente:
«Pode dizer-se que as questões de propriedade imobiliária tratadas em
Chicago eram de uma extrema importância para o futuro da América e da
humanidade. Tivemos a felicidade de constatar que não houve discussão a
não ser sobre o melhor
método a empregar para garantir ao indivíduo uma tranquila e completa
posse dos seus bens imobiliários, e para facilitar a pronta realização
dos empréstimos hipotecários em condições equitativas, oferecendo a
maior segurança possível ao mutuante e ao mutuário. Ninguém ousou
levantar a voz contra as duas ideias fundamentais do direito inglês: a
posse individual absoluta da propriedade imobiliária, e a
inviolabilidade da habitação pelos agentes dos poderes públicos. Todos
os delegados americanos foram de acordo em considerar estes dois
princípios como as verdadeiras bases da sua República e da sua grandeza,
das suas liberdades individuais, dos seus direitos políticos, da
civilização americana.
. . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . .
. . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . .
É no antigo direito feudal alemão, no acto da investidura, que todos
estão de acordo em procurar a origem dos livros de matriz modernos: com
efeito, a investidura supõe a priori que aquele que a dá tem a plena
posse da terra. O acto de investidura não pode ser feito senão pelos
poderes públicos, ou pelo menos com o seu assentimento, visto que no
antigo direito germânico o soberano, hoje o Estado, possui o domínio eminente da terra.
. . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . .
. . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . .
Foi precisamente a ideia da posse pelo Estado do domínio
eminente da terra que conduziu à matrícula da propriedade imobiliária e
à criação de livros de matriz, constituindo títulos absolutos de
propriedade garantidos pelo Estado.»
Em Portugal não se atribui de ordinário valor às certidões da matriz predial para resolver questões de propriedade levadas aos
tribunais, e infelizmente assim tem de continuar a ser nos pleitos entre
particulares, enquanto os actos de transmissão de propriedade por venda
ou por herança não forem por força de lei seguidos imediatamente da
respectiva alteração no livro da matriz. Mas, se assim é nas questões
entre particulares e quando se trata de saber a quem pertence um
determinado imóvel, as circunstâncias são inteiramente
/
196 /
diversas nas que se levantam entre um particular e o Estado, quer este
pleiteie em seu nome, quer em nome do domínio público. O Estado é quem
faz as matrizes. Se nelas incluiu ou conservou um determinado trato de
terreno, considerou-o propriedade particular; e em matéria tão grave,
num país em
que há uma lei sobre expropriações tão escrupulosamente respeitadora
dos direitos da propriedade privada, o Estado não pode repudiar amanhã
aquilo que fez ontem, muito menos ainda o que já se achava feito há
dezenas ou centenas de anos. A matriz predial representa um pacto entre
o Estado e os proprietários, em que de parte a parte se reconhecem
direitos e deveres. Por intermédio dos seus funcionários, que elaboram e
firmam as matrizes, administrador do concelho ou conservador do registo
predial, delegado do procurador régio, escrivão de Fazenda e louvados, o
Estado reconhece o domínio do proprietário. Findo o prazo das
reclamações o proprietário reconhece ao Estado o direito de lhe cobrar
anualmente a contribuição respectiva.
2.º A contribuição de registo.
−
Além dá contribuição predial os
prédios acessíveis às marés pagam, e pagaram
sempre desde remotos tempos, contribuição de registo ou sisa, o que é
fácil provar nas repartições de Fazenda e em numerosas escrituras deste
século e dos anteriores.
3.º O regulamento de 25 de Agosto de 1881 sobre a contribuição predial.
−
O n.º 9 do artigo 1.º deste regulamento diz que não pagam contribuição,
«por espaço de 10 anos contados da 1.ª cultura, os baldios, os pauis, as
charnecas e os terrenos tirados às marés.
Por outras palavras: A lei não só permite que se tirem terrenos às
marés, como até gratifica os indivíduos que o fizerem, dispensando-os
por espaço de 10 anos de pagar contribuição predial.
Mas, perguntar-se-á: Que terrenos são estes. que podem
ser tirados às marés, se todos os terrenos que as marés cobrem
pertencem ao Domínio Público, e este é inalienável e imprescritivel?
