|
1 – «TUDO o que sei, tudo o que tinha, tudo o que podia, e
tudo o que eu sonhava está em "Playtime" ("Vida Moderna")», dizia
Jacques Tati a "A Capital" a 15 de Março de 1968. Tudo, pode
dizer-se agora. E, claro, a própria morte de Tati. |
2 – Na manhã do dia 16 de Março de 1968, na
companhia do Eduardo Paiva Raposo, do Fernando Guerreiro e da
Maria Antónia PalIa, ouvia-o eu declarar: «Os jornalistas foram um
pouco duros para comigo e eu sei porquê. Porque com o dinheiro que
gastei em "Playtime" toda a gente pensava que se podia ter feito
mais filmes. Mas era impossível fazer "Playtime" de outro modo.
Não foi para ganhar dinheiro que o fiz, não o tenho, nem me
apetece. E não é por estar no Hotel Ritz que eu tenho dinheiro.
Aliás, durante as filmagens andávamos por hóteis de quinta ordem.
E a primeira coisa que me aconteceu aqui no Ritz foi ter dois
fatos para quarenta cabides.»
Depois foi a história que se sabe: o público não foi, o filme
saiu, Tati que após o êxito de "Mon Oncle" ("O Meu Tio"), poderia
ter prosseguido uma carreira de "poesia francesa" entre MarceI
Marceau e Jacques Prévert (magníficos os seus filmes, mas com "Mon
Oncle" chegando ao impasse), conheceu a desgraça. Ainda faria mais
dois filmes mas em condições e resultados precários. E um projecto
que lhe era agora proposto "in extremis" por Jack Lang. E que a
morte matou.
|
3 – Eu conheci Jacques Tati nesse dia 15 de
Março. Tinha, dias antes, saído da cadeia de Caxias, onde fora
parar mais por falta de ligeireza nas pernas para apoiar Ho
Chi Minh do que por constituir perigo político que se visse
contra um Governo que combatia noutro hemisfério em nome de 7
séculos. |
Foi logo a seguir a sair da cadeia que vi "Playtime" e que percebi
que fora preso exactamente porque na estupidez dos meus dezanove
anos eu achava possível um mundo de filmes assim. Não estou a
mentir, agora. Escrevi-o no "Tempo e o Modo" que saiu em Abril de
1968; com aquele inconfundível estilo de miúdo há muitos anos
míope e que já carregava o seu Barthes Campo Grande abaixo: «Se
soubermos que em "Playtime" o direito à observação é privilégio
daqueles que como "outsiders" são definidos (Hulot e Barbara) e
que ele é o jogo ou a livre actividade que se atinge
colectivamente em momentos-plenos (...), temos que nele por dois
lados se movimenta o mesmo conceito: essa forma de viver livre que
é, segundo Jean-Luc, "regarder autour de soi"; e que essa
actividade se processa e define simultaneamente dos dois lados da
tela. (...) Nós próprios somos também
integrados no tempo do jogo. Desse modo, (...) a nossa actividade
de espectadores alarga-o e transforma-o no filme-total. Assim se
coloca o problema da oportunidade desta opção – e aqui se
observaria como filmar assim é exigir dos espectadores aquilo que
o jogo social anotado em "Playtime" lhes destrói: o direito do
olhar. Fórmula em que se inscrevem outros tantos direitos: o da
informação, o da escolha, o do julgamento. Outros tantos direitos
que "Playtime" nos confere ainda".
(Apesar do estilo pomposo de quem já tinha feito as suas
frequências de Linguística II, perceberam, não perceberam?).
Em resumo: exercendo o seu absoluto e inalienável direito à
liberdade, Tati propunha-nos a liberdade filmando pessoas que
olhavam para aqui e para ali e nós naquele filme de luxo gratuito
ora podíamos ir olhando para a "direita ora olhando para a
esquerda, ora para esta, ora para aquela personagem..., feitos que
éramos espelhos transportados – ao longo de um filme, numa
paráfrase que será banal mas não idiota de Stendhal.
Tati propunha-nos a liberdade, mas só o podia fazer de uma
maneira: exercendo-a ele próprio. Ou seja, arriscando-a ele
próprio. E Tati fez este filme impossível: 70 milímetros –esse
formato de epopeias que a cada esquina nos mandava ver o Coliseu
de Roma, um orçamento até então inultrapassado, uma cidade inteira
construída em estúdio, arranha-céus, auto-estradas, uma história
deambulatória, uma planificação ultra-elaborada e original que
combatia a montagem de frente e que assim se batia com Griffith e
a origem do cinema como só Brecht se quis bater com Aristóteles e
me contam que Marx com Hegel.
4 – Mas os espectadores não foram ver. E o
poder (económico, político, cultural) impediu-me finalmente de
viuver num mundo em que houvesse mais filmes de Jacques Tati. Os
senhores produtores, os senhores distribuidores, os senhores
exibidores, os senhores ministros e secretários de Estado, os
senhores jornalistas acharam que já bastava, que o melhor era
Jacques Tati acabar por ali, que já tinha gasto dinheiro de mais.
E assim o censuraram. E censuraram-me. |
|
Mas não foram só eles. E é precisamente porque não foram só eles,
porque a ditadura não tem só um lado, porque foi em nome de que eu
pedi para escrever este artigo. É que a carreira de Jacques Tati
foi censurada (o meu prazer de espectador foi censurado) em nome
dos espectadores que não foram ver "Playtime". E é esses que eu
queria acusar olhos nos olhos e sem passar de hoje. Porque vos
tenho raiva.
