Realização, Argumento e Música:
Charles Chaplin / Fotografia: Karl Struss / Assistente
de Realização: Robert Aldrich / Assistentes de Produção:
Wheeler Dryden e Jerome Epstein / Consultor para a Fotografia:
Roland Totheroh / Direcção Artística e Décors: Eugene
Lourié / Direcção Musical: Ray Rasch / Canções:
Letra e Música de Charles Chaplin e Ray Rasch / Coreografia:
Charles Chaplin, André Eglevsky e Melissa Hayden / Montagem:
Joseph Engel / Interpretação: Charles Chaplin (Calvero),
Claire Boom (Terry), Sydney Chaplin (Neville), Norman Lloyd (Bodalink),
Buster Keaton (pianista no número final), Marjorie Bennett (Mrs.
Alsop), Wheeler Dryden (Médico e Palhaço), Nigel Bruce (Mr.
Postant), Barry Bernard (John Redfern), Leonard Mudie (Médico),
Snub Pollard (Músico), Loyal Underwood (Músico), Julian Ludwig
(Músico), André Eglevsky (Arlequim), Melissa Hayden (Columbina),
Charles Chaplin Jr. (policia na pantomina), Geraldine Chaplin,
Michael Chaplin, Josephine Chaplin (crianças, no início), etc.
Produção:
Charles Chaplin para a CELEBRATED — UNITED ARTISTS / Início das
filmagens: 19 de Novembro de 1951 / Fim das filmagens:
25 de Janeiro de 1952 / Fim da produção: 2 de Agosto de
1952 / Estreia Mundial: Odeon Theater, Londres, a 23 de
Outubro de 1952 / Estreia em Portugal: Cinema Tivoli, a 2
de Novembro de 1953 / Reposição comercial: Cinema
Monumental, a 26 de Março de 1974 / Duração: 131 minutos.
"Só há duas maneiras de ter razão"
escreveu algures Fernando Pessoa. "Uma é caIarmo-nos, a outra,
contradizermo-nos". Para Chaplin, cujo problema maior, nos anos
dificilíssimos que foram da estreia de Verdoux (1947) à de
Limelight (1952) era ter razão, ou que a sua razão lhe fosse
reconhecida, calar-se não era solução, antes era dar razão aos
adversários. Só lhe restava contradizer-se. Ou seja, abandonar o
anarquismo e o pessimismo que o seu último personagem arvorara e
regressar a outra vertente do seu génio: o melodramatismo. Um
grande melodrama com todos os ingredientes do mito chaplinesco e
que voltasse a dar a ver o Vagabundo (e a dá-lo a ver sob luz
total) deve ter-lhe parecido o melhor meio de reconciliar tudo e
todos com ele próprio, de se fazer "perdoar" e de se voltar a
fazer aceitar.
Nunca o vi escrito em parte
alguma, nem nenhuma declaração (de Chaplin, ou alheia) me autoriza
à convicção. Mas só consigo interpretar a escolha de Limelight,
depois de filmes sucessivamente mais imbricados com a realidade
global que o rodeava (Modern Times, The Great Dictator,
Monsieur Verdoux) pela vontade, consciente ou inconsciente,
de Chaplin em pôr fim às tempestades que ele próprio (com esses
filmes) desencadeara. A cabeça branca de Chaplin, a cabeça branca
de Calvero, sempre me pareceram a "bandeira branca" levantada para
restabelecer a paz e a harmonia. Aos seus detractores, oferecia-se
de corpo inteiro, pela primeira vez sem disfarces nem máscaras, e
oferecia uma história que não podia deixar de ser vista como a
história da sua vida. Mais ainda: como a história de quarenta anos
de espectáculo (circo, vaudeville, teatro e cinema) de que
Limelight seria simultaneamente o requiem e o
testamento.
