1
- No poema “Autopsicografia”, Fernando Pessoa
apresenta a criação estética como um processo de
intelectualização de emoções sentidas: o leitor não tem
acesso à dor sentida nem à dor fingida, mas só à dor
escrita, só ao poema, susceptível de gerar emoção estética.
Noutro texto, considera que o grau máximo do poeta seria
aquele que fosse “vários
poetas, um poeta dramático escrevendo em poesia lírica”
(tal como um autor cria as personagens do seu romance, o poeta
dramático criaria as personagens, não de um romance, porque
não teriam acção efectiva, mas da sua poesia lírica - ou
seja: vários poetas/heterónimos, várias expressões líricas).
O progresso do poeta dentro de si próprio realiza-se pela vitória
sobre a sinceridade, pela conquista da capacidade de fingir.
Poderemos, pois, inferir dos poemas “Autopsicografia” e
“Isto” que a heteronímia surge como parte desse processo
intelectualizante.
Nas
palavras de Pessoa: “
Por qualquer motivo temperamental que me não proponho
analisar, nem importa que analise, construí dentro de mim várias
personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a
que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus
sentimentos e ideias, os escreveria. Assim têm estes poemas
de Caeiro, os de Ricardo Reis e os de Álvaro de Campos que
ser considerados.”
2
- «Fernando Pessoa passa a escrever em seu próprio
nome e em nome destas personagens que são emanações suas,
mas a que atribui (sobretudo a Alberto Caeiro, Ricardo Reis e
Álvaro de Campos) uma biografia, uma personalidade, um
pensamento, um estilo. A origem mental dos heterónimos, diz
na bem conhecida carta a Adolfo Casais Monteiro, está na sua “tendência
orgânica para a despersonalização e para a simulação”.
Mas
devemos considerá-los pelos menos em dois planos distintos: o
plano interior, isto é, correspondente à cisão da sua vida
psíquica ou à coabitação, nela, de diferentes
personalidades virtuais; e o plano projectivo, ou seja, o
desejo de intervenção de Pessoa na dinâmica do grupo e na
vida social e cultural portuguesa.
Quanto
ao primeiro, estamos em presença de uma navegação íntima,
à procura do “graal” da sua alma, ou da verdade última que ela é, para além
das suas diversas inclinações, ou antes, para além das “Máscaras” ou das
“personas” que encontra dentro de si, por vezes
diferentes ou até contraditórias. Sob este ponto de vista, a
obra de Fernando Pessoa procura responder àquela pergunta
original de todo o homem atento: quem
sou eu? E ainda: que
é ser eu?
(...)Fernando
Pessoa envolve-se então numa (inegualada na literatura
universal) procura da sua própria identidade. Órfão do pai
e desgarrado da mãe, temeroso da entrega ao sentimento
amoroso, solitário e privado da consolação familiar, o poeta é um homem vazio que, no seu desamparo, cria um mundo para
descobrir a sua verdadeira identidade».
[Bibl.]
3
- «Mas há nos heterónimos um segundo plano, que é o
da projecção para o exterior, o da provocação ao sossego
habitual da atmosfera lisboeta, o da adesão à inquietude
desses anos em que o modernismo e o futurismo lançam o ataque
final contra o século XIX romântico e neoclássico, puritano
e espartilhado, enfim uma crítica indisciplinadora a que não
é indiferente a sua torturada ansiedade patriótica.
(...)
Pode imaginar-se a influência que uma tal explosão de
inventividade terá tido sobre os companheiros de café e de
tertúlia na Lisboa do tempo... Encontram-se na verdade
perante uma visível manifestação de génio, acentuada pelo
carácter tranquilo e um pouco misterioso de Fernando Pessoa
que, para lá do pouco que dizia, se calava longamente em silêncios
intrigantes. O próprio poeta acentua este clima de mistério
ao brincar com os amigos ao jogo dos heterónimos, procurando
impô-los como pessoas verdadeiras, que discordam entre si ou
que até criticam o próprio Fernando Pessoa. Há aqui uma
faceta lúdica, que vai a carácter, aliás, com uma certa
dimensão infantil que Pessoa sempre conservou.»
[Bibl.]
4
- Em
síntese, razões plausíveis para a existência da heteronímia
pessoana:
-
a “tendência orgânica
para a despersonalização e para a simulação”;
-
sentimentos de solidão e dispersão, falta de unidade do
eu, (as máscaras);
- o fingimento como processo de criação poética, pelo domínio
da razão sobre as emoções;
- uma intensa vida interior, um sentido de busca do absoluto;
- uma faceta lúdica de reminiscências infantis;
- alguma
irreverência e provocação futurista no ambiente cultural e
literário da sua época.
5
- Afirmou Fernando Pessoa:
“É sério tudo o que escrevi sob os nomes de Caeiro, Reis,
Álvaro de Campos. Em qualquer destes pus um profundo conceito
de vida, diverso em todos três, mas em todos gravemente
atento à importância misteriosa de existir.”
Se,
por um lado, os diversos “Pessoas” são diferentes entre
si, por outro, são todos eles contemporâneos, enquadrados
nas correntes europeias da época e sofrendo idênticas crises
de valores e de consciência.
Com
Fernando Pessoa ele-mesmo, todos partilham o paganismo, a dor
de pensar e o regresso à infância como a idade ideal (em
Reis, o “adulto criança”).
Pessoa e Reis encontram afinidades na estética neoclássica e
na intelectualização das emoções. Pessoa e Campos
assemelham-se na fragmentação do “eu”, na dificuldade ou
impossibilidade de relacionamento com os outros, na evasão no
sonho, nos sentimentos de tédio, abulia, cansaço;
sentimentos que também são evidentes na poesia de Reis, pela
sua descrença e demissão da vida.
Com o “mestre”
Caeiro, aprenderam o valor da realidade exterior, presente e
concreta, apreendida ingenuamente pelos sentidos; mas em Reis,
além do sentir, também há a aceitação do pensar, como
partes integrantes do Homem e uma importância concedida à
Razão como disciplinadora do corpo e da mente; Campos
diferenciou-se de Caeiro, na substituição da realidade
exterior bucólica pela tecnológica, na apreensão subjectiva
das sensações (não a sensações das coisas como são mas a
sensação das coisas conforme são sentidas) e no desejo
indisciplinado de querer viver todas as sensações de todas
as maneiras.
|