Pormenor do retrato a óleo de José Estêvão existente na sala de professores.

Escola Secundária José Estêvão
SEUC - Nível Secundário

 
Unidade 12 - PORTUGUÊS


Fernando Pessoa Ortónimo - Poemas da "Mensagem"

 

O primeiro e único livro em português que Fernando Pessoa publicou em vida foi MENSAGEM (1934), um “livro de versos nacionalistas”, composto ao longo de cerca de duas décadas, que o poeta estruturou em três partes, correspondentes a etapas da evolução do Império Português - nascimento (os construtores do Império), realização (o sonho marítimo e a obra das descobertas) e morte (a imagem do Império moribundo, com a fé da ressurreição do espírito lusíada do império espiritual, moral e civilizacional.).

 

I) A primeira parte - Brasão - começa pela localização de Portugal na Europa e em relação ao mundo, afirmando o valor simbólico do seu papel na civilização ocidental quando afirma "O rosto com que fita é Portugal!"... Depois define o mito como um nada capaz de gerar os impulsos necessários à construção da realidade (o Sebastianismo é o mito que se manifesta nos momentos de crise nacional).

Passa a apresentar Portugal como um povo heróico e guerreiro, predestinado a construir o império marítimo. Refere mitos e figuras históricas de Portugal (de Viriato até D. Sebastião). Transmite a imagem de um Portugal erguido à custa do esforço abnegado de muitos heróis, que frequentemente não agiram por interesse próprio, mas motivados por forças maiores, quase que predestinados a grandes feitos: o nascimento. Contém, entre outros, os poemas “O dos Castelos”, “Ulisses” (“O mito é o nada que é tudo”), “D. Dinis”, “D. Sebastião, rei de Portugal”.

 

          O DOS CASTELOS

A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto. 

Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.

 

«Para Pessoa, Portugal é o rosto da Europa, aquele que “fita” (o verbo fitar aparece três vezes neste pequeno poema, como se de uma verdadeira obsessão europeia e portuguesa se tratasse), o mar ocidental, seu destino, seu futuro (e futura glória e dor, como sabemos e Pessoa reafirmará).» [Bibl.]

                        D. DINIS

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.

Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.

 

«Camões consagrara a D. Dinis três estrofes do canto III, em que pusera em relevo a sua faceta de povoador, de reconstrutor de cidades e fortalezas, de fundador da universidade, esquecendo, curiosamente, a sua faceta de poeta. Pessoa vai ver D. Dinis como o rei capaz de antever futuros, justamente porque poeta visionário, em cujo cantar de amigo se fundem o rumor – a “fala dos pinhais” – e o mar futuro. Por isso, ele é visto como “plantador de naus a haver”, as naus/ cantar de amigo, que desvendarão, no futuro que ele sonha, o “oceano por achar” (que a Europa e Portugal fitam, “com olhar esfíngico e fatal”, como sabíamos já). No poema, os pinhais plantados pelo rei – poeta – visionário são “um trigo de império” e “ondulam sem se poder ver” (porque futuros – só acessíveis aos sonhadores); a “fala dos pinhais” é, assim, “o som presente desse mar futuro/ é a voz da terra ansiando pelo mar”.

Como se vê, o poema é rico em imagens (o plantador de naus a haver), metáforas (arroio esse cantar, trigo de império), comparações (como um trigo de império) e oximoros (ouve um silêncio múrmuro); mas é sobretudo muito rico do ponto de vista fónico – aliterações – na noite – assonâncias e onomatopeias sugerindo o ruído do rio ou da água que corre: E o rumor dos pinhais – marulho obscuro.» [Bibl.]

 

II) A segunda parte - Mar Português - inicia-se com o poema Infante, onde o poeta mostra que o sonho tem como causa primeira a vontade de Deus, o Homem como agente intermediário e a obra como efeito. Nos outros poemas refere personalidades e factos dos Descobrimentos portugueses, encarados na perspectiva da missão que competia a Portugal cumprir. Destaca-se a projecção universal que este empreendimento implicou, bem como  os esforços sobre-humanos, a grandeza de alma, necessários à luta contra os elementos naturais, hostis e desconhecidos: a realização. Contém, entre outros, os poemas “O Infante”, “O Mostrengo”, “Mar Português”, “Prece”.

 

          MAR PORTUGUÊS

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

 

«Este poema, constituído por duas sextilhas com rimas emparelhadas – aabbcc – apresenta, na primeira estrofe, em frases exclamativas, o que de sofrimento custou, a quem ficava em terra (...), a conquista do mar, cujas águas salgadas “são lágrimas de Portugal”. Na segunda estrofe, o balanço: terá mesmo valido a pena? (O Velho do Restelo teria achado que não...) Pessoa responde (Camões fizera-o igualmente ao consagrar os navegadores na Ilha de Vénus) que sim. Porque “Tudo vale a pena/ se a alma não é pequena”. É que toda a vitória implica passar além da dor e, se Deus fez, é certo, do mar o local de todos os perigos e medos, a verdade é que, conquistado, é ele o espelho do esplendor do céu.» [Bibl.]

