Pormenor do retrato a óleo de José Estêvão existente na sala de professores.

Escola Secundária José Estêvão
SEUC - Nível Secundário

 
Unidade 12 - PORTUGUÊS


Heteronímia em Fernando Pessoa - Introdução


1 - No poema “Autopsicografia”, Fernando Pessoa apresenta a criação estética como um processo de intelectualização de emoções sentidas: o leitor não tem acesso à dor sentida nem à dor fingida, mas só à dor escrita, só ao poema, susceptível de gerar emoção estética. Noutro texto, considera que o grau máximo do poeta seria aquele que fosse “vários poetas, um poeta dramático escrevendo em poesia lírica” (tal como um autor cria as personagens do seu romance, o poeta dramático criaria as personagens, não de um romance, porque não teriam acção efectiva, mas da sua poesia lírica - ou seja: vários poetas/heterónimos, várias expressões líricas). O progresso do poeta dentro de si próprio realiza-se pela vitória sobre a sinceridade, pela conquista da capacidade de fingir. Poderemos, pois, inferir dos poemas “Autopsicografia” e “Isto” que a heteronímia surge como parte desse processo intelectualizante.

Nas palavras de Pessoa: “ Por qualquer motivo temperamental que me não proponho analisar, nem importa que analise, construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus sentimentos e ideias, os escreveria. Assim têm estes poemas de Caeiro, os de Ricardo Reis e os de Álvaro de Campos que ser considerados.”

           

2 - «Fernando Pessoa passa a escrever em seu próprio nome e em nome destas personagens que são emanações suas, mas a que atribui (sobretudo a Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos) uma biografia, uma personalidade, um pensamento, um estilo. A origem mental dos heterónimos, diz na bem conhecida carta a Adolfo Casais Monteiro, está na sua “tendência orgânica para a despersonalização e para a simulação”.

Mas devemos considerá-los pelos menos em dois planos distintos: o plano interior, isto é, correspondente à cisão da sua vida psíquica ou à coabitação, nela, de diferentes personalidades virtuais; e o plano projectivo, ou seja, o desejo de intervenção de Pessoa na dinâmica do grupo e na vida social e cultural portuguesa.

Quanto ao primeiro, estamos em presença de uma navegação íntima, à procura do “graal” da sua alma, ou da verdade última que ela é, para além das suas diversas inclinações, ou antes, para além das “Máscaras” ou das “personas” que encontra dentro de si, por vezes diferentes ou até contraditórias. Sob este ponto de vista, a obra de Fernando Pessoa procura responder àquela pergunta original de todo o homem atento: quem sou eu? E ainda: que é ser eu?

(...)Fernando Pessoa envolve-se então numa (inegualada na literatura universal) procura da sua própria identidade. Órfão do pai e desgarrado da mãe, temeroso da entrega ao sentimento amoroso, solitário e privado da consolação familiar, o poeta é um homem vazio que, no seu desamparo, cria um mundo para descobrir a sua verdadeira identidade».  [Bibl.]

 

3 - «Mas há nos heterónimos um segundo plano, que é o da projecção para o exterior, o da provocação ao sossego habitual da atmosfera lisboeta, o da adesão à inquietude desses anos em que o modernismo e o futurismo lançam o ataque final contra o século XIX romântico e neoclássico, puritano e espartilhado, enfim uma crítica indisciplinadora a que não é indiferente a sua torturada ansiedade patriótica.

(...) Pode imaginar-se a influência que uma tal explosão de inventividade terá tido sobre os companheiros de café e de tertúlia na Lisboa do tempo... Encontram-se na verdade perante uma visível manifestação de génio, acentuada pelo carácter tranquilo e um pouco misterioso de Fernando Pessoa que, para lá do pouco que dizia, se calava longamente em silêncios intrigantes. O próprio poeta acentua este clima de mistério ao brincar com os amigos ao jogo dos heterónimos, procurando impô-los como pessoas verdadeiras, que discordam entre si ou que até criticam o próprio Fernando Pessoa. Há aqui uma faceta lúdica, que vai a carácter, aliás, com uma certa dimensão infantil que Pessoa sempre conservou.»   [Bibl.]

 

4 - Em síntese, razões plausíveis para a existência da heteronímia pessoana:

- a “tendência orgânica para a despersonalização e para a simulação”;

- sentimentos de solidão e dispersão, falta de unidade do eu, (as máscaras);

- o fingimento como processo de criação poética, pelo domínio da razão sobre as emoções;

- uma intensa vida interior, um sentido de busca do absoluto;

- uma faceta lúdica de reminiscências infantis;

- alguma irreverência e provocação futurista no ambiente cultural e literário da sua época.

 

5 - Afirmou Fernando Pessoa: “É sério tudo o que escrevi sob os nomes de Caeiro, Reis, Álvaro de Campos. Em qualquer destes pus um profundo conceito de vida, diverso em todos três, mas em todos gravemente atento à importância misteriosa de existir.”   

Se, por um lado, os diversos “Pessoas” são diferentes entre si, por outro, são todos eles contemporâneos, enquadrados nas correntes europeias da época e sofrendo idênticas crises de valores e de consciência.

Com Fernando Pessoa ele-mesmo, todos partilham o paganismo, a dor de pensar e o regresso à infância como a idade ideal (em Reis, o “adulto criança”). Pessoa e Reis encontram afinidades na estética neoclássica e na intelectualização das emoções. Pessoa e Campos assemelham-se na fragmentação do “eu”, na dificuldade ou impossibilidade de relacionamento com os outros, na evasão no sonho, nos sentimentos de tédio, abulia, cansaço; sentimentos que também são evidentes na poesia de Reis, pela sua descrença e demissão da vida.

Com o “mestre” Caeiro, aprenderam o valor da realidade exterior, presente e concreta, apreendida ingenuamente pelos sentidos; mas em Reis, além do sentir, também há a aceitação do pensar, como partes integrantes do Homem e uma importância concedida à Razão como disciplinadora do corpo e da mente; Campos diferenciou-se de Caeiro, na substituição da realidade exterior bucólica pela tecnológica, na apreensão subjectiva das sensações (não a sensações das coisas como são mas a sensação das coisas conforme são sentidas) e no desejo indisciplinado de querer viver todas as sensações de todas as maneiras.

 

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