Pormenor do retrato a óleo de José Estêvão existente na sala de professores.

Escola Secundária José Estêvão
SEUC - Nível Secundário

 
Unidade 12 - PORTUGUÊS


Heteronímia em Fernando Pessoa - Ricardo Reis


Poema a que respeita o questionário da pág. 103 do Guia de Aprendizagem:

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.

                        
            (Enlacemos as mãos).

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para o pé do fado,

                        
            Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente.

                        
            E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,

                        
            E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro

                        
            Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento –
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,

                        
            Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos

                        
            Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim – à beira- rio,

                        
            Pagã triste e com flores no regaço.


Acerca do poema:

«Trata-se de um poema no qual é possível discernir três partes. Na 1ª parte, constituída pelas duas primeiras quadras, encontramos, inicialmente, um convite: “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio (Enlacemos as mãos)”. Só que este breve momento de “gozo”, fruição epicurista do presente, é impossibilitado pelo “fitemos o seu curso e aprendamos/ que a vida passa”. O rio, símbolo- arquétipo do curso do tempo para a morte, ao dar motivo à reflexão – “Depois pensemos, crianças adultas,/ que a vida passa” impossibilitou o prazer. (Esse foi o “erro” que, certamente, o mestre Caeiro não cometeria – limitar-se-ia a ver, a olhar o rio e a ser contente.)

De imediato, e em consequência da aprendizagem da efemeridade da vida, um 2º momento no poema – constituído igualmente por duas quadras: “Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos”. Ou seja: E então, mais vale a serenidade, a calma, “Mais vale saber passar silenciosamente/ e sem desassossegos grandes”. Preconiza-se uma filosofia de vida que consiste em recusar, renunciar voluntariamente ao prazer momentâneo, evitando os amores, os ódios, as paixões, as invejas, os cuidados. É que, com eles ou sem eles, o nosso destino final é o mesmo: passar, ir para o tal “mar muito longe, para o pé do Fado”, de que se falara na segunda quadra. E, pela positiva, bastará amarem-se com tranquilidade, pensando que, se quisessem, poderiam “trocar beijos e abraços e carícias”. Mas que “mais vale estar sentado tranquilamente ao pé um do outro”, colhendo flores que suavizem o momento, o deles, pagãos inocentes da decadência (1).

Que vantagem haverá, então, nesta opção de renúncia voluntária ao prazer efémero do carpe diem? Isso é dito na 3ª e última parte do poema, nas duas últimas quadras, e com recurso a duas perífrases – “se for sombra antes” e “Se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio”. É que, se morrerem um antes do outro, o que fica não terá de sofrer tanto a perda do que partiu. Ficar-lhe-á apenas a doce lembrança, que não “fere” nem arde, de não terem sido os dois mais do que crianças, a suavidade de, no caso de ser ele a ficar, poder recordá-la, “à beira- rio,/ pagã triste e com flores no regaço” (uma imagem plástica lindíssima, como recordação suave).

Segundo Ângel Crespo, este poema encerra vários temas que nele se cruzam:

- o rio como imagem da vida que passa;
- a ideia de que a vida vai para lá dos deuses;
- a infância como idade ideal;
- um ideal de vida passiva e silenciosa; 
- a ideia de que o amor ideal não se realiza eroticamente;
- a falta de crenças filosóficas e dogmáticas como meio de se manter sossegado;
- o paganismo.

Em todo o caso um poema sombrio, melancólico, na antevisão da morte e no preconizar, como lenitivo, a ausência de dor, a ataraxia.» [Bibl.]


NOTAS:

(1) “Pagãos porque inocentes da culpa da “decadência” de que participaria o cristianismo; “pagãos da decadência”, porque o “verdadeiro” paganismo foi o greco- romano e esse mundo ruiu, já não volta; mas “pagãos” também, para poderem ser inocentes, para não sofrer da culpa, que teria vindo com o “cristianismo”, uma vez que Ricardo Reis, num dos seus prefácio a Caeiro, pensa que “a sensibilidade cristã gravita em torno à ideia do pecado” (Manuel Gusmão in “Introdução a Poemas de Ricardo Reis).

 

Epicurismo e Estoicismo são filosofias da Antiguidade Clássica  a. C., em que Ricardo Reis encontra uma resposta para a questão primordial do sofrimento e da morte.

O epicurismo (do filósofo grego Epicuro) preconizava o repouso e a ataraxia (ausência de perturbação), gozando a plenitude do momento presente (carpe diem – aproveita o dia). Assim, evitavam-se as ciladas do destino, presentes nas paixões e nas sensações fortes que prendem o Homem ao mundo transitório; para os epicuristas, o verdadeiro prazer é o estável, moderado, o que tende para a ausência de dor e de perturbação.

O estoicismo era uma filosofia que propunha a aceitação voluntária do destino (involuntário), pois este estaria acima de tudo, até dos próprios deuses. Neste sentido, a liberdade seria o conformar-se com a ordem natural das coisas, com o Destino, através da razão e da autodisciplina mental.

 

Página anterior   Página inicial   Página seguinte