Como pode o Estado permitir que eles sejam utilizados como propriedade
particular, a não ser que
já anteriormente tenham esse carácter? Mas estas dúvidas, são decerto
esclarecidas no número seguinte.
4.º Licenças para construção de marinhas.
−
Até à publicação do decreto
de 17 de Outubro de 1865 a construção de marinhas na ria de Aveiro não
era precedida de licença. O proprietário de uma praia, nas condições
de servir para o
/
197 /
estabelecimento de uma marinha, procedia às obras de vedação sem lhe ser feita esta exigência, semelhantemente ao que
sucede com quaisquer obras que se façam em terrenos rurais.
Uma simples participação, ordinariamente verbal, era feita
na capitania do porto e na direcção das obras da barra, para
evitar desacordo sobre os alinhamentos exteriores. Determinou porém o
dito decreto (art. 1.º):
«É expressamente proibido edificar, explorar pedreiras, fazer aterros ou desaterros e enfim proceder a quaisquer obras
nos portos, nas margens e braços dos rios navegáveis e nas costas do
mar, até onde chegar o colo do praiamar de águas vivas, sem prévia
licença do governo, pela secretaria de estado
dos negócios da marinha e ultramar.»
A propósito do texto deste artigo mais uma vez podia perguntar-se, a que terrenos abrangidos pelo colo do praiamar se refere a lei, a não ser aos que estivessem anteriormente na
posse de particulares. Mas os factos subsequentes esclarecem bem esta
dúvida. Desde então continuaram a fazer-se marinhas. A diferença tem
consistido simplesmente
no trabalho e tempo gasto pelos proprietários até conseguirem a licença, visto que lhes é exigido que o requerimento
seja acompanhado da planta do terreno e das obras que projectam, e documentado com os títulos de propriedade por
onde provem que o terreno lhes pertence. Os títulos são
examinados, e o terreno vistoriado e cotejado com os títulos,
e em seguida, precedendo a respectiva informação, o ministro passa o
despacho, concedendo a licença.
Desta maneira se fizeram:
Em 1872, em praia pertencente a António José Lopes, na
margem direita da cale do Ouro, 3 marinhas, cuja construção foi autorizada por portaria do Ministério da Marinha
de 14 de Agosto de 1872.
Em 1881, em praia pertencente a João José dos Santos
Machado e outros, situada na margem direita da cale do
Espinheiro, a marinha denominada Judia, autorizada também pelo Ministério da Marinha.
Em 1887, em praia que faz parte do prédio denominado Ilha de Monte Farinha, foram construídas
duas marinhas,
uma sobre a margem direita da cale de Marta, outra sobre
.a margem esquerda da cale do Ouro, obra autorizada pelo
Ministério das Obras Públicas, sobre informação do engenheiro, o sr.
Adolfo Ferreira Loureiro, ao tempo director da 2.ª circunscrição
hidráulica.
Em 1893, em praia pertencente a José Pereira Júnior,
situada junto à malhada de Ílhavo, foi feita uma outra marinha, obra autorizada muito anteriormente por portaria do
Ministério da Marinha de 7 de Agosto de 1872.
/
198 /
No ano findo de 1896 uma praia pertencente a Jorge de
Faria e Melo, da extensão de 4 hectares, acaba de ser vedada
com diques e anexada à marinha denominada Singela, obra
autorizada pelo Sr. Ministro das Obras Públicas sobre informação do engenheiro director da circunscrição hidráulica,
o sr. João Tomás da Costa.
Estes diversos factos são por si terminantes, pois que
cada um deles é na essência um acto de reconhecimento feito
pelo Estado do domínio e posse por particulares de terrenos
que as marés cobrem e descobrem diariamente. Mas além
destes há muitos outros.
5.º Vendas nacionais
− Por Carta de arrematação
de 11
de Junho de 1874, António da Rocha e Francisco José da Silva
Vagueiro arremataram no Ministério da Fazenda, pela quantia de 4:0018000
réis, em conformidade com a lei de 28 de Agosto
de 1869, uma praia que produz moliço, situada na ria de Aveiro,
denominada a praia de Lavacos, e confrontada: do
nascente com praia de João José dos Santos Machado, do norte com a Ilha de Monte Farinha, do sul com a cale da Vila,
e do poente com a cale de Ovar.