Os comentadores têm destacado o
contraste ("contraste dramático") que caracteriza a obra e a vida
de Chaplin nos anos 40, Como escreveu o seu principal biógrafo
(David Robinson) "a década que se seguiu à estreia de O Ditador
foi, ao mesmo tempo, o período mais amargo da sua carreira pública
e profissional e o período em que conseguiu, finalmente, a
felicidade pessoal que até aí sempre havia tentado e sempre lhe
havia fugido".
Robinson referia-se, como se
saberá, às múltiplas campanhas que se desencadearam contra ele
(acusando-o de comunista, de libertino, de devasso, de corrupto) e
ao "casamento feliz" com Oona O'Neill, 35 anos mais nova do que
ele. O quarto casamento de Chaplin foi o único que durou, desde
1943 até à morte dele, em 1977.
Como se sabe, o auge dessa
campanha seguiu-se, em 1947, à estreia de Verdoux. O filme foi
banido ou proibido em muitos estados americanos e, na imprensa e
na rua, gritaram-se slogans como: "Chaplin é comunista"; "Rua com
o estrangeiro" (Chaplin havia mantido sempre a nacionalidade
inglesa e nunca se naturalizou) "Chaplin vive à nossa custa há
tempo demais"; "Chaplin para a Rússia". Pior do que tudo isso: o
filme fracassou comercialmente e a United Artists (a orgulhosa
casa que os "grandes artistas" de Hollywood haviam fundado em
1919) estava em muito maus lençóis, com dívidas que ascendiam ao
milhão de dólares. Sobre uma eventual venda e a distribuição de
percentagens, Chaplin zangou-se com toda a gente, incluindo a sua
velha amiga e admiradora Mary Pickford.
Na Primavera de 1947 (quase
coincidindo com a estreia de Verdoux) J. Parnell Thomas, um
senador de New Jersey, foi nomeado para presidir à Comissão de
Actividades Anti-Americanas. No ano da chamada "doutrina Truman"
(convidando todos os americanos a lutar contra a expansão
comunista) ia começar a famosa "caça às bruxas" que atingiu o auge
no início dos anos 50.
Ao princípio, Chaplin parece não
ter tomado muito a sério campanhas e Comissão. Chegou mesmo a
dizer que se a Comissão o convocasse compareceria vestido à
Charlot e meteria os interrogadores a ridículo. E provocou a
Comissão, em finais de 47, quando telegrafou a Picasso a pedir-lhe
que encabeçasse um comité de artistas franceses que protestasse,
junto da embaixada americana em Paris, contra a perseguição de que
estava a ser vítima, na América, o conhecido músico e poeta alemão
Hanns Eisler (Eisler foi deportado em 1948, acusado de ser
comunista).
Pedir a um "conhecido comunista"
(Picasso) que intercedesse por um homem acusado de comunismo (Eisler)
num pais em histeria anticomunista foi algo que imediatamente
alguns senadores consideraram "perilously close to treason".
Simultaneamente, Chaplin fez campanha com o partido progressista
do antigo vice-presidente Wallace, convencido que este ganharia as
eleições de 1948. Não ganhou e só nessa altura Chaplin pareceu
ter-se dado conta das ameaças que o rodeavam. Tinha planeado ir
mostrar Londres e os bairros em que tinha nascido a Oona. Percebeu
que, se fosse, não o deixariam voltar e que todos os seus bens e
toda a sua imensa fortuna estavam em causa. Da desenvoltura,
Chaplin passou a uma paranóia persecutória, bem reflectida nas
suas memórias. Como Verdoux, tremia de cada vez que lhe batiam à
porta. Entretanto, a família crescia: aos dois filhos que tinha
tido de Lita Grey (nos anos 20), Charles Jr. e Sydney,
juntaram-se, vinte anos mais novos, Geraldine (n. 1946), Michael
(n. 1947), Josephine Hannah (n. 1949) e Victoria (n. 1951). Eram
os quatro primeiros dos oito filhos de Chaplin com Oona, nascidos
entre os 56 e os 73 anos do pai (Christopher James, o mais novo,
nasceu em 1962).