 

III) A terceira parte - Encoberto - evoca um Portugal mais recente, envolto em tristeza, trevas e perda de identidade (a morte) mas crê que nele ainda esteja latente a essência do “ser português”; assim, mostra esperança no “regresso” do rei Encoberto que virá regenerar o País, pois “ é a hora” de : construir o Quinto Império. Contém, entre outros, os poemas “D. Sebastião”, “O Quinto Império”, “António Vieira”, “Nevoeiro”.

                O QUINTO IMPÉRIO

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz –
Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,
Europa – os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?

 

«Trata-se de um poema que afirma uma filosofia sobre o homem e o viver. Para o poeta, e retomando o que vinha dizendo desde a 1º parte, a única coisa que faz sentido na vida é o sonho (...) sem o sonho, capaz de remover montanhas, a vida é triste, ainda que no conforto sensato do lar. Prosseguindo, nesta espécie de introdução, constituída pelas duas primeiras quintilhas, o poeta reincide no oximoro, ao afirmar: “Triste de quem é feliz!”.

Naturalmente que tal afirmação paradoxal necessitaria de explicação: é que quem é feliz limita-se a viver por viver, porque a vida dura e enquanto dura – como se dizia no poema “D. Sebastião” (da 1º parte – “Brasão”), “sem a loucura que é o homem/ mais que a besta sadia/ cadáver adiado que procria?”. Para pessoa, loucura é o sonho que impele a ir mais além. O que distingue o homem do animal é a capacidade de sonhar e de partir nas asas ou nas naus do sonho, para que a obra nasça. O poema prossegue com uma breve visão da história (...) – a História faz-se de descontentes e ser descontente, como diz, é próprio do homem, capaz de ter como força condutora a visão que a alma tem. Passando a antever o futuro – a profecia -, a partir do olhar sobre o passado dos quatro impérios/ tempos – o grego, o romano, o cristão, o europeu, e em tempos de erma noite -, o poeta afirma que virá o dia em que “a terra será teatro/ do dia claro” – o dia em que alguém virá “viver a verdade/ que morreu D. Sebastião”.» [Bibl.]

                    NEVOEIRO

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo - fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer,
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a hora!

                   Valete, Frates

 

«O poema aponta para um tom geral de disforia, de tristeza e melancolia, marcado por palavras e expressões de negatividade, caracterizando uma situação de crise a vários níveis: político “Nem rei nem lei, nem paz nem guerra” (repare-se na sucessão do advérbio de negação – nem); crise de identidade, também “este fulgor baço da terra/ que é Portugal a entristecer/ brilho sem luz e sem arder/ como o que o fogo-fátuo encerra” (note-se o vocabulário e imagística disfórica: fulgor baço – Portugal a entristecer – brilho sem luz e sem arder – novo oximoro reforçado pela proposição, marca de ausência, sem); crise de valores morais, da alma “Ninguém sabe que coisa quer,/ ninguém conhece que alma tem,/ nem o que é mal, nem o que é bem” (de novo as palavras que marcam a negação – os pronomes indefinidos ninguém, o advérbio nem).

A situação é, em síntese, de incerteza, de indefinição: “Tudo é incerto e derradeiro./ Tudo é disperso, nada é inteiro./ Ó Portugal, hoje és nevoeiro...”. Mas porque – e isto é afirmado no verso central da 2ª estrofe em discurso parentético – algo ficou, consubstanciado na “ânsia distante” que “perto chora” -, e justamente porque Portugal hoje é nevoeiro, “É (também) a Hora!” (teremos que ter em conta que, segundo a lenda sebastianista, o Rei redentor regressaria numa manhã de nevoeiro). A Hora, maiusculada, mas de quê? Pessoa não o diz, mas todo o livro o significa: a Hora de partir, de novamente conquistarmos a “Distância/ do mar ou outra, mas que seja nossa!” (...), de assumirmos o sonho, cumprindo o nosso destino de sagrados por Deus e portadores do seu gládio, do seu sinal – assim a Obra nascerá de novo, como em Mar Português – e poderemos “viver a verdade/ que morreu D. Sebastião”.

Assim sendo, temos que ler Mensagem justamente como a epopeia da era que há-de vir, a do sonho feito realização, a da loucura, divina, porque assumida conscientemente, e interrompida, de D. Sebastião, de D. Fernando, do Infante e dos outros heróis expectantes evocados por Pessoa.» [Bibl.]

A epígrafe final “Valete, Frates” (Adeus, Irmãos) era usual como símbolo de fraternidade em organizações esotéricas; ao usá-la, Pessoa remete-nos para o carácter esotérico/ místico da obra.

 

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