Como esclarecimento temos simplesmente de acrescentar
que a dita praia de Lavacos é formada de terrenos que são
todos os dias completamente cobertos pelas marés e de que
uma grande parte está sempre submersa.
Em 1875 foi vendida nas mesmas condições pelo Estado
a praia Ferreira, outro prédio de produzir moliço e que é
todos os dias completamente alagado pelas marés. O anúncio para venda desta praia (Diário do Governo de 22 de Dezembro de 1874, artigo
Desamortização, lista 1322, n.º 8) diz:
«Uma praia que foi marinha, denominada a Ferreira, próxima da Ilha dos
Ovos: confronta do sul com a cale do Ouro,
do nascente com praias dos herdeiros de José Maria Rangel de
Quadros, do norte com o esteirinho da Ilha dos Ovos e do poente com a
Ilha da Gaivotinha.»
No Diário do Governo de 23 de Janeiro de 1875, foi
anunciada por ordem do Governo a venda de outra praia da
ria de Aveiro nos seguintes termos:
«Um baldio, terreno alagadiço, que produz moliço, onde chamam a
Privada, que parte do norte com a cale do Espinheiro, do sul com a praia
de Joaquim Pereira e outros, do nascente finda em ponta aguda com a cale
da Vila, e do poente com o Visconde de Almeidinha.»
Estes três exemplos de vendas mandadas fazer pelo
Estado, são suficiente elucidativos. Em primeiro lugar o Estado
reconhece o carácter de propriedade particular às
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199 /
praias de moliço e a terrenos que as marés nunca descobrem;
em segundo lugar faz igual reconhecimento a respeito doutras
praias que confrontam com os terrenos anunciados para venda;
em terceiro lugar põe em evidência que, não só se conforma
com este regime de propriedade, como até o conserva e
amplia.
6.º Expropriação de praias.
−
Acabamos de provar que
o Estado tem vendido praias. Como complemento natural
segue-se demonstrar que também tem feito a operação inversa.
Por determinação do Ministério das Obras Públicas de
fins de Janeiro de 1874, elaborou o engenheiro sr. Silvério
Augusto Pereira da Silva, ao tempo director das obras da
barra de Aveiro e das do distrito, o seu notável projecto
de melhoramentos da mesma barra e respectivo orçamento.
Este projecto, que tem a data de 26 de Fevereiro de 1874, foi
aprovado pelo Governo em Abril do mesmo ano, e publicado no 6.º voI. da Revista de Obras Públicas e Minas. Aí se
lê, a pág. 255:
«Para a rectificação marginal de que se trata, há a necessidade de expropriar a superfície de 59.500 metros quadrados em terrenos
em parte sempre alagados, de uma porção de um viveiro de marinhas e de
praia alternadamente descoberta e inundada. Pode para esta expropriação
estabelecer-se o preço médio de 30 réis para o metro quadrado.»
E a pág. 259:
«Para a execução desta obra haverá, pois, a expropriar cerca de 45.000
metros quadrados de terreno de praia que poderemos avaliar a razão de 20
réis.»
Este projecto foi, como dizemos acima, aprovado pelo
Governo.
7.º Demarcações feitas pela Repartição dos Serviços
Hidráulicos.
−
Alguns dos conflitos levantados entre a Repartição hidráulica e os proprietários de terrenos acessíveis às
marés, têm sido resolvidos de acordo entre as duas partes,
acatando a Repartição hidráulica os direitos dos proprietários
e demarcando-lhes os terrenos.
Deste género de reconhecimento citaremos apenas dois
casos:
Por fora do muro que veda a marinha Falcoeira pelo lado do nascente e
entre este muro e o esteiro de Bolhões,
existe uma faixa de praia, que é todos os dias banhada pelas
marés, e que pertence ao proprietário da mesma marinha.