Por coincidência ou não, é na
altura em que declara a Thomas "Não sou um comunista. Sou o que
vocês chamam "um apóstolo da paz", que Chaplin anunciou um novo
filme, ao princípio chamado Footlights, depois, LIMELIGHT.
Não será astuto vê-lo como a "representação" que Chaplin quis dar
perante a Comissão de Thomas. Só que não voltava vestido de
Charlot (sabia bem que qualquer ressurreição de Charlot era
impossível) nem vinha meter a ridículo ninguém. Ao mundo e aos
homens, oferecia em espectáculo a sua própria vida, na obra mais
autobiográfica da sua carreira.
Evidentemente, Calvero não é
Charlot ou não é só Charlot (Chaplin disse depois de ter retido
muitos elementos da vida de Frank Tinney, um celebérrimo palhaço
americano, que ainda tinha visto nos palcos, quando chegou à
América). Evidentemente, e por maiores que fossem os problemas por
que Chaplin passava nesses finais dos "forties", estava longe de
ser um "has-been" como Calvero, ou de viver num quarto a contar
tostões e a beber copos. Mas também, evidentemente, Chaplin sentiu
nessa altura, mais do que nunca, o drama enunciado na frase com
que abre LIMELIGHT: "The glamour of Iimelight from
wich age must pass as youth enters". E terá sentido, igualmente,
que um mundo acabava, precisamente esse mundo de que Calvero (como
ele) tinham sido figuras maiores: uma tradição, com quase 200
anos, que viera da "commedia dell'arte" para o circo e para o
music-hall e destes para o cinema mudo. Se quisermos, podemos ir
ainda mais longe: era o mundo do bobo — o mundo em que o bobo era
o único a quem tudo era permitido — que estava a acabar. Quem,
melhor, o podia homenagear e reafirmar do que o último e o mais
célebre filho dessa plêiade?
Pode ver-se no que acaba de dizer
muita especulação. Mas sabe-se que Chaplin abordou esta obra de
modo muito diferente a todas as outras. Em vez de um "script"
escreveu uma novela (onde são explícitos os traços autobiográficos
de quase todos os personagens); documentou-se, exaustivamente,
sobre as histórias de music-hall no ano em que começa o filme
(1914, precisamente o ano em que ele iniciara a carreira
cinematográfica) e nunca ocultou que Calvero era, também, uma
homenagem ao seu pai, que nascera e decaíra como ele e que, como
ele, passara da efémera glória à bebida e completo esquecimento.
E será casual o facto de ter
confiado o papel de Neville — o seu rival, aquele que lhe vai
"roubar" Claire Bloom — ao próprio filho, Sydney? No filme, ao
contrário da vida, Calvero não acredita que Terry (aproximadamente
da idade de Oona, quando ele conheceu Oona) esteja sinceramente
apaixonada por ele ou possa ser feliz com ele. Sempre prevê que um
dia um jovem vai chegar... Que esse jovem seja o seu próprio filho
(que, aliás, teve um "affair" com Claire Bloom durante as
filmagens) dá que pensar.
Aliás, Chaplin convocou para esta
obra não só inúmeros fantasmas do passado (o número das pulgas era
um dos seus números favoritos, que, ao menos desde The Circus,
sempre tinha querido meter num filme) como os fantasmas do
presente. E lá estão, na primeira sequência (miúdos da rua)
Geraldine, Michael e Josephine Chaplin, os três filhos mais velhos
do seu casamento com Oona. A própria Oona dobrou, em duas
sequências, Claire Bloom.
