O
primeiro e único livro em português que Fernando Pessoa
publicou em vida foi MENSAGEM
(1934), um “livro de versos nacionalistas”, composto ao
longo de cerca de duas décadas, que o poeta estruturou em três
partes, correspondentes a etapas da evolução do Império
Português - nascimento (os construtores do Império), realização
(o sonho marítimo e a obra das descobertas) e morte (a imagem
do Império moribundo, com a fé da ressurreição do espírito
lusíada do império espiritual, moral e civilizacional.).
I)
A primeira parte - Brasão - começa
pela localização de Portugal na Europa e em relação ao
mundo, afirmando o valor simbólico do seu papel na civilização
ocidental quando afirma "O rosto com que fita é
Portugal!"... Depois define o mito como um nada capaz de
gerar os impulsos necessários à construção da realidade (o
Sebastianismo é o mito que se manifesta nos momentos de crise
nacional).
Passa
a apresentar Portugal como um povo heróico e guerreiro,
predestinado a construir o império marítimo. Refere mitos e
figuras históricas de Portugal (de Viriato até D. Sebastião).
Transmite a imagem de um Portugal erguido à custa do esforço
abnegado de muitos heróis, que frequentemente não agiram por
interesse próprio, mas motivados por forças maiores, quase
que predestinados a grandes feitos: o nascimento. Contém,
entre outros, os poemas “O dos Castelos”, “Ulisses” (“O
mito é o nada que é tudo”), “D. Dinis”, “D.
Sebastião, rei de Portugal”.
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O DOS CASTELOS
A
Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.
O
cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar
esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que
fita é Portugal.
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«Para
Pessoa, Portugal é o rosto da Europa, aquele que “fita”
(o verbo fitar aparece três vezes neste pequeno poema, como
se de uma verdadeira obsessão europeia e portuguesa se
tratasse), o mar ocidental, seu destino, seu futuro (e futura
glória e dor, como sabemos e Pessoa reafirmará).» [Bibl.]
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D. DINIS
Na noite escreve um seu Cantar
de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio,
esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar
futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
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«Camões
consagrara a D. Dinis três estrofes do canto III, em que
pusera em relevo a sua faceta de povoador, de reconstrutor de
cidades e fortalezas, de fundador da universidade, esquecendo,
curiosamente, a sua faceta de poeta. Pessoa vai ver D. Dinis
como o rei capaz de antever futuros, justamente porque poeta
visionário, em cujo cantar de amigo se fundem o rumor – a “fala
dos pinhais” – e o mar futuro. Por isso, ele é visto
como “plantador de naus a haver”, as naus/ cantar
de amigo, que desvendarão, no futuro que ele sonha, o “oceano
por achar” (que a Europa e Portugal fitam, “com
olhar esfíngico e fatal”, como sabíamos já). No
poema, os pinhais plantados pelo rei – poeta – visionário
são “um trigo de império” e “ondulam sem se
poder ver” (porque futuros – só acessíveis aos
sonhadores); a “fala dos pinhais” é, assim, “o
som presente desse mar futuro/ é a voz da terra ansiando pelo
mar”.
Como
se vê, o poema é rico em imagens (o plantador de naus a
haver), metáforas (arroio esse cantar, trigo de império),
comparações (como um trigo de império) e oximoros (ouve
um silêncio múrmuro); mas é sobretudo muito rico do
ponto de vista fónico – aliterações – na noite –
assonâncias e onomatopeias sugerindo o ruído do rio ou da água
que corre: E o rumor dos pinhais – marulho obscuro.» [Bibl.]
II)
A segunda parte - Mar Português - inicia-se com o poema Infante, onde o poeta mostra que o sonho tem como
causa primeira a vontade de Deus, o Homem como agente
intermediário e a obra como efeito. Nos outros poemas refere
personalidades e factos dos Descobrimentos portugueses,
encarados na perspectiva da missão que competia a Portugal
cumprir. Destaca-se a projecção universal que este
empreendimento implicou, bem como
os esforços sobre-humanos, a grandeza de alma, necessários
à luta contra os elementos naturais, hostis e desconhecidos:
a realização. Contém, entre outros, os poemas “O
Infante”, “O Mostrengo”, “Mar Português”,
“Prece”.
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MAR PORTUGUÊS
Ó
mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu
a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
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«Este
poema, constituído por duas sextilhas com rimas emparelhadas
– aabbcc – apresenta, na primeira estrofe, em
frases exclamativas, o que de sofrimento custou, a quem ficava
em terra (...), a conquista do mar, cujas águas salgadas “são
lágrimas de Portugal”. Na segunda estrofe, o balanço:
terá mesmo valido a pena? (O Velho do Restelo teria achado
que não...) Pessoa responde (Camões fizera-o igualmente ao
consagrar os navegadores na Ilha de Vénus) que sim. Porque “Tudo
vale a pena/ se a alma não é pequena”. É que toda a
vitória implica passar além da dor e, se Deus fez, é
certo, do mar o local de todos os perigos e medos, a verdade
é que, conquistado, é ele o espelho do esplendor do céu.»