/ 200
/
Em 1891 pretendeu a repartição hidráulica exercer actos possessórios na referida praia, originando-se daí um
conflito
que foi resolvido amigavelmente, sendo a dita praia demarcada no dia 19 de Julho do mesmo ano, na conformidade dos
direitos do proprietário, acto de que se lavrou auto e planta,
em duplicado, assinados pelo proprietário e pelo engenheiro
chefe de secção dos serviços hidráulicos, o sr. José Maria de
Melo e Matos.
J unto à marinha Campo Grande existe também uma
praia, nas mesmas condições de submersão pelas marés, e que faz parte do
dito prédio. Tendo a Repartição hidráulica
mandado lá cortar torrão, facto contra que o proprietário
protestou, a mesma Repartição lhe reconheceu depois de uma
vistoria a sua posse e propriedade, completando-se a demarcação antiga com estacas.
8.º Praias dadas a guarda da Repartição Hidráulica.
−
Prescreve o artigo 153.º do regulamento aprovado por
decreto de 2 de Outubro de 1886:
«É permitido a qualquer proprietário cometer às direcções
hidráulicas a guarda das suas propriedades, compreendidas dentro da sua
respectiva circunscrição, e para este fim requererá ao engenheiro director, que poderá fazer concessão sem
prejuízo do serviço a que os mestres e guardas tem a satisfazer,
e fixará a retribuição que o proprietário tem de pagar ao respectivo
cofre.»
Em virtude deste artigo o proprietário Alberto Ferreira
Pinto Basto requereu em 1891 à direcção da 2.ª circunscrição hidráulica
para que esta, mediante a retribuição anual que se
convencionasse, tomasse a seu cargo a guarda de uma praia
de 18:989 metros quadrados, que ele possui à margem do
braço da ria que vai ter ao Boco, e que confronta pelo norte,
sul e poente com a ria. O requerimento foi deferido nesse
mesmo ano, e desde então o prédio tem estado sob a guarda
dos empregados dos serviços hidráulicos. Para completa
compreensão, porém, da importância deste facto, convém
notar que o terreno de que se trata é uma praia de produzir
moliço, e que, como tal, é todos os dias coberto e descoberto pelas
marés.
9.º Regulamento para a exploração das ostreiras.
−
Este regulamento, que foi aprovado por decreto de 1 de
Outubro de 1895, diz:
«Art. 12.º
−
Ninguém poderá montar temporária ou permanentemente
estabelecimentos ostreícolas nos terrenos públicos, particulares ou
comuns, sem prévia autorização do governo.
/
201 /
Art. 41.º
−
A adaptação de terrenos do domínio particular a
estabelecimentos ostreícolas fica dependente de uma licença do conselho
do almirantado, que só a poderá conceder observadas as disposições do
art. 10.º e seus parágrafos.»
Estes dois artigos de lei reconhecem terminantemente a
existência de terrenos do domínio particular, acessíveis às
marés. A ostreicultura é uma indústria até hoje pouco exercida entre
nós, mas, não é preciso ser muito versado nos trabalhos que lhe dizem
respeito, para saber que os parques
ostreícolas só podem estabelecer-se em terrenos expostos à submersão das marés. Na transcrição que acima fizemos
de M. LÉON AUCOC sobre a questão levantada em França,
relativamente aos parques de ostras das margens do rio Seudre, já este facto foi consignado nas palavras seguintes do
referido autor:
«Ainda que estes terrenos fossem cobertos pelas águas das
marés vivas, e que se não pudessem cercar de diques insubmersíveis sem
destruir a indústria a que estavam consagrados...»
10.º Sentenças dos tribunais judiciais.
− Já expusemos que, por sentença do juízo de direito da comarca de Aveiro,
foi no ano de 1888 demarcada a ilha de Sarna e praias alagadas que a circundam; mas os actos judiciais que demonstram a intervenção e julgamento dos tribunais sobre a
propriedade particular dos terrenos alagados da ria, são de
diversos géneros e em grande número. Os arquivos dos cartórios estão cheios de processos que lhes dizem respeito, e na Conservatória do registo predial da comarca de Aveiro
os registos de propriedades acessíveis às marés, lavrados em
face de sentenças dos tribunais de 1.ª e 2.ª instância, contam-se por centenas. E não admira que assim seja, se se
atentar por um momento em que este regime de propriedade
é antiquíssimo, e em que os terrenos a que se refere, produzindo adubos para as terras
lavradias, representam na fortuna e economia agrícola dos seus proprietários um papel de
importância igual à que têm, para os proprietários agricultores das regiões montanhosas, as propriedades que produzem mato. Sucede
pois que, na partilha de heranças, quando
entre os imóveis há terrenos de praia, todos os co-herdeiros
pretendem ser inteirados neles, resultando daí como consequência a progressiva divisão deste género de propriedade.