(A todos vocês que fizeram troça do final do "Wrong Man" (O Falso
Culpado) de Alfred Hitchcock. A todos vocês que acharam caricatas
as "Seven Women" ("Sete Mulheres") de John Ford. A todos os
espectadores, directores-gerais de espectáculos, artistas de
revista, que ridicularizaram o "Amor de Perdição" de Manoel de
Oliveira. A todos os que não esgotam a colectânea de poemas da
Luísa Neto Jorge. A todos os que andam só agora (é tarde) com o
Nicholas Ray na boca. A todos os que não "ligam" a um livro como
"Terceira Idade" de Mário Dionísio. A todos os moralistas que
acham que para a arte é cinco tostões para o eléctrico, e que se
devem prestar contas e servir qualquer coisa. A todos os
espectadores que não foram ver "O Labirinto de Creta" do Teatro da
Cornucópia e a todos os críticos que disseram que o melhor era não
irem. A todos os que não tratam de arranjar espaço para o Teatro
do Mundo. A todos os que se resignam a isto: a este cinema, a este
teatro, a esta literatura do toma-lá-cem-paus-dá-me-tempo-livre...).
Porque são os mesmos que deixaram que "Playtime" não chegasse a
estar três semanas no Monumental. E em nome de quem o exibidor ia
cortando bocadinhos todos os dias a partir do terceiro dia de
projecção a ver se aquela obra de génio lá conseguia ir vendendo
lebre por gato, que é o que me dizem sempre que é do que vocês
gostam. Ou não é? Então porque é que não foram?
5 – Porque é que não vão ao que é novo? Ao
que é tentativa? Ao que é falhado? Ao que é genial? Ao que oferece
risco? Porque é que só investem os vossos cem escudos em coisas
que já sabem? Porque é que se resignam ao velho se o novo vos bate
tanta vez à porta? Tanta vez e com que esforço de Sísifo! Com que
esforço para ser digno de vocês!
É porque não querem olhar, não é?
(Nos livros diz-se que é porque não vos deixam, mas eu tenho-vos
em maior consideração. Prefiro acreditar que é porque não
querem).
Mas sabem que se não querem estão a censurar, não sabem? Sabem que
se não querem olhar estão a não deixar que se olhe, não sabem?
Sabem o que estão a fazer?
6 – E vocês, os críticos, que depois de
terem navegado pelos escombros das ideologias, sempre entre a
Scyla e a Caribdis de ora-Freud-ora-Barthes-ora-Karl Max, sabem o
que andam a fazer agora, neste vosso frenesim de identificação com
o gosto do grande público? (É ou não é a primeira vez na história
do cinema que a crítica europeia em uníssono aplaude e parece só
estar interessada na Série A?). E porque é que se resignam? Ou
vocês não sabem que aplaudindo um lado estão também a censurar,
não sabem? Ou julgam que se pode servir a dois cinemas? Julgam? Ou
têm é medo de ficar sós ou a três em salas geladas?
Não estão ainda a censurar "Playtime"?
7 -– Repito: tenho-vos raiva. Pois não havia
de ter se vocês são (são) o poder e a ele assim se resignam e o
que eu queria era olhar à minha volta, viver sem vocês, "viver
livre". E não percebem que resignando-se são censores?
8 – Tati chamava-me "mon jeune ami". E eu
acho que percebi daquela vez por todas que a liberdade é aquilo. E
por isso pedi – e fui eu que pedi – para escrever isto assim, de
um jacto, na altura em que "mon vieil ami" morre. Porque é isto a
morte. Tati já não está connosco. E só ficou enquanto trabalhou.
Sempre que o não pôde, fomos nós que fomos privados de um nosso
contemporâneo de génio e risco.
Ele nunca vos falaria assim – preferiria observar-vos e
divertir-se observando-vos. Eu não sou tão inteligente. E vocês
irritam-me. Porque não quiseram no "Playtime" olhar livremente. E
não me deixaram a mim.
Foi Mozart, claro, quem soube qual era o som humano da palavra
libertà. No "D. João". E eu estou convencido disto: foram
vocês, os resignados do capitalismo, ou, pior ainda, foi em vosso
nome que assassinaram Mozart.
A Festa mais divertida
|
NUMA entrevista
publicada, em 1968, no número 199 dos "Cahiers du Cinéma", Tati
cita um episódio que se passou com ele quando, nesse ano, esteve
em Lisboa (ver a evocação de Jorge Silva Melo), por altura da
estreia de "Playtime" ("Vida Moderna"). Aqui o transcrevemos, tal
como ele o viu e descreveu e porque dá bem a medida do que era a
sua inspiração em que, como diz, a "imaginação vem em socorro da
observação". |
"Recentemente, estive em Portugal, e instalaram-me no hotel mais
chique de Lisboa, num quarto sumptuoso, com um enorme quarto de
banho e televisão (que não funcionava) – um verdadeiro "Playtime"
em miniatura. Chateava-me imenso naquele quarto e decidi tomar um
duche. Os azulejos eram impecáveis e as torneiras cromadas
brilhavam... Bom. Abro a torneira e pfuitt!: o jacto de água não é
dirigido para a banheira mas para o lado. Telefono à recepção,
para explicar que o chuveiro lança a água para fora da banheira, e
mandam-me um empregado. Depois de constatar que efectivamente a
água sai para fora da banheira, telefonamos ao director. Acabámos
por nos encontrar todos no meio do quarto e o director, um pouco
incomodado, pergunta-me se eu quero beber qualquer coisa. Disse
que sim. Começamos todos a beber juntos, mas entretanto as
mulheres da limpeza tinham chegado e, de um momento para o outro,
aquilo transformou-se na festa mais divertida de Lisboa! Por pouco
não me diziam: "Tome o seu banho, não se preocupe connosco!", ao
passo que ao princípio o quarto era inabitável".
A. P. V.
|