Pormenor do retrato a óleo de José Estêvão existente na sala de professores.

Escola Secundária José Estêvão
SEUC - Nível Secundário

 
Unidade 12 - PORTUGUÊS


Fernando Pessoa Ortónimo - Poemas do "Cancioneiro"

 

           ISTO

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

«O início do poema retoma a questão do fingimento, esclarecendo definitivamente que não se trata de mentir – “Dizem que finjo ou minto/ tudo o que escrevo. Não.”, para, em seguida, acrescentar que sente com a imaginação, isto é, “finge” no sentido definido em “Autopsicografia” – recria, reelabora a dor sentida, filtrando-a através da imaginação criadora, deixando bem claro que, ao escrever um poema, não usa o coração.

Na estrofe seguinte explica, para o caso de ainda não ter sido entendido, que a dor sentida – “Tudo o que sonho ou passo” não passa de “um terraço sobre outra coisa ainda” – essa coisa -, o poema, resultante da transfiguração, do fingimento da dor sentida através da inteligência, da imaginação – “essa coisa”, afirma “é que é linda”. Assim sendo, prossegue na terceira estrofe, pode escrever longe, fora do momento em que sente. Quanto ao mais, “Sentir? Sinta quem lê!” – compete ao leitor fruir o gozo estético que o poema proporciona. Ou não....» [Bibl.]

“A composição de um poema lírico deve ser feita não no momento da emoção, mas no momento da recordação dela. Um poema é um produto intelectual, e uma emoção, para ser intelectual, tem, evidentemente, porque não é, de si, intelectual, que existir intelectualmente. Ora, a existência intelectual de uma emoção é a sua existência na inteligência – isto é, na recordação, única parte da inteligência, propriamente tal, que pode conservar uma emoção”  Fernando Pessoa in “Páginas de Literatura e Doutrina Estética”.

 

TUDO O QUE FAÇO OU MEDITO

   Tudo o que faço ou medito
   Fica sempre na metade.
   Querendo, quero o infinito.
   Fazendo, nada é verdade.

   Que nojo de mim fica
   Ao olhar para o que faço!
   Minha alma é lúcida e rica
   E eu sou um mar de sargaço –

   Um mar onde bóiam lentos
   Fragmentos de um mar de além...
   Vontades ou pensamentos?
   Não o sei e sei-o bem.

«O tema é (...) a dor que resulta da distância imensa entre o que se quer – o Tudo, o Infinito – e o que se realiza – o Nada, o aquém do sonho. Em Pessoa, e neste poema em três quadras de versificação regular (versos de seis sílabas), essa dor vai originar nojo de si mesmo e consciência aguda de, tendo uma alma lúcida e rica (e lúcida tem aqui o sentido primitivo de “cheia de luz”, luminosa) ser um mar de sargaço, mais parecido com algo de pantanoso, de charco – mar, segundo Pessoa, em que “bóiam lentos/ fragmentos de um mar de além”. Ou seja, em que se reflectem ainda vestígios, fragmentos de algo maior e distante (provável marca de crença esotérica num mundo anterior, das ideias, de que o mundo real, que conhecemos, não passaria de reflexo – neste caso “baço”, indefinido...). Fragmentos de quê? O sujeito afirma não o saber e ao mesmo tempo sabê-lo bem. E mais não diz. É que ele não tem que dizer, tem, quando muito, de sugerir. Porque, não o esqueçamos, “Sentir? Sinta quem lê!”.» [Bibl.]

 

     LEVE, BREVE, SUAVE

Leve, breve, suave
Um canto de ave
Sobe no ar com que principia
O dia.
Escuto e passou...
Parece que foi só porque escutei
Que parou.

Nunca, nunca, em nada,
Raie a madrugada,
Ou ‘splenda o dia, ou doire no declive,
Tive
Prazer a durar
Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir
Gozar.

«Se o ouvires ler em voz alta, vais, de certeza, ser sensível à extrema musicalidade de que é feito. Tal musicalidade é conseguida pela harmonia dos timbres vocálicos em –a e os timbres em –ia. À harmonia destes timbres, vêm acrescentar-se as aliterações em –v e por vezes a rima interior (Leve, breve, suave – ave). O próprio desenho da mancha gráfica do poema aponta para uma atmosfera de harmonia e ritmo ondulatório, a que vem acrescentar-se o significado dos adjectivos (neste caso os três adjectivos iniciais) utilizados. Nos quatro primeiros versos, de facto, impera um clima geral de eufonia (harmonia fónica) e de euforia (alegria) propiciado pelo canto matinal da ave.

Mas, bruscamente, o quinto verso vem romper a harmonia, com a mudança expressa nos timbres vocálicos fechados em –u/ -ou (“Escuto, e passou”). Neste verso há também uma espécie de infracção sintáctica, ao associarem-se os tempos verbais de presente “Escuto” (e escutar implica um “ouvir atentamente”, reparando no que se ouve) e de passado – “passou”. Ao associar assim os dois tempos, marca-se a simultaneidade das acções de escutar (do Eu) e de passar (do canto). Ou seja, insinua-se claramente que foi o esforço de atenção que estragou a impressão captada inconscientemente pelos sentidos e que era de encantamento inconsciente (e aproximamo-nos assim do tema presente no poema da “Ceifeira”). Esta ideia é reforçada nos dois versos seguintes: “Parece que foi só porque escutei/ Que parou”.

A segunda estrofe (...) é toda ela marcada por sinais de disforia, de negatividade – começando pela sucessão de advérbios de negação no primeiro verso “Nunca, nunca, em nada” (...) pelo reforço de palavras de conotação negativa (nada, perda) e culminando com a confissão de um total desencanto: como se de uma maldição se tratasse (porque pensa, porque não é inconsciente), a impossibilidade de ter prazer a durar antes de o ir gozar. Temas presentes neste poema são naturalmente o da dor de pensar, de ser lúcido, o da perda (da inocência), o da incapacidade de fruir, senão por breves instantes, do prazer inefável da música e da harmonia por ela proporcionada.» [Bibl.]

 

Ó SINO DA MINHA ALDEIA

Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,

Sinto a saudade mais perto.

GATO QUE BRINCAS NA RUA

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,

Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

 

 

O MENINO DA SUA MÃE

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
– Duas, de lado a lado –,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
É boa a cigarreira,
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.

 

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