Como porém a conservação de marcos nestes terrenos não é
coisa fácil como nos campos, a partilha não é de ordinário
glebária. Cada prédio, embora não dividido glebariamente, pertence pois
em regra a mais de um proprietário, e às vezes
a muitos, como no exemplo que acima citámos da matriz de Ílhavo, em que o
n.º 10:843 pertence a 18 consortes.
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202 /
Daí provém que o mesmo prédio entra mais repetidas
em inventários orfanológicos, e nestes, escusado é dizer,
intervém como curador dos órfãos menores o agente do
Ministério Público.
Desta maneira, o Ministério Público acompanha e sanciona os actos de partilhas, em que, muitas e muitas vezes,
a legítima dos menores fica constituída em parte, ou mesmo
no todo, por terrenos acessíveis às marés, e por último, não
o esqueçamos, estes actos são julgados e aprovados pela sentença do juiz
de direito.
Os casos de venda de praias, em hasta pública, determinada por sentença dos tribunais judiciais, na liquidação
de heranças ou execuções por dívidas, são também frequentes, e o mesmo pode dizer-se de vistorias e segundas louvações em inventários, presididas no próprio local dos prédios pelo juiz
de direito, com a assistência do agente do Ministério Público.
Terminamos aqui esta extensa série de provas, que poderíamos alongar ainda, se necessário fosse. Com reconhecimento delas já não poderá pôr-se em dúvida que existia na
ria de Aveiro propriedade particular em terrenos acessíveis
às marés. E no entretanto, nas informações oficiais escritas, fornecidas
pela repartição hidráulica aos tribunais judiciais,
este facto é constantemente ocultado.
Deu-se até um sentido novo à palavra Cale, cujo
significado é de toda a importância, visto as cales serem no texto
dos títulos antigos de propriedade o limite ou confrontação
de muitos prédios. Desde tempos imemoriais esta palavra
aplica-se em Aveiro a designar certos e determinados veios
de água funda por onde seguem as correntes em direcção à barra, e
perfeitamente distintos dos terrenos de praia alagadiça que lhes ficam aos lados. Não há pessoa alguma em
Aveiro que ignore que isto é assim; e todavia a repartição
hidráulica tem afirmado por escrito, em informações remetidas aos tribunais, que «para esta repartição cale é o mesmo
que margem ou mota», expressão em que tudo se confunde,
sendo para o caso verdadeiramente incompreensível, e pela qual se
pretendia, por um processo demasiadamente simples,
negar a propriedade particular de terrenos alagados. Por tal
forma, o argumento dos proprietários, fundado na antiguidade dos
títulos, desapareceria por inteiro, por falta de objecto
a que se aplicasse.
Se esta oposição não tem graves consequências no tribunal de
1.ª instância onde os magistrados possuem, pelo
conhecimento dos lugares e dos costumes, elementos de sobra para fazerem
juízo seguro, não sucede outro tanto no
tribunal de 2.ª instância, onde alguns juízes desconhecem
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203 /
completamente a ria, e as circunstâncias especiais que fizeram nascer um regime de propriedade que, vistas as informações da repartição hidráulica, se lhes afigura inverosímil.
Os proprietários de terrenos acessíveis às marés, apresentados assim, parecem-lhes gente de maus costumes, usurpadores de imaginação exaltada, pressuposto este que muito
importa aos proprietários, porque não há questão de propriedade,
levantada entre eles e o Estado, que não suba à 2.ª instância e ao Supremo Tribunal, em virtude da lei que prescreve
aos delegados do Procurador Régio apelarem sempre das sentenças dadas contra o Estado (N. R. Judiciária, art. 359.º, § 2.º).
De tal forma, os tribunais judiciais tornam-se para os
proprietários um recurso que é, pelo menos, moroso e dispendiosíssimo.
