Poema a que respeita o questionário da pág. 103 do Guia de Aprendizagem:
|
Vem
sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos
as mãos).
Depois
pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para o pé do fado,
Mais
longe que os deuses.
Desenlacemos
as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente.
E
sem desassossegos grandes.
Sem
amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E
sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos
tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo
correr o rio e vendo-o.
Colhamos
flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento –
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos
inocentes da decadência.
Ao
menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem
fomos mais do que crianças.
E
se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim – à beira-
rio,
Pagã
triste e com flores no regaço.
|
Acerca do poema:
«Trata-se
de um poema no qual é possível discernir três partes. Na 1ª
parte, constituída pelas duas primeiras quadras, encontramos,
inicialmente, um convite: “Vem sentar-te comigo, Lídia,
à beira do rio (Enlacemos as mãos)”. Só que este
breve momento de “gozo”, fruição epicurista do presente,
é impossibilitado pelo “fitemos o seu curso e
aprendamos/ que a vida passa”. O rio, símbolo- arquétipo
do curso do tempo para a morte, ao dar motivo à reflexão –
“Depois pensemos, crianças adultas,/ que a vida passa”
impossibilitou o prazer. (Esse foi o “erro” que,
certamente, o mestre Caeiro não cometeria – limitar-se-ia a
ver, a olhar o rio e a ser contente.)
De
imediato, e em consequência da aprendizagem da efemeridade da
vida, um 2º momento no poema – constituído igualmente por
duas quadras: “Desenlacemos as mãos, porque não vale a
pena cansarmo-nos”. Ou seja: E então, mais vale a
serenidade, a calma, “Mais vale saber passar
silenciosamente/ e sem desassossegos grandes”.
Preconiza-se uma filosofia de vida que consiste em recusar,
renunciar voluntariamente ao prazer momentâneo, evitando os
amores, os ódios, as paixões, as invejas, os cuidados. É
que, com eles ou sem eles, o nosso destino final é o mesmo:
passar, ir para o tal “mar muito longe, para o pé do
Fado”, de que se falara na segunda quadra. E,
pela positiva, bastará amarem-se com tranquilidade, pensando
que, se quisessem, poderiam “trocar beijos e abraços e
carícias”. Mas que “mais vale estar sentado
tranquilamente ao pé um do outro”, colhendo flores que
suavizem o momento, o deles, pagãos inocentes da decadência (1).
Que
vantagem haverá, então, nesta opção de renúncia voluntária
ao prazer efémero do carpe diem? Isso é dito na 3ª e
última parte do poema, nas duas últimas quadras, e com
recurso a duas perífrases – “se for sombra antes”
e “Se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro
sombrio”. É que, se morrerem um antes do outro, o que
fica não terá de sofrer tanto a perda do que partiu.
Ficar-lhe-á apenas a doce lembrança, que não “fere” nem
arde, de não terem sido os dois mais do que crianças, a
suavidade de, no caso de ser ele a ficar, poder recordá-la, “à
beira- rio,/ pagã triste e com flores no regaço” (uma
imagem plástica lindíssima, como recordação suave).
Segundo
Ângel Crespo, este poema encerra vários temas que nele se
cruzam:
|
-
o rio como imagem da vida que passa;
- a ideia de que a vida vai para lá dos deuses;
- a infância como idade ideal;
- um ideal de vida passiva e silenciosa;
- a
ideia de que o amor ideal não se realiza eroticamente;
- a falta de crenças filosóficas e dogmáticas como
meio de se manter sossegado;
- o paganismo. |
Em
todo o caso um poema sombrio, melancólico, na antevisão da
morte e no preconizar, como lenitivo, a ausência de dor, a
ataraxia.» [Bibl.]
NOTAS:
(1)
“Pagãos porque inocentes da culpa da “decadência” de
que participaria o cristianismo; “pagãos da decadência”,
porque o “verdadeiro” paganismo foi o greco- romano e esse
mundo ruiu, já não volta; mas “pagãos” também, para
poderem ser inocentes, para não sofrer da culpa, que teria
vindo com o “cristianismo”, uma vez que Ricardo Reis, num
dos seus prefácio a Caeiro, pensa que “a sensibilidade
cristã gravita em torno à ideia do pecado” (Manuel Gusmão
in “Introdução a Poemas de Ricardo Reis).
Epicurismo
e Estoicismo são filosofias da Antiguidade Clássica a. C., em que Ricardo Reis encontra uma resposta para a questão
primordial do sofrimento e da morte.
O
epicurismo (do
filósofo grego Epicuro) preconizava o repouso e a ataraxia
(ausência de perturbação), gozando a plenitude do momento
presente (carpe diem – aproveita o dia). Assim, evitavam-se
as ciladas do destino, presentes nas paixões e nas sensações
fortes que prendem o Homem ao mundo transitório; para os
epicuristas, o verdadeiro prazer é o estável, moderado, o
que tende para a ausência de dor e de perturbação.
O estoicismo
era uma filosofia que propunha a aceitação voluntária do
destino (involuntário), pois este estaria acima de tudo, até
dos próprios deuses. Neste sentido, a liberdade seria o
conformar-se com a ordem natural das coisas, com o Destino,
através da razão e da autodisciplina mental.
|