"A
tragédia é a vida em grande plano, a comédia a vida em plano de
conjunto."
– Charlie Chaplin
"Só é digno de ser
levado a sério aquilo de que se riu ao menos uma vez."–
Nietzsche
A VERDADE é que nos tínhamos todos esquecido de Tati. E eis que,
de repente, a notícia da sua morte nos veio lembrar que ele estava
vivo. Tati morreu em Paris, esquecido, inactivo e mal-amado. E, no
entanto, ele deu à França e aos franceses o maior monumento do seu
cinema, esse filme invulgar e genial que é "Playtime" e que podia
ser por si só as suas "obras completas" e garantir-lhe a
eternidade.
A França parece dar-se mal com o excesso e a desmedida e aborrecer
o que perturba o seu gosto da pequena escala. Mesmo Versalhes,
feito para dar testemunho da grandeza soberana do Rei Sol; é um
modelo de harmonia ao lado do Escorial, que é feito à medida do
poder e da glória de Carlos V. Paris é uma cidade /
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harmoniosa, horizontal, onde nem Haussmann nem depois Napoleão
conseguiram inscrever a marca da monumentalidade e a medida
imperial. Não é por acaso que foi na única colina da cidade que se
fez o Sacré-Coeur, que é uma nódoa na paisagem, um monumento de mau
gosto. Mesmo o "Balzac" de Rodin, concebido como um parto feroz da
Natureza, lá está ao fim do Boulevard Raspail, disfarçado sob o
arvoredo. Paris são as estátuas de Maillot nas Tulherias e o
Jardim do Luxemburgo, o Pont Neuf e o Vert Galant – e mesmo a
Torre Eiffel é para ser vista de longe, como uma peça de "Meccano",
uma filigrana delicada e não uma montanha de aço a dominar a
cidade.
A França amou Hulot e as suas Férias, mas detestou Jacques Tati e
o seu "Playtime", esse filme que rivaliza com "O Nascimento de uma
Nação" e outras audácias americanas. Dois anos para construir uma
cidade transformada em estúdio, 15 000 metros quadrados de "décor",
5000 metros cúbicos de betão, 4000 metros quadrados de plástico,
1200 de vidro. Há nisto qualquer coisa de um Gaudí ou de um Lloyd
Wright, não de um Corbusier. Tati, cineasta de ideias largas, cai
em desgraça por uma questão de escala – como Ophüls, o único antes
dele a tentar fazer uma superprodução em França, esse filme único
que é o apogeu do barroco, feito por um vienense impenitente, "Lola
Montez".
Mas os mal-entendidos são muitos: "Playtime" não é uma obra-prima
do cinema cómico, mas do cinema "tout-court", a que abre as
portas, mais do que qualquer outra, à modernidade. Com ele, a
ditadura do "découpage" fica fora de moda, mesmo se é, como
acontece com tudo, para reaparecer sob outras formas uns anos
depois. A comicidade (mas o mesmo vale para qualquer género) não
nasce aqui nem das caretas dos cómicos nem, como em Jerry Lewis –
esse outro grande autor do burlesco caído em desgraça – da
multiplicação dos planos e do efeito pavloviano das surpresas da
montagem. Em "Playtime", como diz Tati, a causa e o efeito são
dados no mesmo plano, sem nunca forçar grosseiramente o olhar do
espectador, que vagueia, à procura do motivo, preso de diversas
seduções. Cada plano de "Playtime" é como uma tapeçaria
oitocentista ou um quadro de Brüeghel, um "puzzle" prodigioso de
achados lançados para o "écran" de forma perdulária. Conheço
poucos filmes (na realidade não me ocorre nenhum outro) onde a
mecânica do "gag" seja tão perfeita mas que ao mesmo tempo nos dê
a sensação permanente do "deixa-correr", poucos onde a banda
sonora seja tão cuidada mas que nos deixe porém a impressão do
improviso, nenhum outro onde a direcção de actores seja, como
aqui, quase maníaca mas onde resulte, apesar disso, o sentimento
de um filme feito apenas com figurantes – quase diria com o
público.
Que a crítica da época o tenha acusado de falta de imaginação
(quando há 50 ideias por plano) ou de se tratar de uma visão
apocalíptica dos tempos modernos (que diríamos então do filme de
Charlot?!) ou mesmo de um ataque à arquitectura dos nossos dias, e
que assim tenha não só passado ao lado do maior filme do cinema
francês depois de "Lola Montez" e da "Regra do Jogo", mas ajudado
a destruir a carreira de Tati, eis o que bastaria para dar um
remorso eterno aos autores de tão levianas barbaridades. Que o
Estado francês não tenha feito a tempo mais do que o gesto recente
do Governo socialista de querer resgatar essa injustiça, dando-lhe
dinheiro para filmar, em vez do fatal reconhecimento póstumo que
se deve aos génios como outrora aos santos, eis o que escandaliza
e entristece, sobretudo quando, como em Tati, o seu cinema nos
queria apenas fazer rir um pouco.
O mundo à medida do 70 mm
É que por detrás do sr. Hulot pouca gente soube ver a inteligência
de Tati, como no "idiota" dos filmes de Tashlin e depois dos seus
próprios, poucos souberam reconhecer o grande realizador que era
Jerry Lewís ou, como no maior deles todos, Buster Keaton, era
difícil ver mais do que a máscara do Pamplinas.
E, no entanto, Keaton – mais do que Chaplin, "clown" genial mas
realizador medíocre – era um legítimo herdeiro de Kafka ou de
Samuel Beckett, e os filmes de Jerry Lewis, mais do que os de
Woody Allen, são o melhor retrato da solidão americana da crise de
identidade do homem comum. Tati, esse, era um construtor rigoroso,
um cineasta intransigente, um visionário. Ele defendia-se de ser
um crítico do mundo moderno – é o que não falta, pelo contrário,
no cinema de hoje – mas apenas um observador amável cujo propósito
era o de trazer um pouco de humor a cada situação. Como o
inspector Maigret, que descobria o "louco de Bergerac" da janela
do seu quarto, Tati via o mundo duma janela larga, à medida do 70
mm, em plano de conjunto, para que cada um dos comparsas do
quotidiano pudesse ter, aos seus olhos e do público, a mesma
dimensão e as mesmas "chances": o riso não lhes desmascara o
ridículo, aproxima-os pela simpatia.
Ao contrário de Chaplin, "Deus ex machina" de todas as situações,
centro do mundo e do "écran", Hulot era um actor sem privilégios,
cujo único papel era cada vez mais o de nos fazer ver que qualquer
pessoa em qualquer altura se pode parecer com ele.
Dizia Cocteau, uma das mais belas "boutades" que «os americanos
podiam um dia rir-se de Einstein mas não podiam rir-se de
Picasso.» Tati, como Keatan, ChapIin ou Jerry Lewis, era um dos
poucos artistas deste século que poderia esperar corrigi-Io: os
marcianos, um dia, podem rir-se das teorias de Einstein ou de Marx
Plank mas vão sorrir por certo com "Playtime".
António-Pedro Vasconcelos
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