A diversos juízes de direito, tanto de 1.ª como de 2.ª instância, temos ouvido afirmar, em face deste estado de coisas,
que, para evitar desastres deploráveis na fortuna individual dos
proprietários, e sobretudo dos pequenos proprietários (pouco ilustrados
para bem instruir os processos e mal providos de meios para os sustentar
longamente), se torna indispensável e urgente um acta ou declaração do
Governo, que
possa servir de base a uma demarcação justa dos particulares
com o Estado. E, com efeito, só a entidade do Governo pode
ver e julgar com superior critério num assunto em que, além
da questão de direito, há a ponderar interesses colectivos da maior
importância. Em nome da doutrina das leis dos últimos tempos pretende-se fazer entrar no domínio público os
-terrenos acessíveis às marés, mas é bom ter presente ao
espírito que, justamente por intermédio da doutrina oposta,
é que este vasto paul, formado pelas aluviões do Vouga se
tem ido a pouco e pouco transformando num importante
centro de actividade industrial.
Propositadamente não fizemos ainda referência a um
diploma legislativo de data recente que esclarece nitidamente a questão,
vindo provar que o espírito da legislação moderna invocada contra os proprietários é bem diverso da interpretação que neste sentido a repartição hidráulica tem pretendido dar-lhe. Este diploma é o decreto e regulamento
de 31 de Dezembro de 1895, que determina as condições em
que devem ser feitas as concessões de terrenos acessíveis às
marés, para o estabelecimento de viveiros de peixe, estabelecimentos de piscicultura marinha e instalações permanentes
de pesca.
O dito regulamento prescreve:
«Art. 1.º
− Em determinadas zonas da parte marítima
das águas
públicas, é permitido fazer instalações permanentes de pesca,
estabelecimentos de piscicultura e viveiros de peixes,
observadas as disposições do presente regulamento.
/ 204 /
Art. 4.º
−
Para que uma zona da costa ou parte marítima dos portos,
rios, rias, esteiros, lagoas e margens adjacentes possa ser aplicada aos
fins designados no art. 1.º deste regulamento é preciso que satisfaça às
condições seguintes:
1.ª Não estar já aproveitada para uso público, comum ou
particular.
Art. 10.º
−
O chefe do departamento, no prazo de quinze dias, mandará passar na localidade
uma vistoria, que terá
por fim:
1.º Verificar o local;
2.º Conhecer se ele satisfaz às condições exaradas no
art. 4.º Em seguida consultará a comissão local e a departamental de
pescarias sobre o pedido da concessão, precedendo aviso afixado com antecedência de trinta dias na porta da repartição
da capitania e na folha oficial, afim de, se a petição se relacionar
com
interesse de terceiros, estes dizerem por escrito da sua justiça.»
Cremos que não há nada mais claro nem mais decisivo.
Este decreto afirma terminantemente: 1.º
−
que os terrenos banhados
pelas marés podem achar-se no domínio particular; 2.º
−
que os que não
estiverem neste caso, e não sejam indispensáveis para uso público,
podem ser alienados pelo Estado. E de facto não pode nem deve ser doutra
forma, sob o ponto de vista dos interesses gerais do país. Com efeito,
que vantagem pública pode advir de se considerarem obstinadamente do
domínio público, e como tais inalienáveis, terrenos que a prática tem
demonstrado serem eminentemente próprios para o estabelecimento de
importantes indústrias, e isto com o simples fundamento em que tais
terrenos, que outra coisa não são senão extensos lamaçais, são
atingidos pelo fluxo das marés?