Mas o maior dos espectros deste
filme é, sem dúvida, Buster Keaton. À época quase esquecido,
aquele que, hoje, muitos consideram ter sido autor e actor de
génio superior ao de Chaplin, foi convocado para esse genial
número musical que é, simultaneamente, apogeu do "slapstick" e
máxima homenagem a ele. E é difícil não reconhecer que, na sua
famosa cena com as pautas, quase rouba o número a Chaplin, da
primeira e única vez em que este aceitou contracenar com um grande
cómico (Jack Oakie e Martha Raye, respectivamente em O Ditador
e Verdoux, também o foram, mas pertenciam a outra família e
outras tradições).
LIMELlGHT
é um filme concebido em função desse "clou": a glória do "slapstick"
(o número das pulgas, o violinista embruxado, a queda no tambor) e
o triunfo do grande cómico coincidindo com a sua morte. Calvero
morre no palco, olhando a sua última criação (Claire Bloom) que
dança circularmente, refazendo o eterno retomo. Com ele, e nessa
figura circular tão cara a Chaplin, "the show goes on", na melhor
tradição do " Limelight ".
É o fim perfeito, para o perfeito
melodrama e Chaplin não descurou um elemento para essa apoteose: o
seu hino à vida, junto a Claire Bloom; a cena em que esta volta a
andar; o tema da Colombina e de Arlequim; a reflexão sobre a arte
como vaidade do mundo e glória do mundo. Tudo, neste filme, aponta
para o perfeito testamento e sabe-se que Chaplin o concebeu como
tal, sempre julgando — e dizendo — que se tratava do seu último
filme.
Se o não foi, continua a ser o
filme mais recapituIatório de toda a sua carreira, aquele que mais
exemplarmente reflecte o seu credo artístico e o seu credo humano.
De todas as suas máscaras, mais ainda do que Charlot, Calvero é a
suma representação de Chaplin, na sua grandeza e no seu lado
"humano, demasiado humano".
Aos 63 anos, acusado por todos os
lados, mais controverso do que nunca, Chaplin legou ao mundo,
através do mais exacerbado melodramatismo (sustentado pela
celebérrima música deste filme e pelo seu celebérrimo tema) a
coreografia exacta das suas crenças e dúvidas, da sua arte e do
lugar que nela assumiu.
Mas se com Limelight
voltaram todas as apoteoses (as estreias célebres de Londres,
Paris ou Roma com "toda a Europa" aos pés dele) só não voltou o
que ele mais teria tentado: a reconciliação com o público
americano. Já a bordo do Queen Elisabeth para uma estreia que
sempre quis londrina (em homenagem à sua cidade natal) Chaplin foi
secamente informado que se cumprira a ameaça que desde 1948 temia:
o governo americano não o deixava voltar e Limelight só
vinte anos depois (em 1972) pôde ser visto na América. Em 1952,
iniciava-se o "exílio europeu" de Chaplin, que ia viver na Suíça,
em Vevey, os últimos 25 anos da sua vida. Se, com Limelight,
não terminou a sua obra, com Limelight terminara os 40 anos
da sua vida na América. Em 1912, nasceu Charlot. Em 1952, morreu
Calvero. Nesses 40 anos cabe um mundo. E é desse modo — e sobre
esse mundo — que Limelight é feito. Quando Charlot começou,
a publicidade falava de "riso e talvez uma lágrima" (como se diz
na epigrafe de The Kid). Limelight inverte a regra. Se nos
convida ao riso — em tantos e tão geniais momentos — convida-nos
sobretudo às lágrimas. E mesmo quem se recusar à lógica do
melodrama, dificilmente verá Limelight de olhar enxuto. Porque em
Limelight se exprime (parafraseando Calvero) não sentido da
vida, mas desejo da vida. Só quem pôs esse desejo acima de
qualquer sentido se pode perfazer na morte no palco, olhando o
movimento que o perpetua, e tendo ao seu lado, na profundidade de
campo — último velador — o único homem (Buster Keaton) que tanto
como ele acreditou na força desse desejo e na capacidade
transfiguradora do cinema para o exprimir.
JOÃO BÉNARD DA COSTA
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