Acerca da “Ode Triunfal”
(excerto na pág. 108 do Guia)
«Recordemos, em primeiro
lugar, que foi com esta “ode” (canto de louvor) que
“nasceu” Álvaro de Campos, poeta futurista/sensacionista.
Ou seja: um Campos entusiasta do seu tempo, da modernidade,
discípulo confesso de Walt Whitman e Caeiro.
A
“Ode Triunfal” está escrita em verso livre e amplo (num
total de 240 versos) e em estilo profundamente inovador – ao
contrário do que sucederia no “Opiário” (fase
decadentista) – marcado pela: grandiloquência (visível,
nomeadamente, nas exclamações e interjeições), exaltação
épica (Eia! Há-lá!), ritmo esfuziante, torrencial;
anáforas, apóstrofes repetidas, enumerações, exclamações,
interjeições, onomatopeias (verso 24), neologismos (ferreando),
fonemas substantivados (verso 5), estrangeirismos, grafismos
inovadores, frases nominais e infinitivas, oximoros; misturas
semânticas ousadas: máquinas/ filósofos/ termos técnicos/
referências míticas; expressões populares/ expressões
eruditas.
Podemos
considerar nesta ode três momentos:
Introdução
(vv. 1 – 4)
Marcada
pela vontade de “cantar”, mas confessadamente em situação
de “não canto” – “tenho febre e escrevo”.
Desenvolvimento
(vv. 5 – 238)
Marcado pela busca de
identificação com tudo – máquinas, pessoas, tempos;
abertura para o exterior e anulação do Eu pelo excesso das
sensações; cosmopolitismo – cidade, luzes, modernidade,
Europa; canto de todas as actividades contemporâneas – comércio,
indústria, agricultura, política, imprensa, bordéis, gente
reles; à mistura com uma vontade de identificação com o
moderno que vai até à perversão sexual (vv. 72, 86-108 e
116-117). Este canto de triunfo vai em crescendo até ao
final, mas com “quebras”: referência a escândalos e à
corrupção (coexistentes com a modernidade exaltada) e,
sobretudo, o discurso parentético dos versos 182 a 190, com a
evocação nostálgica da infância e do mundo rural em
desapropriação. Estas quebras, à mistura com a referência
à febre, do primeiro verso, ao canto também do Passado (vv.
17-22) e à impotência manifestada na Conclusão, afastam o
poema dos preceitos estritos do Futurismo à Marinetti.
Conclusão
(o último verso)
Um
verso de conclusão, espécie de “finda”: “Ah não
ser eu toda a gente e toda a parte!” – que representa
uma confissão de fracasso e um retorno ao ponto inicial, à febre.»
[Bibl.]
Poema
“Aniversário”
No
tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião
qualquer.
No
tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui – ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O
que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através
das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No
tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos
dentes!
Vejo
tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há
aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça,
com mais copos,
O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na
sombra debaixo do alçado -,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha
causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára,
meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado na algibeira!...
O
tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
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