A confusão que nesta matéria se tem feito provém a nosso ver única e
exclusivamente de se não terem distinguido bem estas duas noções essencialmente
diversas, a de domínio público e a de domínio do Estado. São do domínio
público as coisas que, pela natureza do serviço que prestam, não podem
ser utilizadas individualmente; e por isso o que é do domínio público
não pode ser alienado, nem concedido, nem arrendado. Está neste caso uma
estrada que, evidentemente, não pode ser utilizada por um indivíduo, ou
grupo de indivíduos, com exclusão dos outros. O mesmo sucede com um
rio ou ria, na largura em que é indispensável para uso de todos como
canal de navegação. Mas já não pode nem deve dizer-se o mesmo com
relação às faixas
marginais alagadiças, em que, sem inconveniente algum para a navegação, se têm estabelecido, e devem continuar a estabelecer,
marinhas de sal, e semelhantemente se podem, com grande vantagem
pública, estabelecer de futuro os viveiros de peixe, as instalações
permanentes de pesca, os parques de ostras, indústrias relativamente
modernas, cuja criação e
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205 /
desenvolvimento os decretos de 1 de Outubro e 31 de Dezembro de 1895
tiveram em vista fomentar.
Por conveniência pública, pois, estes terrenos não podem
pertencer ao domínio público: são do domínio do Estado.
E só assim é que o Estado pode transaccionar sobre eles, ou
concedendo-os, ou arrendando-os, ou vendendo-os, como
melhor convenha. Mas de facto é o que até agora se tem
feito, como acima provámos. Fez-se em tempos muito
remotos sob a forma de doações régias, e fez-se mais modernamente (ainda em 1875) sob a forma de vendas nacionais.
A diferença consiste apenas em que esses actos tiveram lugar
sem condições no que respeita ao modo de utilizar os terrenos.
Nos dois referidos decretos afirma-se que os terrenos
podem achar-se na posse de particulares, mas, quando mesmo isto ali não estivesse declarado, dizer que o
Governo está
autorizado a fazer concessões de determinadas zonas da parte
marítima dos portos, rios, rias, etc., é afirmar que as ditas
zonas não são do domínio público, mas do domínio do Estado, ou, por
outras palavras, é afirmar a respeito delas o carácter
de propriedade particular, isto é, que o Estado as possui como
particular na conformidade do artigo 516.º do Código Civil.
A propósito recordaremos as palavras acima citadas do
jurisconsulto francês, Mr. LÉON AUCOC, sobre a solução que o governo em
França deu à questão da posse dos terrenos
das margens do rio Seudre:
«Um decreto de 26 de maio de 1866 ordenou que os terrenos das margens
do Seudre, situados por fora dos limites traçados em execução do art.
3.º da portaria de 6 de outubro de 1841 seriam entregues à administração
dos domínios, sob reserva
dos direitos de terceiros.
Conseguintemente, em lugar de se acharem em face do domínio público,
os ribeirinhos não tinham já por adversário senão o domínio do
Estado. A prescrição ordinária podia ser invocada. Os seus títulos e a
sua posse tinham já um outro valor.»
Os princípios pois que se acham expressos nos decretos
de 1 de Outubro e 31 de Dezembro de 1895 são o bastante para destruir
todas as dúvidas.
Torna-se porém necessário que o Governo de Vossa
Majestade os mande observar; não só nos casos das concessões a que se referem os ditos decretos, como em
quaisquer outros em que se levante a questão de propriedade.
Alguns proprietários carecem com urgência de se delimitar
com o Estado e com o domínio público, porque pretendem fazer obras, e não lhes convém proceder a
elas em
comum com os seus comproprietários. Pretendem por isso
fazer partilha glebária com estes, o que evidentemente não
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pode ter lugar sem previamente se achar removida toda e qualquer
questão de propriedade e de limites que possa ser
levantada pelo Estado. Outros, e principalmente aqueles cujos
prédios estão situados a grande distância do povoado, pretendem pôr-se ao abrigo dos incómodos que lhes podem
sobrevir de futuro pelas dificuldades na repressão dos roubos, se a
autoridade policial hidráulica continuar a declarar que os terrenos não
podem ser propriedade particular.
Poderá à primeira vista parecer, que, determinando-se a pronta execução
do que prescreve sobre a demarcação das bacias hidrográficas o capítulo
1.º do regulamento dos serviços hidráulicos, se acharão removidas as
dificuldades que os proprietários vêem diante de si. Mas essa suposição,
que
talvez seja verdadeira para outros pontos do país, é completamente errada com relação à bacia hidrográfica de Aveiro.