[Bibl.]
III)
A terceira parte - Encoberto - evoca um
Portugal mais recente, envolto em tristeza, trevas e perda de
identidade (a morte) mas crê que nele ainda esteja latente a
essência do “ser português”; assim, mostra esperança no
“regresso” do rei Encoberto que virá regenerar o País,
pois “ é a hora” de : construir o Quinto Império. Contém,
entre outros, os poemas “D. Sebastião”, “O Quinto Império”,
“António Vieira”, “Nevoeiro”.
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O QUINTO IMPÉRIO
Triste
de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!
Triste
de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz –
Ter por vida a sepultura.
Eras
sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!
E
assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.
Grécia,
Roma, Cristandade,
Europa – os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?
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«Trata-se
de um poema que afirma uma filosofia sobre o homem e o viver.
Para o poeta, e retomando o que vinha dizendo desde a 1º
parte, a única coisa que faz sentido na vida é o sonho (...)
sem o sonho, capaz de remover montanhas, a vida é triste,
ainda que no conforto sensato do lar. Prosseguindo, nesta espécie
de introdução, constituída pelas duas primeiras quintilhas,
o poeta reincide no oximoro, ao afirmar: “Triste de quem
é feliz!”.
Naturalmente
que tal afirmação paradoxal necessitaria de explicação: é
que quem é feliz limita-se a viver por viver, porque a vida
dura e enquanto dura – como se dizia no poema “D. Sebastião”
(da 1º parte – “Brasão”), “sem a loucura que é o
homem/ mais que a besta sadia/ cadáver adiado que
procria?”. Para pessoa, loucura é o sonho que impele a
ir mais além. O que distingue o homem do animal é a
capacidade de sonhar e de partir nas asas ou nas naus do
sonho, para que a obra nasça. O poema prossegue com uma breve
visão da história (...) – a História faz-se de
descontentes e ser descontente, como diz, é próprio do
homem, capaz de ter como força condutora a visão que a
alma tem. Passando a antever o futuro – a profecia -, a
partir do olhar sobre o passado dos quatro impérios/ tempos
– o grego, o romano, o cristão, o europeu, e em tempos de
erma noite -, o poeta afirma que virá o dia em que “a
terra será teatro/ do dia claro” – o dia em que alguém
virá “viver a verdade/ que morreu D. Sebastião”.»
[Bibl.]
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NEVOEIRO
Nem
rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo - fátuo encerra.
Ninguém
sabe que coisa quer,
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É
a hora!
Valete, Frates
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«O
poema aponta para um tom geral de disforia, de tristeza e
melancolia, marcado por palavras e expressões de negatividade,
caracterizando uma situação de crise a vários níveis: político
“Nem rei nem lei, nem paz nem guerra” (repare-se na
sucessão do advérbio de negação – nem); crise de
identidade, também “este fulgor baço da terra/ que é
Portugal a entristecer/ brilho sem luz e sem arder/ como o que
o fogo-fátuo encerra” (note-se o vocabulário e imagística
disfórica: fulgor baço – Portugal a entristecer –
brilho sem luz e sem arder – novo oximoro reforçado
pela proposição, marca de ausência, sem); crise de
valores morais, da alma “Ninguém sabe que coisa quer,/
ninguém conhece que alma tem,/ nem o que é mal, nem o que é
bem” (de novo as palavras que marcam a negação – os
pronomes indefinidos ninguém, o advérbio nem).
A
situação é, em síntese, de incerteza, de indefinição:
“Tudo é incerto e derradeiro./ Tudo é disperso, nada é
inteiro./ Ó Portugal, hoje és nevoeiro...”. Mas porque
– e isto é afirmado no verso central da 2ª estrofe em
discurso parentético – algo ficou, consubstanciado na “ânsia
distante” que “perto chora” -, e justamente
porque Portugal hoje é nevoeiro, “É (também) a
Hora!” (teremos que ter em conta que, segundo a lenda
sebastianista, o Rei redentor regressaria numa manhã de
nevoeiro). A Hora, maiusculada, mas de quê? Pessoa não o
diz, mas todo o livro o significa: a Hora de partir, de
novamente conquistarmos a “Distância/ do mar ou outra,
mas que seja nossa!” (...), de assumirmos o sonho,
cumprindo o nosso destino de sagrados por Deus e portadores do
seu gládio, do seu sinal – assim a Obra nascerá de novo,
como em Mar Português – e poderemos “viver a verdade/
que morreu D. Sebastião”.
Assim sendo, temos que ler Mensagem justamente
como a epopeia da era que há-de vir, a do sonho feito realização,
a da loucura, divina, porque assumida conscientemente, e
interrompida, de D. Sebastião, de D. Fernando, do Infante e
dos outros heróis expectantes evocados por Pessoa.» [Bibl.]
A epígrafe final “Valete, Frates”
(Adeus, Irmãos) era usual como símbolo de fraternidade em
organizações esotéricas; ao usá-la, Pessoa remete-nos para
o carácter esotérico/ místico da obra.
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