Pormenor do retrato a óleo de José Estêvão existente na sala de professores.

Escola Secundária José Estêvão
SEUC - Nível Secundário

 
Unidade 12 - PORTUGUÊS


Heteronímia em Fernando Pessoa - Álvaro de Campos

 

Acerca da “Ode Triunfal” (excerto na pág. 108 do Guia)

«Recordemos, em primeiro lugar, que foi com esta “ode” (canto de louvor) que “nasceu” Álvaro de Campos, poeta futurista/sensacionista. Ou seja: um Campos entusiasta do seu tempo, da modernidade, discípulo confesso de Walt Whitman e Caeiro.

A “Ode Triunfal” está escrita em verso livre e amplo (num total de 240 versos) e em estilo profundamente inovador – ao contrário do que sucederia no “Opiário” (fase decadentista) – marcado pela: grandiloquência (visível, nomeadamente, nas exclamações e interjeições), exaltação épica (Eia! Há-lá!), ritmo esfuziante, torrencial; anáforas, apóstrofes repetidas, enumerações, exclamações, interjeições, onomatopeias (verso 24), neologismos (ferreando), fonemas substantivados (verso 5), estrangeirismos, grafismos inovadores, frases nominais e infinitivas, oximoros; misturas semânticas ousadas: máquinas/ filósofos/ termos técnicos/ referências míticas; expressões populares/ expressões eruditas.

Podemos considerar nesta ode três momentos:

Introdução (vv. 1 – 4)

Marcada pela vontade de “cantar”, mas confessadamente em situação de “não canto” – “tenho febre e escrevo”.

Desenvolvimento (vv. 5 – 238)

Marcado pela busca de identificação com tudo – máquinas, pessoas, tempos; abertura para o exterior e anulação do Eu pelo excesso das sensações; cosmopolitismo – cidade, luzes, modernidade, Europa; canto de todas as actividades contemporâneas – comércio, indústria, agricultura, política, imprensa, bordéis, gente reles; à mistura com uma vontade de identificação com o moderno que vai até à perversão sexual (vv. 72, 86-108 e 116-117). Este canto de triunfo vai em crescendo até ao final, mas com “quebras”: referência a escândalos e à corrupção (coexistentes com a modernidade exaltada) e, sobretudo, o discurso parentético dos versos 182 a 190, com a evocação nostálgica da infância e do mundo rural em desapropriação. Estas quebras, à mistura com a referência à febre, do primeiro verso, ao canto também do Passado (vv. 17-22) e à impotência manifestada na Conclusão, afastam o poema dos preceitos estritos do Futurismo à Marinetti.

Conclusão (o último verso)

Um verso de conclusão, espécie de “finda”: “Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!” – que representa uma confissão de fracasso e um retorno ao ponto inicial, à febre  [Bibl.]           

 

 

Poema “Aniversário”

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer.

 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui – ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

 

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

 

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado -,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

 

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado na algibeira!...

 

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

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