O dito regulamento determina às direcções das circunscrições hidráulicas
que procedam à demarcação na conformidade do decreto n.º 8 de 1 de
Dezembro de 1892. Isto é, os respectivos funcionários terão de traçar
sobre a carta
corográfica do reino, devidamente ampliada, a linha de perímetro dos terrenos que no preamar das máximas vivas ficam
debaixo de água.
Em Aveiro só as marés do equinócio de Setembro podem
servir de base a este trabalho, visto que no equinócio de
Março o rio Vouga traz sempre maior ou menor quantidade de águas de
cheia, que avolumam e elevam o nível das águas
da ria. Por outro lado, a linha que será preciso levantar nesta bacia
hidrográfica não é uma única: além da linha geral de contorno exterior
da ria, a qual já por si é extensíssima e cheia de acidentes, há ainda a traçar muitos e muitos perímetros secundários a contornar os numerosos terrenos emergentes que
existem pelo meio da ria, constituídos na sua maior parte por grupos de
salinas, e separadas dos dos outros por um número considerável de canais
ou esteiros.
Tendo pois a referida linha de preiamar de ser traçada
por um facto único em cada ano, e tendo uma extensão enorme (que
antecipadamente pode afirmar-se não ser inferior a 400 quilómetros), devendo o seu estudo, pelo fim a que ela se destina, ser feito com o máximo rigor, é evidente
que o levantamento da referida linha é trabalho difícil, que
exige um pessoal técnico considerável, e que se não poderá executar dentro de poucos anos.
Depois de levantada, ordena o regulamento que seja
patenteada durante 30 dias aos interessados, para que estes
reclamem contra ela, na conformidade dos direitos que
tiverem.
Pela descrição que fizemos da ria e da maneira porque
.nela se acha distribuída a propriedade particular, se conclui
/
207 / que o número dos reclamantes, fundados em títulos e direitos
irrefutáveis, é considerável, o que vale o mesmo que dizer que a linha
de máximo preiamar, que tanto trabalho, despesa e tempo tem de consumir
no seu levantamento, está destinada a ser alterada na sua maior parte.
Parece aos signatários que, tanto para eles, como para o Estado, haveria
a maior conveniência em este trabalho de delimitação se ir fazendo à
medida que os proprietários o fossem requerendo, mas tendo cada processo
por base, e desde o começo, os
documentos e mais provas que eles aduzam na demonstração dos seus
direitos.
E de facto, não podendo e não devendo haver da parte dos poderes
públicos a intenção de desacatar o direito de propriedade, que
elucidação pode trazer a estes processos a
linha do máximo preiamar?
Seguindo o exemplo dos proprietários em França, os signatários não podem
prescindir do direito de recorrer por último aos tribunais judiciais,
caso os seus títulos não sejam justa e imparcialmente apreciados pelas
autoridades administrativas. Entendem porém que de uma apreciação
parcial não resulta vantagem para ninguém, e que ao contrário tem o
inconveniente de complicar e delongar a solução de uma questão, de que
estão dependentes obras e melhoramentos que os proprietários projectam
realizar, e que a pouco e pouco iriam introduzindo nos seus prédios
desde que os limites se achassem definitivamente fixados.
Os signatários pedem pois que o Governo de Vossa Majestade,
procedendo analogamente ao que fez o governo em França em idênticas circunstâncias, não só declare que reconhece a propriedade particular na
ria de Aveiro em terrenos alagados pelas marés, mas ao mesmo tempo
expeça as necessárias instruções às autoridades incumbidas dos
serviços hidráulicos para que, sem lesão dos proprietários, se proceda
à delimitação entre os terrenos alagados do domínio particular e as
águas do domínio e uso público à proporção que for sendo requerida
individual ou singularmente
/
208 /
pelos mesmos proprietários, observando-se rigorosamente os limites
estabelecidos nos títulos que estes apresentem em prova e justificação
do seu direito, e atendendo-se no caso de deficiência ou obscuridade
desses títulos à verdade sabida ou atestada pelos inquéritos e
informações a que deva proceder-se, isto sem prejuízo do recurso dos
particulares aos tribunais judiciais, quando se não conformem com essa
delimitação assim fixada.
E. R. M.
Aveiro, 18 de Fevereiro de 1897.
OS PROPRIETÁRIOS
(Seguem-se 462 assinaturas)
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